quinta-feira, 25 de abril de 2002

Guerra perdida

25 de abril de 2002, Folha de S. Paulo (Tendências e Debates)

Julita Lemgruber
Julita Lemgruber, 57, socióloga, é diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes. Foi diretora do Sistema Penitenciário (1991-94) e ouvidora de Polícia (1999-2000) no Estado do Rio de Janeiro.

"Cresce o cultivo de coca na Colômbia", dizia manchete do caderno Mundo no dia 9 de março último. De acordo com relatório da CIA (agência de inteligência dos EUA), o cultivo da coca, planta utilizada para a produção da cocaína, cresceu 24,7% na Colômbia no último ano, a despeito do Plano Colômbia, de combate ao narcotráfico, para o qual os EUA contribuem com US$ 1,3 bilhão. Ao final, informa o texto que "o subsecretário de Estado para assuntos de narcotráfico, Rand Beers, admitiu que a política americana de combate às drogas não tem significado uma redução na oferta de drogas".

Aliás, Barry McCaffrey, antecessor de Beers, ao deixar seu posto, reconheceu que, a despeito dos bilhões de dólares gastos nessa luta na era Clinton, nunca as drogas haviam estado tão puras, tão baratas e tão acessíveis em seu país. Ora, tem a "guerra contra as drogas", inspirada no modelo ditado por Washington, alguma chance de vitória?

Entre 1980 e 2000 o orçamento federal estadunidense para o combate às drogas passou de US$ 1 bilhão para US$ 18,5 bilhões.

Estimativas conservadoras mostram que, nos Estados Unidos, entre 1981 e 1998, o preço do grama de cocaína caiu de US$ 191 para US$ 44 e o grama de heroína passou de US$ 1.194 para US$ 317. No mesmo período, a pureza cresceu: passou de 60% para 66%, no caso da cocaína, e de 19% para 51%, no caso da heroína.

Quanto à acessibilidade, pesquisa de 1999 revelou que estudantes secundários consideram fácil adquirir drogas ilícitas nos Estados Unidos: 88% dos entrevistados disseram que é fácil comprar maconha e 47% afirmaram poder comprar cocaína sem dificuldades.

Anualmente morrem, nos Estados Unidos, aproximadamente 500 mil pessoas em conseqüência do uso de drogas lícitas (400 mil têm mortes relacionadas ao uso do tabaco e 100 mil morrem em conseqüência da ingestão de álcool); e apenas 20 mil mortes relacionam-se ao uso de drogas ilícitas. Ora, dirão alguns, esses números não servem para condenar as drogas lícitas, pois a quantidade de pessoas que usam álcool e tabaco é infinitamente maior, logo o número de mortes também deve ser, necessariamente, maior.

No entanto a ponderação pelo número de usuários revela que as drogas lícitas são de fato muito mais letais: morrem 506 pessoas em cada 100 mil usuários de álcool e tabaco, contra 166 em cada 100 mil usuários de maconha, cocaína, crack e heroína.

Além de não impedir que as drogas se tornassem mais baratas, puras e acessíveis, o modelo estadunidense de combate ao narcotráfico contribuiu para abarrotar as prisões, aumentando exponencialmente os gastos da Justiça e do sistema penitenciário. Pior: recente estudo realizado nos Estados Unidos mostrou que 36% de todos os presos condenados por crimes relacionados com drogas eram pequenos infratores, sem nenhum registro anterior de comportamento violento.

A violência que acompanha a expansão do mercado de drogas, nos EUA ou em outras partes do mundo, decorre em grande medida do próprio modelo repressivo adotado, que pode ser descrito, no mínimo, como esquizofrênico: proíbem-se as drogas, mas não as armas de fogo; criminaliza-se o comércio de substâncias menos letais do que o álcool e o tabaco; colocam-se na cadeia milhares de usuários e pequenos traficantes sem nenhuma periculosidade; e, ao mesmo tempo, incentiva-se a guerra generalizada dentro do tráfico e contra ele, o armamento até das polícias e da população, a mobilização de exércitos, a resolução à bala de disputas comerciais.

Um estudo do Ministério da Justiça estadunidense admite que os conflitos no interior do mercado de drogas ilícitas, junto com a proliferação das armas de fogo, estão entre os principais determinantes da violência letal naquele país; admite ainda que grande parcela dos homicídios se relaciona ao tráfico e que cerca de dois terços desses homicídios são cometidos com armas de fogo.

Mas, mesmo assim, continua a aposta na "guerra" como solução para o problema das drogas. Uma guerra perdida, que gera mais morte e destruição do que evita, que estimula não só a violência, como a corrupção da polícia e dos políticos, contra um mercado capaz de movimentar no mundo US$ 400 bilhões por ano só com a venda de drogas, sem contar os ganhos da indústria de armas. Será isso esquizofrenia ou hipocrisia?

O Brasil é hoje exemplo no mundo quando se fala em política de combate à AIDS. O sucesso dessa política foi resultado de campanhas corajosas e agressivas, ao longo das quais superamos preconceitos e enfrentamos interesses poderosos. Está mais do que na hora de iniciar um debate sério sobre a descriminalização das drogas, lembrando que, através de campanhas educacionais, também corajosas e honestas, poderemos evitar que pessoas morram pelo abuso de drogas pesadas. Não é com a repressão policial violenta, com gastos de somas fabulosas (que não temos!) ou com campanhas mentirosas que estaremos criando um mundo livre de drogas.

Muitas drogas ilícitas já foram legais no passado. Vamos ter que aprender a conviver com elas e desenvolver uma política consistente e conseqüente de redução dos danos das drogas pesadas. Mais ousadia e menos hipocrisia é do que precisamos para avançar nessa área, como conseguimos indiscutivelmente avançar na luta contra a AIDS.

Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idArea=1&idSubArea=126

segunda-feira, 1 de abril de 2002

Reflexões sobre uma indústria altamente rentável

Abril de 2002, Ciência Hoje
Especial "Drogas" - 1ª parte

Alicia Ivanissevich

A variedade de opiniões sobre como abordar o problema do crescente consumo de drogas no Brasil e no mundo é imensa. Mas existe consenso pelo menos quanto a um ponto: trata-se de uma das indústrias mais rentáveis do planeta, ultrapassando inclusive a de petróleo. A venda mundial de entorpecentes para usuários é estimada em US$ 150 bilhões - quantia próxima à gasta pelos consumidores de cigarro (US$ 204 bilhões) e do álcool (US$ 252 bilhões). É, com certeza, o mercado ilícito que mais movimenta dinheiro.

Em todo o mundo, o consumo de drogas não pára de crescer. Os Estados Unidos são certamente o maior consumidor, sobretudo de cocaína e anfetaminas (as vendas chegam a US$ 60 bilhões), seguidos de perto pela Europa. Paquistão, Tailândia, Irã e China respondem pelo maior número de usuários de heroína - os preços baixos, entretanto, impedem que as vendas atinjam US$ 10 bilhões. Em países ricos, como a Grã-Bretanha, as drogas que mais atraem os jovens são as consumidas ocasionalmente, como a maconha, o ecstasy, as anfetaminas e a cocaína.

Ninguém gasta mais com uma política antidrogas do que os Estados Unidos: US$ 35 a 40 bilhões anuais. Os resultados, no entanto, não são nada animadores. A repressão tem ajudado a inchar as prisões e a tornar mais corrupta a polícia norte-americana. Milhares de jovens negros e hispânicos acabam na cadeia: há mais deles na prisão do que na escola. Apesar de o governo insistir em afirmar que a estratégia de combate está funcionando (o consumo ocasional caiu e o uso de drogas pesadas se estabilizou, segundo órgãos oficiais), um terço dos norte-americanos com mais de 12 anos de idade admitiu já ter experimentado drogas no último ano.

Ainda sobre o modelo norte-americano, devemos lembrar que, nos Estados Unidos, o tabaco mata proporcionalmente mais fumantes do que a heroína destrói a vida de seus usuários; da mesma forma, o álcool faz mais vítimas fatais do que a cocaína.

A avaliação das estatísticas e das experiências conduzidas em diversos países aponta para uma questão central: as políticas atuais para o controle de entorpecentes não parecem adequadas. É importante aqui recordar as conseqüências da instituição da Lei Seca nos Estados Unidos (1920-1933), que proibia a venda de álcool e só admitia o consumo dentro de casa. Nesses 13 anos, ocorreu, na verdade, uma distorção do sentido original da lei: a proibição acabou encorajando a formação de gangues, aumentando a corrupção policial e disseminando o crime por todo o território norte-americano.

Em uma extensa análise publicada em julho/agosto de 2001, a revista inglesa The Economist destaca a necessidade de rever a legalização das drogas - não apenas a posse e o uso, como também o comércio - para reverter radicalmente o quadro de corrupção policial, danos à saúde, crimes e prejuízos sociais a elas associados.

