Abril de 2002, Ciência Hoje
Especial "Drogas" - 5ª parte
Adolfo Borges Filho
Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.
É a lei capaz de vencer as drogas? Uma análise dos artigos presentes nas leis, como a nova Lei de Tóxicos, deixa claro que eles tratam questões como a dependência, a prevenção e a penalização de maneira utópica, bem aquém da realidade predominante. O desafio dos profissionais de direito é moldar essas referências em favor da verdade - e não da vaidade. O ponto de partida deve ser a condenação da própria droga como fator degradante da sociedade.
A reportagem publicada na revista The Economist, edição de 28 de julho de 2001, intitulada “Stumbling in the dark”, me fez voltar ao longínquo ano de 1982, quando exerci a Promotoria de Justiça perante uma das duas Varas Criminais da cidade do Rio de Janeiro, especializadas em infrações penais previstas na Lei de Tóxicos. Na década de 80, a situação das drogas era praticamente a mesma de hoje, mitigada apenas pelo menor número de infrações cometidas e por uma “sensação” de maior controle sobre o comércio ilícito, por parte dos órgãos de repressão. O saudoso psicanalista Hélio Pellegrino (1924-1988), no excelente artigo “Os barões das biroscas”, publicado no Jornal do Brasil (9/9/1987), descrevia o cenário vigente nas nossas favelas: “Aparecem nos morros os barões das biroscas, os potentados desdentados que caricaturam, goyescamente, os donos-da-vida cá de baixo. Os traficantes de drogas assumem o comando das favelas, com o acumpliciamento da polícia e do conjunto da sociedade. Há aqui uma ilustração dramática da verdade segundo a qual a ideologia da classe dominante é a ideologia de todo o corpo social. A favela, portanto, cresce e multiplica, ao preço de que suas lideranças fiquem nas mãos de traficantes e delinqüentes. A ordem perversa dos morros, ao contrário do que parece, faz o jogo do conservantismo de direita. O tráfico de drogas subsidia o mínimo conforto do morro, sem agravamento do déficit público, aplicado às mutretas da praxe. (...) Além do mais, há grandes traficantes de drogas que utilizam a delinqüência das favelas para manter e expandir seus negócios. Favela não produz cocaína: de onde vem a droga?”
Quando reflito sobre a minha atuação, por quase um ano, na Vara de Tóxicos, a memória traz um vago sentimento de incompletude originado pela impossibilidade de levar a julgamento, com raras exceções, grandes traficantes e pela impossibilidade de realizar um trabalho mais eficaz com relação a usuários e dependentes. Os condenados por tráfico eram, na maioria absoluta, “aviões”, camelôs de maconha ou cocaína, presas fáceis da polícia e candidatos à desgraça no sistema penitenciário. Lembro-me de uma favelada grávida que entrou no meu gabinete, arrastando dois filhos pelas mãos, protestando veementemente contra a prisão do seu companheiro “simplesmente porque ele estava vendendo droga para os bacanas”... A seu ver, ele não era criminoso porque havia deixado de praticar pequenos roubos. Vender maconha, para ela, não era crime!
Tratamento em vez de punição penal
Abrindo um parêntese para falar sobre a impunidade dos grandes criminosos (traficantes de drogas, traficantes de armas, traficantes de vidas...), reproduzo um trecho do artigo de minha autoria “A vaidade e as formas jurídicas: limites éticos ao princípio da ampla defesa”, publicado na Revista do Ministério Público (nº 13, jan/jun 2001): “Quando o criminoso é do ‘colarinho branco’, a realidade processual pode assumir contornos teratológicos, dando ensejo a que corrupção e tráfico de influência se fundam numa fórmula explosiva. Na fase investigatória, o sonho dourado de advogados inescrupulosos é que a polícia se transforme na filial de seus próprios escritórios, produzindo as ‘testemunhas de viveiro’ e as ‘perícias de encomenda’. Nesse arremedo de advocacia, é preciso afastar os policiais honestos e combater o poder investigatório e fiscalizatório do Ministério Público, para que a defesa criminosa não seja surpreendida com a descoberta da verdade. Na fase processual, propriamente dita, entram em cena nulidades absurdas, dando ensejo às preliminares de mérito. Os habeas corpus, sem fundamentação plausível, são impetrados no afã de se conseguir a liberdade provisória do ‘bacana injustiçado’ ou mesmo o trancamento da ação penal por ausência de ‘justa causa’. Se as manobras espúrias encontram acolhimento, a punição que a sociedade espera vai se distanciando e, ao cabo de tudo, assoma como inexistente. A distorção da verdade real é uma hipocrisia insuportável e altamente danosa para o corpo social.”