Motivado pela repercussão do artigo da The Economist, nosso conselho editorial decidiu refletir sobre a questão, convidando, para comentá-lo, alguns especialistas no assunto. São pesquisadores de diversas áreas do conhecimento que apresentam suas argumentações em prol ou contra a descriminalização das drogas, ponderando os danos causados tanto aos usuários de drogas ilícitas quanto à sociedade. Suas opiniões não refletem necessariamente o pensamento dos editores.

Este especial pretende funcionar como um caleidoscópio, através do qual o leitor de Ciência Hoje poderá construir, a partir dos fragmentos por ele escolhidos, sua própria avaliação sobre o tema. Para isso vale ter em mente: as políticas antidrogas de alguns governos são, muitas vezes, mais prejudiciais para a sociedade do que as próprias drogas.

Fonte: Ciência Hoje nº 181 (Abril de 2002)

Drogas: um panorama no Brasil e no mundo

Abril de 2002, Ciência Hoje
Especial "Drogas" - 2ª parte

Alba Zaluar
Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Nos últimos 30 anos, inúmeros esforços foram feitos para deter o crescimento das drogas como poder econômico e fator degradante da sociedade. Uma postura radical, com a repressão severa e o encarceramento, já demonstraram ter pouca eficácia, gerando efeitos colaterais como o aumento da população carcerária e dos custos para mantê-la. Novas diretrizes, adotadas por países como os Estados Unidos, indicam que campanhas de informação, o incentivo à cooperação entre a população e a polícia e o investimento em programas de tratamento de dependentes graves podem diminuir a criminalidade, sendo um caminho para lidar melhor com um problema que já faz parte da cultura mundial.

À frente da war on drugs (guerra às drogas) desde o final dos anos 70, os Estados Unidos vêm adotando uma política repressiva, violenta e inútil, na tentativa de conter a produção e a comercialização de drogas. O objetivo é diminuir o consumo interno, que em vários estados também é reprimido por lei. Na década de 90, em apenas quatro anos foram gastos US$ 45 bilhões, pagos pelos contribuintes norte-americanos para financiar campanhas internacionais. Apesar desses esforços, os Estados Unidos continuam aparecendo nas estatísticas como o país com maior diversidade de drogas em circulação. Em Baltimore, cidade norte-americana com 740 mil habitantes, população predominantemente negra e renda média de US$ 19 mil anuais, estima-se que 60% de todos os crimes envolvam drogas. Entre 1986 e 1991, a polícia dessa cidade prendeu 82 mil pessoas por crimes e contravenções relativas a drogas. Em 1991, 46% dos homicídios nessa cidade tinham a ver com os entorpecentes.

Com a adoção da política de tolerância zero em várias cidades norte-americanas, em meados dos anos 90 o número de prisões feitas por pequenos delitos, entre os quais o uso e o comércio de drogas, ajudou a elevar drasticamente a população carcerária, aumentando ainda mais os custos da repressão interna. Os Estados Unidos tornaram-se campeões do mundo nesse item (um milhão e meio de pessoas presas). Os índices de criminalidade baixaram em várias cidades, ao mesmo tempo em que novas medidas foram aplicadas. Por exemplo, projetos de cooperação entre a população e a polícia, patrulhamento a pé, planejamento, treinamento e recrutamento de “policiais de serviços” e de “civis”. Todas essas medidas visavam conquistar a confiança dos moradores, ao mesmo tempo em que os policiais abandonavam a postura de “caçadores” dentro de viaturas, de onde não interagiam com as pessoas e que inspiravam nelas medo e hostilidade.

Hoje a sociedade norte-americana divide-se em torno do acirrado debate sobre a legalização do uso de drogas. Representantes do próprio governo expressam preocupação com a superpopulação carcerária; agentes penitenciários denunciam que a maioria dos presos é de usuários de drogas e não de perigosos criminosos.

Nos organismos internacionais, o debate e a preocupação não são menores. Segundo o Conselho Social e Econômico das Nações Unidas (dados de 1994), o crime organizado transnacional, com capacidade de expandir suas atividades ao ponto de ameaçar a segurança e a economia dos países, particularmente aqueles em transição e desenvolvimento, representa atualmente o maior perigo que os governos precisam enfrentar para assegurar sua estabilidade e segurança.

Razões do uso de drogas

Numerosos estudos abordam a dificuldade da separação entre traficante e usuário, sombreada pelos efeitos do vício que a droga proporciona. Pesquisas do tipo survey ou levantamento, muito caras e de difícil metodologia, foram conduzidas nos Estados Unidos com a conclusão de que os homens, mais do que as mulheres, usam drogas ilegais. Homens mais novos (de 18 a 25 anos) usam mais do que os mais velhos; os desempregados mais do que os empregados; os solteiros e divorciados mais do que os casados.

Existem igualmente estudos focalizados nas relações familiares, de emprego e de vizinhança que os usuários abusivos de drogas mantêm. As conclusões contestam as idéias de senso comum, que associam tais comportamentos à pobreza, a “lares desfeitos” e a “más companhias”. Alguns estudos procuram mostrar que não a pobreza, mas as próprias exigências do funcionamento do tráfico são a origem do comportamento violento associado ao uso de drogas. Outros juntam evidências de que a falta de diálogo aberto entre pais e filhos abre caminho para o consumo das mesmas. Seria, então, a violência doméstica e a ausência dos pais, mais do que a separação deles, as principais razões do uso de drogas. A curiosidade, a valorização do proibido e do risco, característicos da adolescência, assim como o desejo de se afirmar como alguém capaz de enfrentar a morte, faz do uso de drogas proibidas uma atração constante para os jovens, só superada pela informação, pelo diálogo e pela preocupação demonstrada pelos adultos.

Usuários e traficantes

No Brasil, o governo sempre adotou medidas repressivas no combate às drogas, e a polícia tem um enorme poder em determinar quem será ou não processado e preso como traficante, crime considerado hediondo. No que se refere à administração da justiça, jovens pobres, negros ou mulatos são presos como traficantes, o que ajuda a criar uma superpopulação carcerária, além de tornar ilegítimo e injusto o funcionamento do sistema jurídico no país. Policiais costumam prender meros fregueses ou pequenos repassadores de drogas (aviões) para mostrar eficiência no trabalho. A quantidade apreendida não é o critério diferenciador. Essa indefinição, que está na legislação, favorece o abuso do poder policial que, por sua vez, inflaciona a corrupção.

No Rio de Janeiro, onde coordenei trabalho de campo realizado entre 1998 e 2000 em três bairros - Copacabana, Tijuca e Madureira - e em que entrevistamos cerca de 120 policiais, moradores, usuários e alguns repassadores, concluímos que os usuários eram, em sua maioria, usuários sociais. Em comum, tinham a busca da privacidade e de um uso discreto para “não dar na vista”, nem assustar os demais freqüentadores dos locais de boemia. Isso não quer dizer que não existam usuários pesados. Estes têm dificuldades no relacionamento com os usuários sociais e mesmo com os traficantes, que não os respeitam, nem gostam deles por chamarem a atenção da polícia e não conseguirem pagar as dívidas.

Usuários de Copacabana, Tijuca e Madureira, de modo geral, evitaram classificar-se como dominados pela droga ou capazes de qualquer coisa para obtê-la, escapando dos estereótipos do marginal. Só aqueles que foram entrevistados quando já estavam sob tratamento admitiram a dependência e a associação com outras práticas criminais.

Traficantes de favelas na Tijuca e em Madureira controlam mais facilmente as ruas do bairro, seja para impedir que vendedores independentes comercializem drogas por ali, seja para demonstrar o seu poder de fogo. Não é incomum vê-los andando armados. Quando um vendedor não autorizado é identificado pelos “donos” das bocas de fumo (por extensão, das favelas), ele é ameaçado de morte. Nesses dois bairros, é preciso ter a permissão dos “donos” para vender drogas. Na Tijuca, a proximidade dos morros tira a paz e a tranqüilidade do bairro residencial e conservador: tiros atingem as casas, matando gente que assiste à televisão ou dorme.

O estilo do tráfico na Tijuca e em Madureira, poderia ser resumido como diretamente controlado pelos traficantes de favela, caracterizado pelo uso corriqueiro da arma de fogo para assegurar o território, cobrar dívidas, afastar concorrentes e amedrontar possíveis testemunhas. Isso marca uma diferença crucial em relação à Copacabana, cujo estilo discreto dos traficantes se caracteriza pela clandestinidade e ausência de controle de territórios.

Estar “ligado”, estar “chapado”

No caso específico da maconha e da cocaína, verificou-se a importância do grupo e do ambiente na decisão de consumi-las, assim como na continuidade do uso. Todos os entrevistados que experimentaram drogas ilegais - permanecendo ou não como usuários - registraram que a primeira experiência ocorreu em situações coletivas e de lazer como acampamentos, viagens e festas. Por isso mesmo, aqueles que interromperam momentânea ou definitivamente o uso dessas substâncias, se afastaram do grupo e do ambiente associado a essa prática. Os que voltaram a usar, mesmo após tratamento e desintoxicação, devem a “recaída” a encontros com amigos e conhecidos, ligados aos circuitos e locais em que as drogas ilegais são comercializadas e compartilhadas.

Embora haja alguns usuários múltiplos de maconha e cocaína, em geral são grupos que não se misturam. O etos e as imagens associadas a cada uma dessas drogas divergem entre si. A maconha teria um etos bucólico, com referências ao dia, ao campo, à natureza, à comida, à saúde, ao ócio e à paz. Já a cocaína, seria associada a um uso mais urbano e artificial, à saída noturna para boates, ao viver agitado, à degeneração do corpo, e à guerra. Ela também é usada para potencializar a capacidade produtiva, especialmente no trabalho noturno, como o de jornalistas, bancários, caminhoneiros, vigias etc. Entrevistados nos três bairros assinalaram que entre os efeitos desejados estão a euforia, a “adrenalina”, a “ligação” e “o ficar aceso”, atribuídos à cocaína; assim como o “estar chapado” ou “ficar lesado”, “desligado”, devido à maconha.

Segundo usuários, por causa da cocaína, “o cara mata, não tem amizade, não tem nada”, o que nos indica a maior associação entre o traficante e o usuário quando a droga é a cocaína. Vários afirmaram ter visto “gente se destruir” e homens que “deixam de querer saber de mulher” ou “que viram mulher”, “que se prostituem para pagar o vício”. Assertivas que foram confirmadas pelas histórias de vida de prostitutas e michês ouvidos em Copacabana.

O prazer da transgressão

Não falta, no Brasil, o que o antropólogo norte-americano Howard Becker chamou de “motivação de um ato desviante”. Esta deriva de uma situação na qual o sujeito não aceita o jogo social e político vigente, e se revolta contra ele. A pobreza não explica o ato desviante mas, em conjugação com as falhas do Estado, pode facilitar a escolha ou a adesão às subculturas marginais de uso de drogas ilícitas. Tais subculturas se formam a partir do próprio preconceito dos agentes governamentais e da sociedade em relação aos usuários de drogas. A imagem negativa, a discriminação, o medo, a “satanização” do viciado contribuem decisivamente para a cristalização desses grupos, assim como dos tons agressivos e anti-sociais que algumas vezes adquirem.

Já o ato desviante ou sua repetição decorrem do aprendizado do jovem junto ao grupo social de desviantes, ao qual ele vem a fazer parte. Este “pertencimento” gera uma série de atitudes, valores e identidades que podem se cristalizar, assim como gerar laços reais de amizade, domínio ou dívida, dificultando o rompimento com o grupo e, conseqüentemente, com o próprio desvio. Porém, não se pode concluir que todos os usuários de drogas são iguais ou que professam o mesmo credo cultural. Pesquisas feitas em todo o mundo sugerem diferentes graus de envolvimento com a droga e com o grupo: se a tomam nas horas de lazer, se ela define um estilo de vida alternativo compartilhado com outras pessoas e que estilo é esse, se ela é o eixo da identidade do usuário compulsivo.

Não seria exagero afirmar que, entre os jovens pobres, existe maior pressão para o envolvimento com grupos de criminosos comuns, por conta da facilidade de entrar em dívida com traficantes, da repressão policial e da dificuldade em encontrar atendimento médico e psicológico quando vêm a ter problemas reais com o uso e controle das drogas.

No Brasil, o atendimento nos hospitais públicos, onde há programas de tratamento de viciados, todos os problemas apontados se unem de forma trágica: normas internas rígidas, atendimento precário por falta de equipamentos e de pessoal tecnicamente qualificado, atraso nos calendários. Burocratas sem compromisso com os objetivos humanos e políticos desses programas prejudicam a ação dos poucos médicos realmente interessados neles. Por outro lado, os efeitos negativos dos internatos que criam outras formas de exclusão dos viciados já foram bastante apontados na literatura.

A busca de soluções

Enquanto isso, em países como os Estados Unidos, o entendimento da questão das drogas em novos termos provocou uma verdadeira revolução no atendimento e proteção ao usuário pesado. Nos Estados Unidos, líder da política proibitiva, numerosos estudos encomendados pelo governo mostraram que os custos de programas de prevenção do uso de drogas e de tratamento de dependentes é muito mais barato (entre 20 e 10 vezes) e eficaz do que a repressão externa e interna respectivamente. Relatório recente da ONU (1997) e pesquisa realizada em Miami demonstram, por exemplo, que dependentes de drogas em tratamento tendem a cometer muito menos crimes (entre 4 e 10 vezes menos) contra a propriedade e contra pessoas, do que os que não estão sob tratamento.

Com base em dados de fontes variadas, é possível montar-se políticas de tratamento e de prevenção que façam declinar a violência nas regiões metropolitanas brasileiras. Tais políticas deveriam se desenvolver com a participação da própria população - tanto as vítimas quanto os agentes da violência -, para a mudança de práticas e concepções em associações, comitês de moradores ou grupos de discussão.

A proposta inicialmente apresentada ao Congresso Nacional era que a apreensão da droga e a punição aplicada ao reincidente (quando caracterizado como usuário) deixassem de ser julgadas pelo Código penal, passando a ser problema de ordem sanitária ou administrativa. Isto porque “o consumo é próprio do direito privado” (ou civil) e “o direito penal não pode ter por objeto condutas estritamente privadas”. Tal proposta defendia, ainda, uma estratégia preventiva extensa a todas as substâncias psicoativas lícitas e ilícitas. O alvo é a “pessoa humana” e não a substância psicoativa em si. O projeto aprovado substitui a pena de privação de liberdade pela pena de tratamento forçado em clínicas especializadas, o que mantém na prática a criminalização.

Sugestões para leitura

BETTANCOURT, G. & GARCIA, M. Contrabandistas, marimberos y mafiosos. Historia social de la mafia colombiana, TM editores, Bogotá, 1994.

LABROUSSE, A. & KOUTOUSIS, M. Géopolitique et géostratégies des drogues, Paris, Economica, 1996.

REUTER, P. Disorganized crime: illegal markets and the mafia, Massachusetts, MIT Press, 1986.

ZALUAR, A. “Para não dizer que não falei de samba -- os enigmas da violência no Brasil”, in L. M. Schwarcz, História da Vida Privada no Brasil vol. 4 - Contrastes da intimidade contemporânea, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

Fonte: Ciência Hoje nº 181 (Abril de 2002)

Nada de novo no front

Abril de 2002, Ciência Hoje
Especial "Drogas" - 3ª parte

Alexandre Moura Dumans (Departamento de Direito Penal, Universidade Cândido Mendes) e Vera Malaguti Batista (Departamento de Criminologia, Universidade Cândido Mendes).

Descriminalizar não apenas o uso, mas também o comércio de drogas parece uma idéia chocante e insensata? A resposta deve ser não, se levarmos em conta que em nosso país, a maioria dos condenados por tráfico de entorpecentes - crime hediondo e inafiançável segundo a atual legislação - não são os verdadeiros “chefões” das drogas, mas jovens negros e pobres recrutados pelo mercado ilegal graças à falta de oportunidades imposta pelo modelo econômico ao qual estamos submetidos. A nova Lei de Tóxicos, portanto, permanece atrelada aos valores das oligarquias, mantendo seu controle social sobre os marginalizados.

A discussão sobre o problema das drogas no Brasil parece estar presa a uma espécie de armadilha do tempo, que aponta para trás. As modificações legais representam sempre um “avanço para o passado”.

A socióloga venezuelana Rosa del Olmo, a maior intelectual latino-americana a trabalhar o assunto, adverte para a dificuldade de analisar um tema tão mistificado. Ela defende que a mistura de informação, desinformação e até contra-informação produz uma “saturação funcional à ocultação de seus problemas”. Para evitar tal saturação, teríamos que compreender a questão das drogas de acordo com o sistema penal no capitalismo tardio (globalização), o poder infinito do mercado e o papel que a política criminal de entorpecentes, capitaneada pelos Estados Unidos, desempenha no processo de criminalização global dos pobres. Para Rosa del Olmo, faz parte da desmistificação ou aproximação crítica ao problema dos tóxicos enquadrá-lo em uma perspectiva geopolítica - através da análise das relações de poder no sistema mundial.