Quanto aos usuários e dependentes, temia a aplicação, pura e simples, do artigo 16 da Lei nº 6368/76, cominando pena de detenção de seis meses a dois anos, porque não acreditava no sistema penitenciário como local apropriado para a recuperação de viciados. O Estado tinha obrigação de arcar com o seu tratamento. Mesmo com a aplicação do sursis (suspensão condicional da pena), o dependente acabava entregue à própria sorte, estigmatizado por uma condenação criminal e com séria probabilidade de voltar a ser preso em flagrante, dessa vez sem a possibilidade da suspensão condicional da pena.
A recente Lei nº 10.409, de 11 de janeiro de 2002, deu importante passo com relação a esse tema. Fica claro, pelo próprio título da Seção II, que essas pessoas, ao contrário de prisão, merecem tratamento. Vale a pena transcrever os cinco parágrafos que compõem o artigo 12 do referido diploma legal: “O tratamento do dependente ou do usuário será feito de forma multiprofissional e, sempre que possível, com a assistência de sua família; cabe ao Ministério da Saúde regulamentar as ações que visem à redução dos danos sociais e à saúde; as empresas privadas que desenvolverem programas de reinserção no mercado de trabalho, do dependente ou usuário de produtos, substâncias ou drogas ilícitas, ou que causem dependência física ou psíquica, encaminhados por órgão oficial, poderão receber benefícios a serem criados pela união, estados, distrito federal e municípios; os estabelecimentos hospitalares ou psiquiátricos, públicos ou particulares, que receberem dependentes ou usuários para tratamento, encaminharão ao Conselho Nacional Antidrogas -- CONAD, até o dia 10 de cada mês, mapa estatístico dos casos atendidos no mês anterior, com a indicação do código da doença, segundo a classificação aprovada pela Organização Mundial de Saúde, vedada a menção do nome do paciente; no caso de internação ou de tratamento ambulatorial por ordem judicial, será feita comunicação mensal do estado de saúde e recuperação do paciente junto ao juízo competente, se esse o determinar.”
A Lei pecou, entretanto, no tratamento penal dispensado aos traficantes. Felizmente, graças à atuação do Ministério Público Brasileiro, o Presidente da República vetou parcialmente o projeto evitando assim o abrandamento das punições a eles prescritas. O jornalista Ricardo Boechat, na coluna Informe JB (Jornal do Brasil, 4/1/2002), fez o seguinte alerta: “A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público envia carta a FH, segunda-feira, pedindo veto total à nova Lei dos Tóxicos. Para a entidade, o texto parido pelo Congresso é inaproveitável. Entre outras barbaridades, por favorecer escandalosamente os traficantes.”
O Jornal da Tarde, na sua edição de 9 de janeiro de 2002, trouxe a seguinte manchete: “FHC vetará parte da Lei Antidrogas”, realçando que “um dos artigos mais polêmicos permite que traficantes cumpram dois terços da pena em regime semi-aberto.”