O fracasso dos Estados Unidos

Os Estados Unidos têm sido o eixo central da atual política de drogas no continente americano. As marcas de seu fracasso são a multiplicação das áreas de cultivo, a organização dos traficantes, a corrupção de autoridades, o crescimento da adicção e o aumento da criminalidade. Por outro lado, a América Latina tem sido fonte produtora de maconha, cocaína e até de heroína para consumo nos Estados Unidos e na Europa. A crise econômica é uma constante na geopolítica desse quadro. As novas políticas de ajuste econômico favorecem a expansão dessa produção voltada para o comércio globalizado. Podemos observar que a cada novo “ajuste” corresponde uma nova onda de criminalização e encarceramento.

Paralelamente a esse processo econômico, o governo dos Estados Unidos, desde os anos 80, utiliza o “combate às drogas” como ponto central da política norte-americana no continente. Passam a difundir termos como “narcoguerrilha” e “narcoterrorismo”, em uma clara simbiose dos seus “inimigos externos”. As drogas passam a ser o pretexto das políticas de segurança nacional nos países atrelados a Washington, ao mesmo tempo em que o capital financeiro e a nova divisão internacional do trabalho obrigam tais países a serem os produtores da valiosa mercadoria. Os países andinos se transformam em campos de batalha e nossas cidades se transformam em mercados brutalizados para o varejo residual das drogas ilícitas.

Guerra santa contra as drogas

Outro ponto importante para a desconstrução do assunto “drogas” é rompermos o discurso moral que o ronda. Como disse o advogado Nilo Batista, quando incorporamos a idéia de “cruzada” contra os entorpecentes, introduzindo a combinação de elementos morais e religiosos, estamos exigindo ações sem limites, sem restrições e sem padrões reguladores. Não há nada mais parecido com a inquisição medieval do que a atual guerra santa contra as drogas, com a figura do “traficante-herege que pretende apossar-se da alma de nossas crianças”. E os mortos dessa cruzada têm uma extração social comum: são jovens, negros/índios/árabes e são pobres.

Gostaríamos de comentar duas recentes publicações que tiveram enorme repercussão no debate sobre drogas no Brasil: a reportagem intitulada “Stumbling in the dark” (Tropeçando no escuro), na revista The Economist e o filme Traffic, do cineasta norte-americano Steven Soderbergh. Ambos têm um mérito: apontar a grande falácia das políticas criminais de drogas lideradas pelos Estados Unidos, sendo que a reportagem frisa a insensatez da descriminalização apenas do consumo. Como criminalizar a venda de um produto indiferentemente consumido? Mas ambos destilam sobre nós o veneno colonial: The Economist de uma forma mais elegante, e Traffic de forma mais grotesca. Tanto um quanto outro atribuem aos países produtores o ethos (ética) da corrupção. Não haveria controle da oferta porque países como a Colômbia e o México são muito corruptos. Mas as drogas ilegais são distribuídas até o varejo de todas as cidades da Europa e da América do Norte, apesar da “superioridade ética” de suas instituições policiais.

A revista inglesa afirma que o varejo é feito pelos imigrantes pobres por razões culturais (será?) e somente como complemento por sua dificuldade de acesso ao emprego (esta seria uma razão secundária). Já o filme Traffic (elogiado na The Economist) escancara o olhar preconceituoso sobre nós. No filme, tudo o que é mexicano é corrupto, imoral, anárquico e caótico. Mas não há um só agente norte-americano corrupto. Estão todos na luta contra o mal, alguns equivocados, alguns ingênuos, mas todos “bons”. Não há cena mais repugnante do que aquela em que o traficante/negro/herege praticamente estupra a jovem branca, loura, linda e indefesa, consumidora, filha do czar das drogas. Aquela imagem reproduz a idéia, oriunda da geopolítica das drogas, de que países como a Bolívia seriam os agressores e os Estados Unidos, a vítima. É com esse discurso que o aparato bélico-industrial dirigido pelo jovem Bush pretende renovar sua história de intervenções militares na América Latina, através do acirramento do conflito na Colômbia, com o auxílio luxuoso da mídia e dos governos neoliberais do continente.

Vitória da verdade sobre a hipocrisia

A tarefa dos profissionais que se dedicam a refletir sobre as questões da criminalidade, das drogas e da violência na periferia do capitalismo é estabelecer sua própria pauta. Nossa reflexão tem que romper com os estereótipos que nos foram conferidos pelo capital vídeofinanceiro, pelos meios de comunicação de massa. Queremos novos destinos para a nossa juventude pobre que não sejam a cadeia ou o extermínio; queremos estudar a questão da droga e a criminalização crescente das mulheres; queremos avaliar os efeitos do uso dos herbicidas norte-americanos em nosso ambiente; queremos produzir uma reflexão latino-americana voltada para nossa realidade; reconstruir os paradigmas oferecendo uma forma radicalmente distinta de definir, estudar e controlar nossos problemas.

Nessa linha, a descriminalização do uso e do comércio de entorpecentes é a vitória da verdade sobre a hipocrisia. A União Européia de Monitoramento de Drogas afirma que 45 milhões de seus cidadãos experimentaram maconha ao menos uma vez e 15 milhões fizeram uso nos últimos 12 meses. Quando 45 milhões de pessoas - apenas na Europa - violam uma lei, sua legitimidade deve ser questionada.

Atualmente - fora os países que já promoveram uma completa descriminalização, a exemplo de Holanda, Dinamarca e outros -, em nações como Alemanha e França, o uso de drogas, malgrado subsista como crime, vem sendo tolerado pelas autoridades. A Bélgica, recentemente, apresentou proposta de somente punir o usuário quando ele se tornar “problemático”. A Espanha há muito não processa usuário de qualquer espécie de droga ilícita, desde que a consuma reservadamente. Portugal, em meados do ano passado, descriminalizou o uso de drogas, impondo ao usuário o pagamento de multa ou prestação de serviço comunitário, mas nunca a prisão. Na Inglaterra, Peter Lilley, líder do partido conservador, propôs a concessão de licença para venda de maconha em lojas especializadas. No Canadá, onde a Real Polícia Montada já tolerava o porte de pequena quantidade de droga, a permissão do uso de maconha com finalidades terapêuticas decorreu da declaração de inconstitucionalidade da interdição da Cannabis sativa na lei de drogas, pela Corte de Apelação de Ontário. No Brasil, a recente Lei no 10.259, de 12 de julho de 2001, passou a considerar o uso de drogas “delito de pequeno potencial ofensivo”, cujos infratores já não serão submetidos à prisão em flagrante.

Tudo isso mostra que a descriminalização do uso e do comércio de drogas é medida que está em curso em inúmeros países. Afinal, tal espécie de incriminação violenta o princípio segundo o qual não cabe criminalizar condutas que não produzam lesão a algum bem jurídico ou que lesionem apenas o próprio agente. O indivíduo deve ser soberano sobre seu corpo e sua mente. A idéia de risco à saúde é hoje um argumento vetusto e, neste particular, caminha bem o texto de The Economist, que assegura não haver diferença entre injetar uma dose de heroína e escalar uma montanha. Ambos os comportamentos apresentam riscos e devem, apesar da preocupação de seguradoras e de mães, ser tolerados pelo Estado de direito democrático.

Versão tardia e pobre da “Lei seca”

Parece claro que o banditismo do tráfico local de drogas no Brasil é apenas uma versão tardia e pobre do banditismo do tráfico de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos dos anos 30. Essa enfadonha repetição traz desgraçadas conseqüências, especialmente para aqueles que habitam os morros e as periferias das cidades brasileiras, sempre qualificados como traficantes quando surpreendidos com qualquer quantidade de droga, diversamente do jovem “do asfalto”, que será considerado apenas usuário, objeto do lado brando da lei.

É exatamente esse tratamento diferenciado que compromete qualquer política de drogas. À indiferença penal quanto ao uso deve corresponder a indiferença penal quanto ao comércio. De nada vale a liberação do uso se a criminalização do tráfico for mantida, pois é através das ambigüidades conceituais que se apresentam na aplicação desta última que as agências policiais manipulam a classificação usuário/traficante. Ou seja, permite-se que tais agências reservem o cárcere para negros, desempregados e pobres em geral. Na prática, a classificação seletiva pode representar quase uma autorização policial para matar. Quando a execução se antecipa à investigação, a oportuna classificação post mortem subtrai o interesse do caso, como nas centenas de pequenas notas das páginas vermelhas: “Três traficantes morreram ontem...”.

Passos para o passado

A recente discussão sobre a nova lei de drogas caminha a passos largos para o passado. Quando se fala em descriminalizar, o máximo a que se chega é a um ponto de vista do qual não compartilhamos: aquele que legisla a partir de certos redutos eleitorais, de jovens consumidores de classe média e alta. Em pesquisa feita nos arquivos do antigo Juizado de Menores do Rio de Janeiro, constatamos que a juventude de classe média e alta já conta com mecanismos privados de descriminalização. Os projetos de descriminalização do usuário deixam ainda mais expostas à demonização as principais vítimas dos efeitos perversos da exclusão globalizada: a juventude pobre de nossas cidades, recrutada pelo mercado ilegal graças à falta de oportunidades imposta pelo modelo econômico ao qual estamos submetidos.

O amplo apoio que a atual política criminal de drogas recebe das oligarquias brasileiras e dos “especialistas” a seu serviço provém muito mais da fantástica alavancagem de controle social penal sobre os marginalizados do que de qualquer resultado compatível com a saúde pública: sua força está em favorecer a violência e a morte, não a saúde e a vida. É lamentável que algo tão evidente seja diariamente mistificado. Porém, também aqui, a exemplo de tantos outros tópicos criminológicos, tal mistificação é muito útil, como Rosa del Olmo advertiu.

Sugestões para leitura

OLMO, R. del, Drogas: inquietudes e interrogantes, série “Textos para su Estúdio”, nº 4, Caracas, Fundación José Félix Ribas, 1998.

BATISTA, N., “Política criminal com derramamento de sangue” in Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 20, p. 129, ed. Revista dos Tribunais, ano 5, São Paulo, março-dezembro/1997.

CARVALHO, S. de, A política criminal de drogas no Brasil - do discurso oficial às razões da descriminalização, Rio de Janeiro, Luam Editora Ltda., 1996.

BATISTA, V. M., Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, ed. F. Bastos, 1999.

Fonte: Ciência Hoje nº 181 (Abril de 2002)

A idade da desordem

Abril de 2002, Ciência Hoje
Especial "Drogas" - 4ª parte

Ib Teixeira
Economista e advogado, pesquisador de temas sociais aposentado, Fundação Getúlio Vargas/RJ.

A relação entre drogas e criminalidade é indiscutível. Estatísticas mostram que nos países em que foram adotadas medidas descriminalizantes dos entorpecentes o número de crimes aumentou, paralelamente a problemas como a maior incidência de AIDS, caso de Portugal, e o narcoturismo, caso da Holanda. No Brasil, estudos apontam que 80% dos crimes são ligados ao mercado de tóxicos. A descriminalização não é a melhor maneira de combater ambos os males - crimes e drogas -, pois pode levar o país a um processo de narcotização semelhante ao da Colômbia.

Como um verdadeiro maremoto, as drogas avançam sobre o Brasil. A força destruidora dessa invasão é impulsionada pelo terror, os extermínios, a desintegração social, um quase genocídio e razoável poder político. Uma análise das causas de óbitos nas grandes cidades brasileiras, ao longo dos últimos 50 anos, evidencia a participação das drogas leves e pesadas no crescimento exponencial do obituário. No mercado de compra e venda dos entorpecentes está a origem de 80% dos crimes de sangue.

Na cidade do Rio de Janeiro, entre 1942 e 1990, os assassinatos saltaram de 3,8 para 59 por grupo de 100 mil habitantes. Isso significa um crescimento de 1.458%, em contraste com o avanço de todos os óbitos no mesmo período: apenas 82,72%. Nos 20 anos que se seguiram ao dumping colombiano e à invasão da cocaína no mercado brasileiro - entre 1970 e 1990 -, verifica-se a seguinte evolução dos homicídios por 100 mil indivíduos: 1970 = 8,67; 1980 = 17,33; 1990 = 59.

O panorama não é diferente na grande São Paulo. Após a invasão da cocaína, o número de homicídios saltou de 2.300, em 1980, para 13 mil, em 1998. Um crescimento, portanto, de 465%. Como se comportou o total de óbitos em São Paulo no mesmo período? Subiu apenas 19%! Hoje, por incrível que pareça, o Brasil registra mais homicídios provocados pela droga do que a própria guerra civil colombiana.

Brasil: uma futura Colômbia?

Em 1974, denunciamos o início do processo de dumping da cocaína em uma reportagem intitulada “O Brasil na rota da cocaína” na revista Manchete. Cartéis colombianos, então bloqueados pela ação norte-americana antidrogas, concluíram que o Brasil seria uma nova plataforma para a expansão do mercado. Naquele ano, o entorpecente chegou às favelas cariocas a preços inferiores aos da maconha.

Como aconteceu na Colômbia, o processo de narcotização em nosso país não comoveu o poder público. Lá como cá, aceitou-se passivamente sua inexorável dinâmica e óbvias conseqüências. Fato que levaria o escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez a lamentar, no jornal espanhol El País, muito mais tarde: “O mais surpreendente dos colombianos é sua curiosa capacidade de se acostumar com tudo. Alguns, talvez os mais sábios, nem sequer parecem estar cientes de viver em um dos países mais perigosos do mundo.”

O Brasil seria, hoje, uma futura Colômbia? Um dos diretores da empresa automobilística alemã Volkswagen no Brasil, Miguel Jorge, com a experiência de quem viveu décadas em Bogotá, diz que sim. Em um artigo escreveu: “... Diante de nossos olhos o Brasil caminha para se tornar uma nova Colômbia, à medida que o banditismo, assaltos, seqüestros e assassinatos ganham espaço na sociedade brasileira.”

Realmente, diante de nossos olhos, o Brasil caminha para ser uma Colômbia dos anos 70. As coincidências são impressionantes. Ações criminosas em busca de armas e petrechos bélicos alcançam já agora os quartéis do Exército e outras unidades militares. A autoridade policial em todo o país vem sendo desmoralizada com ataques a batalhões da PM, acesso a arsenais por via da corrupção e invasão de delegacias para o resgate de perigosos delinqüentes. Tal como na Colômbia nos anos 80, as prisões estão sob o controle dos chefes da droga. Estes ainda exercem influência política e eleitoral, possuem meios de comunicação sofisticados, telefones por satélites e armas poderosas. Todos esses elementos compõem o acervo do narcotráfico. Da mesma forma que no país cordilheirano, seu modo degenerado de ação alcança crianças, mulheres e idosos. A crueldade não tem limites.

Retórica sedutora, mas irreal

Ante essa guerra civil não declarada, qual é a resposta do Estado? A aprovação pelo Congresso de uma lei que: 1) reduz as penas para o traficante, 2) torna não hediondo o crime de tráfico ignorando, aliás, a própria Constituição (art. 5º, XLIII), 3) permite ao traficante pleitear o benefício do regime de progressão (na prática, a liberdade), tendo cumprido um terço da pena em regime fechado, 4) protege os proprietários das glebas produtoras de entorpecentes, apesar do que estabelece o artigo 243 da Constituição. Além de tudo, a nova lei não é capaz de distinguir o usuário do dependente, ao contrário da atual legislação 6368/76, e 5) segundo a Ordem dos Advogados do Brasil, do Rio de Janeiro, trata-se, portanto, de uma lei pró-traficante.

No fundo, pretende-se chegar à descriminalização dos entorpecentes. Tratar a droga como algo folclórico. O tom da campanha foi dado pelo novo secretário nacional antidrogas, que ao tomar posse no cargo, saiu-se com uma extravagância: “Fumar maconha não é crime...”

Para algumas autoridades, de olho em polpudas contribuições de organizações internacionais, a retórica da tolerância às drogas é, de fato, sedutora. O ensaio publicado na revista The Economist (28-07-2001), embora tenha oferecido um interessante panorama sobre o desafio dos entorpecentes, concluiu que somente programas de desintoxicação, reeducação e clínicas especializadas poderiam oferecer alguma esperança para a contenção do vicio. Isso é o mesmo que decretar o fim da esperança para países em desenvolvimento como o Brasil.

Para a Europa, vale o conselho. Para o Reino Unido, principalmente, que tem um PIB per capita de US$ 22 mil. E quanto a nós? Nosso PIB contabiliza menos de US$ 3 mil, além de uma dívida externa de US$ 600 bilhões. É com esses míseros US$ 2.900 mal distribuídos que devemos enfrentar o problema do analfabetismo real ou funcional, que avança além da metade de nossa população, o índice brutal de mortalidade infantil (42 menores de 5 anos morrem para cada mil nascidos vivos. A proporção no Reino Unido é de 6 para mil), um sistema de saúde em colapso e todas as demais carências que a reportagem parece ignorar.

Nossa tarefa deve ser dissuadir o consumo. Colocar um freio inibidor e não liberá-lo, como pretendem alguns irresponsáveis. É óbvio que, sem consumidor, não existe mercado.

O fracasso das fórmulas descriminalizantes

É expressivo o fracasso das fórmulas descriminalizantes. Na Inglaterra, o ministro do Interior David Blunkett iniciou recentemente em Lamberth, um subúrbio de Brixton, um projeto experimental que visa impedir a prisão de usuários apanhados em flagrante, apesar de a legislação britânica determinar a prisão para os drogados. Qual o resultado? Lamberth continua como uma das áreas mais violentas da Grã-Bretanha.