Isolamento e recuperação
No submundo do tráfico, a “sanção penal” adotada é a pena de morte, aplicada, na maioria dos casos, com requintes de crueldade. Não somos partidários da pena de morte mas de “penas de vida”, onde se conjugue a punição - o isolamento social - com a possibilidade de recuperação do marginalizado. Essa recuperação não se dá através de artifícios como o regime semi-aberto, do modo como é atualmente concretizado. Tampouco com penas curtas, cumpridas em “chiqueiros” onde o traficante poderoso, através da corrupção, consegue regalias e se destaca na massa carcerária como chefe de facção, continuando o seu domínio dentro do próprio sistema carcerário.
Em artigo publicado no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (nº 96, novembro de 2000), registrei o seguinte: “O que hoje praticamos, em termos de sistema correcional, é uma gigantesca hipocrisia. Temos uma Lei de Execução Penal (LEP) moderna que não vem sendo aplicada por falta total de infra-estrutura”.
A Lei nº 7.210, de 11/7/1984, contém os seguintes artigos: “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do interno; ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei; a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade”.
Mais adiante, vamos encontrar o artigo 88 com as seguintes recomendações: “O condenado será alojado em cela individual, que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório. São requisitos básicos da unidade celular: a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores da aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana; b) área mínima de seis metros quadrados.”
A progressão de regime prisional, por exemplo, é extremamente salutar. A LEP prevê que o cumprimento da pena no regime semi-aberto se faça em estabelecimento industrial, agrícola ou similar. No entanto, o regime semi-aberto hoje nada mais é do que um artifício de esvaziamento carcerário e uma chance de reincidência para os que conseguiram ultrapassar incólumes (ao menos fisicamente) as agruras do regime fechado. No regime semi-aberto, o que se tem, ao contrário do que a lei preconiza, é uma quase liberdade. O interno dorme na penitenciária e durante o dia trabalha em liberdade. Em uma sociedade assolada pelo desemprego e pelo subemprego, fica difícil imaginar que um quase-egresso, com curriculum vitae desabonador, consiga uma boa colocação empregatícia... Muitos se acobertam na própria estrutura do regime semi-aberto para evoluírem na carreira do crime, que é muito mais rendosa.
Esporte, arte e cultura como prevenção
A questão da droga é altamente polêmica. As opiniões se multiplicam em um caleidoscópio de sugestões e de críticas que se embaralham formando um quebra-cabeça gigantesco, na busca de uma verdade lógica que jamais será atingida. Juridicamente falando, entendemos que “o ponto de partida é a condenação da própria droga como fator degradante do corpo social”. Segue-se então que, no terreno da infração penal, deve-se distinguir o dependente do traficante. Para o primeiro, tratamento e penas alternativas. Para o segundo, penas longas em prisão de segurança máxima, respeitada, na íntegra, quanto às condições materiais carcerárias, a Lei de Execução Penal vigente.
O programa dos “Doze passos”, preconizado por associações como Alcoólicos Anônimos e Narcóticos Anônimos, tem feito milagres nessa área do vício. A nova Lei de Tóxicos alinhava, no artigo 10, as seguintes medidas de prevenção: “Incentivar atividades esportivas, artísticas e culturais; promover debates de questões ligadas à saúde, cidadania e ética; manter nos estabelecimentos de ensino serviços de apoio, orientação e supervisão de professores e alunos; manter nos hospitais atividades de recuperação de dependentes e de orientação de seus familiares.” No final do filme Traffic, de Steve Sorderbergh, vislumbra-se de forma precisa como se dá o verdadeiro combate ao entorpecente: no âmago de cada ser humano envolvido.
Sugestões para leitura
GOMES, L..F., Penas e medidas alternativas à prisão, São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 1999.
ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas, Rio de Janeiro, ed. Revan, 1991.
GROF, C., Sede de plenitude: apego, vício e o caminho espiritual, Rio de Janeiro, ed. Rocco, 1996.
RAHM, H. J., Doze passos para os cristãos: jornada espiritual com amor-exigente, São Paulo, ed. Loyola, 1999.
Fonte: Ciência Hoje nº 181 (Abril de 2002)
segunda-feira, 1 de abril de 2002
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