As Nações Unidas, por sua vez, analisaram os 25 anos da legislação permissiva holandesa. Quais os resultados? Diz a ONU: Nenhum dos objetivos pretendidos foi alcançado. Nem a redução da criminalidade, nem a segurança da sociedade, nem a prevenção. Em conseqüência de sua Lei do Ópio, a Holanda se encontra, atualmente, em primeiríssimo lugar entre as nações mais desenvolvidas em matéria de criminalidade. Eis a marca holandesa: 15 assassinatos por 100 mil habitantes. Um recorde de brutalidade, se compararmos com o Japão (1 assassinato para cada 100 mil habitantes), Espanha (1,6), Canadá (1,9), Noruega (2,1), Bélgica (3,1) Austrália (3,6), França (4,7), Dinamarca e Itália (4,9). Atualmente, segundo dados da ONU, cerca de 15% dos holandeses maiores de 12 anos são escravos da droga. Coffee-shops que distribuem a maconha legal também vendem as demais drogas. O país já é considerado um dos expoentes do narcoturismo. Legiões de viciados chegam do exterior para desfrutar da permissividade holandesa. Boa parte deles recebe tratamento médico ou metadona (substituto sintético da morfina), para que tentem abandonar o vício. Qual, porém, é o PIB per capita da Holanda? Cerca de US$ 25 mil, em doloroso contraste contra os nossos minguados US$ 2.900.

Países como Suíça e Portugal, que abriram suas portas aos entorpecentes, também se arrependem da liberalidade. A Suíça está voltando atrás. Quanto a Portugal, um informe do Observatório Europeu para a Droga (OED) revela que o país, atualmente, possui um dos maiores contingentes de vítimas da AIDS entre os consumidores de drogas injetáveis. Segundo a OED, a AIDS estaria alcançando cerca de 40 mil usuários de drogas naquele país. Peter Piot, um dos diretores da Onusida (órgão da ONU para o combate à AIDS) afirmou que: “Portugal enfrenta a pior situação da União Européia, suportando uma alta transmissão de AIDS entre os drogados, heterossexuais e um deficiente esforço de prevenção para controlar a dimensão do problema” (El País, 24/11/2001).

A enorme legião de brasileiros assassinados em função do avanço dos entorpecentes, a vulgarização do homicídio - crimes cada vez mais bárbaros, que desafiam a humanidade -, o crescimento sem paralelo dos seqüestros, tudo isso parece não ter importância para quem só enxerga votos pouco além do nariz. E vamos aceitando as chacinas, vivendo a incerteza das balas perdidas. O psicólogo norte-americano Robert MacCoun, professor de políticas públicas e legislação na Universidade da Califórnia (Berkeley), chamou a descriminalização das drogas de uma autêntica “redistribuição do mal”..., redistribuição entre os pobres. Parafraseando The Economist, é possível dizer que o Brasil vive tempos nebulosos, ou a idade da desordem, com a conivência de personalidades ilustres, governantes omissos, políticos comprometidos e burocratas autoritários. Aos brasileiros de boa vontade, que ainda sonham com a legalização, restaria a advertência: lembrai-vos da Colômbia, lembrai-vos da Holanda.

Sugestões para leitura

TEIXEIRA, I., A violência sem retoque - A trágica contabilidade da violência, Rio de Janeiro, ed. Cidade, 2002.

TEIXEIRA, I., “Funk, uma dança macabra? Drogas & genocídio” in Revista Problemas Brasileiros, São Paulo, ed. do Sesc, fevereiro/2001.

HOPENHAYN, M., La grieta de las drogas, desintegración social y politicas publicas en América Latina, Nova York, Nações Unidas, 1997.

LE BOT, I., Le temps des guerres communautaires, Paris, editions de la découverte, 1996.

Fonte: Ciência Hoje nº 181 (Abril de 2002)

Utopia e realidade - o desafio da nova Lei de Tóxicos

Abril de 2002, Ciência Hoje
Especial "Drogas" - 5ª parte

Adolfo Borges Filho
Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

É a lei capaz de vencer as drogas? Uma análise dos artigos presentes nas leis, como a nova Lei de Tóxicos, deixa claro que eles tratam questões como a dependência, a prevenção e a penalização de maneira utópica, bem aquém da realidade predominante. O desafio dos profissionais de direito é moldar essas referências em favor da verdade - e não da vaidade. O ponto de partida deve ser a condenação da própria droga como fator degradante da sociedade.

A reportagem publicada na revista The Economist, edição de 28 de julho de 2001, intitulada “Stumbling in the dark”, me fez voltar ao longínquo ano de 1982, quando exerci a Promotoria de Justiça perante uma das duas Varas Criminais da cidade do Rio de Janeiro, especializadas em infrações penais previstas na Lei de Tóxicos. Na década de 80, a situação das drogas era praticamente a mesma de hoje, mitigada apenas pelo menor número de infrações cometidas e por uma “sensação” de maior controle sobre o comércio ilícito, por parte dos órgãos de repressão. O saudoso psicanalista Hélio Pellegrino (1924-1988), no excelente artigo “Os barões das biroscas”, publicado no Jornal do Brasil (9/9/1987), descrevia o cenário vigente nas nossas favelas: “Aparecem nos morros os barões das biroscas, os potentados desdentados que caricaturam, goyescamente, os donos-da-vida cá de baixo. Os traficantes de drogas assumem o comando das favelas, com o acumpliciamento da polícia e do conjunto da sociedade. Há aqui uma ilustração dramática da verdade segundo a qual a ideologia da classe dominante é a ideologia de todo o corpo social. A favela, portanto, cresce e multiplica, ao preço de que suas lideranças fiquem nas mãos de traficantes e delinqüentes. A ordem perversa dos morros, ao contrário do que parece, faz o jogo do conservantismo de direita. O tráfico de drogas subsidia o mínimo conforto do morro, sem agravamento do déficit público, aplicado às mutretas da praxe. (...) Além do mais, há grandes traficantes de drogas que utilizam a delinqüência das favelas para manter e expandir seus negócios. Favela não produz cocaína: de onde vem a droga?”

Quando reflito sobre a minha atuação, por quase um ano, na Vara de Tóxicos, a memória traz um vago sentimento de incompletude originado pela impossibilidade de levar a julgamento, com raras exceções, grandes traficantes e pela impossibilidade de realizar um trabalho mais eficaz com relação a usuários e dependentes. Os condenados por tráfico eram, na maioria absoluta, “aviões”, camelôs de maconha ou cocaína, presas fáceis da polícia e candidatos à desgraça no sistema penitenciário. Lembro-me de uma favelada grávida que entrou no meu gabinete, arrastando dois filhos pelas mãos, protestando veementemente contra a prisão do seu companheiro “simplesmente porque ele estava vendendo droga para os bacanas”... A seu ver, ele não era criminoso porque havia deixado de praticar pequenos roubos. Vender maconha, para ela, não era crime!

Tratamento em vez de punição penal

Abrindo um parêntese para falar sobre a impunidade dos grandes criminosos (traficantes de drogas, traficantes de armas, traficantes de vidas...), reproduzo um trecho do artigo de minha autoria “A vaidade e as formas jurídicas: limites éticos ao princípio da ampla defesa”, publicado na Revista do Ministério Público (nº 13, jan/jun 2001): “Quando o criminoso é do ‘colarinho branco’, a realidade processual pode assumir contornos teratológicos, dando ensejo a que corrupção e tráfico de influência se fundam numa fórmula explosiva. Na fase investigatória, o sonho dourado de advogados inescrupulosos é que a polícia se transforme na filial de seus próprios escritórios, produzindo as ‘testemunhas de viveiro’ e as ‘perícias de encomenda’. Nesse arremedo de advocacia, é preciso afastar os policiais honestos e combater o poder investigatório e fiscalizatório do Ministério Público, para que a defesa criminosa não seja surpreendida com a descoberta da verdade. Na fase processual, propriamente dita, entram em cena nulidades absurdas, dando ensejo às preliminares de mérito. Os habeas corpus, sem fundamentação plausível, são impetrados no afã de se conseguir a liberdade provisória do ‘bacana injustiçado’ ou mesmo o trancamento da ação penal por ausência de ‘justa causa’. Se as manobras espúrias encontram acolhimento, a punição que a sociedade espera vai se distanciando e, ao cabo de tudo, assoma como inexistente. A distorção da verdade real é uma hipocrisia insuportável e altamente danosa para o corpo social.”

Quanto aos usuários e dependentes, temia a aplicação, pura e simples, do artigo 16 da Lei nº 6368/76, cominando pena de detenção de seis meses a dois anos, porque não acreditava no sistema penitenciário como local apropriado para a recuperação de viciados. O Estado tinha obrigação de arcar com o seu tratamento. Mesmo com a aplicação do sursis (suspensão condicional da pena), o dependente acabava entregue à própria sorte, estigmatizado por uma condenação criminal e com séria probabilidade de voltar a ser preso em flagrante, dessa vez sem a possibilidade da suspensão condicional da pena.

A recente Lei nº 10.409, de 11 de janeiro de 2002, deu importante passo com relação a esse tema. Fica claro, pelo próprio título da Seção II, que essas pessoas, ao contrário de prisão, merecem tratamento. Vale a pena transcrever os cinco parágrafos que compõem o artigo 12 do referido diploma legal: “O tratamento do dependente ou do usuário será feito de forma multiprofissional e, sempre que possível, com a assistência de sua família; cabe ao Ministério da Saúde regulamentar as ações que visem à redução dos danos sociais e à saúde; as empresas privadas que desenvolverem programas de reinserção no mercado de trabalho, do dependente ou usuário de produtos, substâncias ou drogas ilícitas, ou que causem dependência física ou psíquica, encaminhados por órgão oficial, poderão receber benefícios a serem criados pela união, estados, distrito federal e municípios; os estabelecimentos hospitalares ou psiquiátricos, públicos ou particulares, que receberem dependentes ou usuários para tratamento, encaminharão ao Conselho Nacional Antidrogas -- CONAD, até o dia 10 de cada mês, mapa estatístico dos casos atendidos no mês anterior, com a indicação do código da doença, segundo a classificação aprovada pela Organização Mundial de Saúde, vedada a menção do nome do paciente; no caso de internação ou de tratamento ambulatorial por ordem judicial, será feita comunicação mensal do estado de saúde e recuperação do paciente junto ao juízo competente, se esse o determinar.”

A Lei pecou, entretanto, no tratamento penal dispensado aos traficantes. Felizmente, graças à atuação do Ministério Público Brasileiro, o Presidente da República vetou parcialmente o projeto evitando assim o abrandamento das punições a eles prescritas. O jornalista Ricardo Boechat, na coluna Informe JB (Jornal do Brasil, 4/1/2002), fez o seguinte alerta: “A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público envia carta a FH, segunda-feira, pedindo veto total à nova Lei dos Tóxicos. Para a entidade, o texto parido pelo Congresso é inaproveitável. Entre outras barbaridades, por favorecer escandalosamente os traficantes.”

O Jornal da Tarde, na sua edição de 9 de janeiro de 2002, trouxe a seguinte manchete: “FHC vetará parte da Lei Antidrogas”, realçando que “um dos artigos mais polêmicos permite que traficantes cumpram dois terços da pena em regime semi-aberto.”

Isolamento e recuperação

No submundo do tráfico, a “sanção penal” adotada é a pena de morte, aplicada, na maioria dos casos, com requintes de crueldade. Não somos partidários da pena de morte mas de “penas de vida”, onde se conjugue a punição - o isolamento social - com a possibilidade de recuperação do marginalizado. Essa recuperação não se dá através de artifícios como o regime semi-aberto, do modo como é atualmente concretizado. Tampouco com penas curtas, cumpridas em “chiqueiros” onde o traficante poderoso, através da corrupção, consegue regalias e se destaca na massa carcerária como chefe de facção, continuando o seu domínio dentro do próprio sistema carcerário.

Em artigo publicado no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (nº 96, novembro de 2000), registrei o seguinte: “O que hoje praticamos, em termos de sistema correcional, é uma gigantesca hipocrisia. Temos uma Lei de Execução Penal (LEP) moderna que não vem sendo aplicada por falta total de infra-estrutura”.

A Lei nº 7.210, de 11/7/1984, contém os seguintes artigos: “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do interno; ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei; a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade”.

Mais adiante, vamos encontrar o artigo 88 com as seguintes recomendações: “O condenado será alojado em cela individual, que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório. São requisitos básicos da unidade celular: a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores da aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana; b) área mínima de seis metros quadrados.”

A progressão de regime prisional, por exemplo, é extremamente salutar. A LEP prevê que o cumprimento da pena no regime semi-aberto se faça em estabelecimento industrial, agrícola ou similar. No entanto, o regime semi-aberto hoje nada mais é do que um artifício de esvaziamento carcerário e uma chance de reincidência para os que conseguiram ultrapassar incólumes (ao menos fisicamente) as agruras do regime fechado. No regime semi-aberto, o que se tem, ao contrário do que a lei preconiza, é uma quase liberdade. O interno dorme na penitenciária e durante o dia trabalha em liberdade. Em uma sociedade assolada pelo desemprego e pelo subemprego, fica difícil imaginar que um quase-egresso, com curriculum vitae desabonador, consiga uma boa colocação empregatícia... Muitos se acobertam na própria estrutura do regime semi-aberto para evoluírem na carreira do crime, que é muito mais rendosa.

Esporte, arte e cultura como prevenção

A questão da droga é altamente polêmica. As opiniões se multiplicam em um caleidoscópio de sugestões e de críticas que se embaralham formando um quebra-cabeça gigantesco, na busca de uma verdade lógica que jamais será atingida. Juridicamente falando, entendemos que “o ponto de partida é a condenação da própria droga como fator degradante do corpo social”. Segue-se então que, no terreno da infração penal, deve-se distinguir o dependente do traficante. Para o primeiro, tratamento e penas alternativas. Para o segundo, penas longas em prisão de segurança máxima, respeitada, na íntegra, quanto às condições materiais carcerárias, a Lei de Execução Penal vigente.

O programa dos “Doze passos”, preconizado por associações como Alcoólicos Anônimos e Narcóticos Anônimos, tem feito milagres nessa área do vício. A nova Lei de Tóxicos alinhava, no artigo 10, as seguintes medidas de prevenção: “Incentivar atividades esportivas, artísticas e culturais; promover debates de questões ligadas à saúde, cidadania e ética; manter nos estabelecimentos de ensino serviços de apoio, orientação e supervisão de professores e alunos; manter nos hospitais atividades de recuperação de dependentes e de orientação de seus familiares.” No final do filme Traffic, de Steve Sorderbergh, vislumbra-se de forma precisa como se dá o verdadeiro combate ao entorpecente: no âmago de cada ser humano envolvido.

Sugestões para leitura

GOMES, L..F., Penas e medidas alternativas à prisão, São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 1999.

ZAFFARONI, E. R., Em busca das penas perdidas, Rio de Janeiro, ed. Revan, 1991.

GROF, C., Sede de plenitude: apego, vício e o caminho espiritual, Rio de Janeiro, ed. Rocco, 1996.

RAHM, H. J., Doze passos para os cristãos: jornada espiritual com amor-exigente, São Paulo, ed. Loyola, 1999.

Fonte: Ciência Hoje nº 181 (Abril de 2002)

Drogas psicotrópicas e a política de saúde pública no Brasil

Abril de 2002, Ciência Hoje
Especial "Drogas" - 6ª parte


Ana Regina Noto (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas [CEBRID], Departamento de Psicobiologia, Universidade Federal de São Paulo) e Maria Lucia O. S. Formigoni (Unidade de Dependência de Drogas [UDED], Departamento de Psicobiologia, Universidade Federal de São Paulo).

Na década de 1980, a falta de conhecimento sobre o consumo de drogas psicotrópicas no Brasil levou o país a adotar o modelo de política repressiva exportado pelos Estados Unidos, para o combate principalmente da maconha e cocaína. Vinte anos depois, o número de usuários dessas substâncias cresceu, denunciando a inadequação de medidas exclusivamente repressivas. Os problemas de saúde decorrentes do consumo de álcool, tabaco, solventes e medicamentos psicotrópicos continuaram sendo maiores do que os provocados por drogas ilícitas, mas as políticas de saúde se mostram negligentes frente à questão. Urge criar uma política de saúde pública respaldada em dados científicos, que permita criar campanhas adequadas a cada setor da sociedade envolvido no problema.

O enorme volume de informações disponíveis sobre drogas psicotrópicas atualmente tem gerado mais dúvidas do que conhecimento. Sem contar que as informações válidas para uma determinada sociedade podem não se aplicar a outras culturas ou realidades sociais e econômicas diversas.

O Brasil apresenta diferenças regionais marcantes quanto ao poder aquisitivo da população, acesso à saúde, nível de educação e peculiaridades culturais, que se refletem no cenário do consumo de drogas psicotrópicas. No entanto, existem poucos estudos consistentes nessa área. A carência de dados abre espaço para especulações e, portanto, deixa o país vulnerável a políticas públicas importadas, quase sempre inadequadas à nossa realidade.

Um exemplo histórico ocorreu na década de 1980. Considerado rota de tráfico, o Brasil começou a receber forte influência do movimento intolerante e repressivo dos Estados Unidos. Até então, não se tinha idéia da situação nacional, o que abriu espaço para diversas medidas repressivas. Baseando-se em dados estrangeiros, a mídia passou a enfatizar excessivamente o consumo de maconha e cocaína, despertando a curiosidade da população e mobilizando a opinião pública. Os primeiros estudos abrangentes, realizados no final da década de 1980, mostraram que naquele momento a situação nacional era diferente da norte-americana, sendo muito inferior e relativamente estável o número de estudantes usuários de substâncias ilícitas.

Por outro lado, o número de usuários e os problemas de saúde decorrentes do consumo de álcool, tabaco e medicamentos psicotrópicos (substâncias que também atuam no sistema nervoso alterando o comportamento) superavam em muito os de drogas ilícitas. Um estudo realizado entre estudantes de 1º e 2º graus em 1987, em 10 capitais brasileiras, mostrou que cerca de 75% dos jovens já haviam consumido bebidas alcoólicas e 22% já tinham fumado tabaco. O uso de inalantes (lança-perfume, loló, cola, entre outros) foi relatado por 14,7%, e o de medicamentos psicotrópicos por 12,1%, proporções muito maiores que as de maconha (2,8%) e cocaína (0,5%). Na mesma ocasião, o álcool era responsável por 95% das internações hospitalares decorrentes do uso de drogas, enquanto, para a maconha, esse índice era de 1,4% e, para a cocaína, de 0,8%.

O crescimento das drogas no Brasil

A partir da década de 90, o número de usuários de cocaína realmente começou a aumentar. O índice de uso entre estudantes, que era de 0,5% em 1987, quadruplicou passando a 2,0% em 1997. Porém, esse aumento não se deu de forma homogênea no país, concentrando-se principalmente nas regiões Sul e Sudeste. Quantidades cada vez maiores de drogas foram apreendidas, e os atendimentos hospitalares decorrentes do uso de cocaína tornaram-se mais freqüentes Ao longo dessa década, derivados da coca começaram a ganhar a preferência em algumas cidades brasileiras, como o crack (cristais fumados em cachimbo) em São Paulo e a merla (espécie de pasta também fumada) em Brasília, aumentando ainda mais os índices de problemas de saúde.

Na década de 1990, também cresceu o número de usuários de maconha no Brasil. O índice de uso entre estudantes, que era de 2,8% em 1987, passou para 7,6% em 1997. A opinião pública, entretanto, foi se tornando cada vez mais tolerante em relação ao uso dessa droga, graças à divulgação de informações sobre seu potencial terapêutico e debates sobre a descriminalização. As conseqüências do seu uso, no entanto, não têm merecido o mesmo destaque, permitindo a propagação de uma falsa idéia de inocuidade. Embora em curto prazo os efeitos prejudiciais da maconha não sejam tão evidentes quanto os da cocaína, ela causa problemas de concentração e memória, dificultando a aprendizagem e a execução de tarefas como dirigir ou operar máquinas. O uso contínuo pode causar tosse crônica, alteração da imunidade, redução dos níveis de testosterona e desencadear doenças mentais como esquizofrenia, depressão e crises de pânico. É muito comum a observação da síndrome amotivacional (redução do interesse e de motivação pela vida) em usuários crônicos.

Álcool, inalantes e psicotrópicos: negligência

Apesar do pouco destaque dado na imprensa ao consumo de inalantes (solventes, como cola de sapateiro, cheirinho-da-loló, lança-perfume), ele é muito comum entre os jovens brasileiros. Em 1997, 13,8% dos estudantes já haviam experimentado algum tipo de inalante. Essa realidade é observada desde a década de 1980 e em todas as regiões do país, mas as políticas públicas nacionais ainda abordam o tema de forma superficial.

Negligência ainda mais séria envolve o consumo de bebidas alcoólicas. O álcool vem sendo, de longe, a droga mais consumida e a que gera mais problemas para a população brasileira. Um estudo realizado em Salvador (BA) observou que 37% dos motoristas envolvidos em acidentes de trânsito relataram estar sob efeito de bebidas alcoólicas. Além dos acidentes e problemas no trabalho, o álcool é responsável por mais de 80% dos casos de internações hospitalares por dependência. Um em cada 10 homens aproximadamente é ou já foi dependente de álcool. No entanto, as medidas preventivas e de controle são incipientes: há pouco rigor na proibição de venda para jovens e as informações sobre os riscos decorrentes do uso destoam do excesso de liberdade para as propagandas de bebidas alcoólicas.

Alguns estudos nacionais também denunciam a grave realidade relacionada ao uso de medicamentos psicotrópicos, como os ansiolíticos e as anfetaminas. Embora exista uma legislação abrangente e até mesmo burocrática, de controle da prescrição e venda desses medicamentos, estudos recentes indicam carência de fiscalização e descuido por parte de alguns profissionais de saúde (médicos e farmacêuticos), o que facilita seu uso excessivo e inadequado. Em 1999, um levantamento realizado em dois municípios do estado de São Paulo verificou falsificações em receitas de psicotrópicos, como numeração oficial repetida e até algumas emitidas por médicos que haviam falecido há anos, ou que tinham sido cassados. Também foram observados exageros de prescrição, como o caso de um médico que havia emitido cerca 8 mil receitas de psicotrópicos em 1999. Tais situações podem ser decorrentes da falta de formação profissional adequada, o que leva não só ao uso inapropriado de medicamentos, mas também a dificuldades para detectar e tratar usuários abusivos ou dependentes de psicotrópicos.

Descompasso entre realidade e políticas públicas

Uma avaliação geral sobre o consumo de drogas no Brasil revela um grande descompasso entre a legislação, as políticas públicas e os problemas reais de saúde da população brasileira. Nas últimas décadas, as poucas mudanças no panorama nacional do consumo de drogas psicotrópicas foram para pior, especialmente no que se refere ao aumento no consumo de drogas ilícitas (maconha e cocaína). Esse quadro mostra que as medidas adotadas nos últimos anos não tiveram a eficácia esperada. É essencial, portanto, estudar formas alternativas de se lidar com essa questão. Vários países vêm buscando soluções, mas até o momento nenhum parece ter atingido plenamente a meta pretendida.

As experiências mais bem sucedidas são, em geral, resultado da combinação de múltiplas intervenções, de modo coordenado e adequadas às características específicas da população alvo. Um programa elaborado para adolescentes de classe média, por exemplo, provavelmente não será eficaz se aplicado a uma população mais velha ou a crianças moradoras de rua. Não existem, portanto, “fórmulas mágicas” ou universais.

A história mostra que é utópico imaginar um país completamente livre do uso de drogas. As metas de intervenção não podem se restringir apenas ao controle do consumo, mas devem visar à melhoria das condições sociais e de saúde, assim como a liberdade individual, sem deixar de contabilizar os custos sociais. Urge, portanto, uma política integrada e coerente, respaldada em dados científicos que demonstrem claramente a diversidade e as diferentes necessidades de cada comunidade na qual se pretenda intervir.

Sugestões para leitura

MASUR, J. e CARLINI, E. A., Drogas: subsídios para uma discussão, São Paulo, ed. Brasiliense, 1989.

SEIBEL, S. D. e TOSCANO, A. T., Dependência de drogas, São Paulo, ed. Atheneu, 2001.

GALDURÓZ, J. C.; NOTO, A. R.; NAPPO, S. A. e CARLINI, E. A., Primeiro levantamento domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas. Parte A, São Paulo, ed. Balieiro, 2000.

NOTO, A. R., “O uso de drogas psicotrópicas no Brasil: últimas décadas e tendências” in O mundo da saúde, 23 (1): 5-9, 1999.

Fonte: Ciência Hoje nº 181 (Abril de 2002)

Legalizar drogas não, descriminalizar sim

Abril de 2002, Ciência Hoje
Especial "Drogas" - 7ª parte

Alessandra Pereira

Elisaldo Carlini é o primeiro brasileiro a integrar a Junta Internacional de Controle de Narcóticos (INCB, na abreviação em inglês), órgão ligado à Organização das Nações Unidas (ONU) e responsável pelo monitoramento da produção e do comércio de entorpecentes no mundo. Foram duas as indicações da Organização Mundial de Saúde (OMS) até que o médico paulista aceitasse o convite. O primeiro ocorreu em 1994. Na mesma época, no entanto, Carlini optou por assumir a Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, atual Agência Nacional de Vigilância Sanitária. "Não poderia acumular as duas funções, pois haveria conflito de interesses. Não seria possível defender as diretrizes da ONU sendo membro do governo brasileiro", explica. No ano passado, recebeu novamente a indicação da OMS e foi eleito para a Junta. Dessa vez, o convite foi aceito. "É motivo de orgulho para mim o fato de a OMS reconhecer que no Brasil há alguém capaz de representá-la entre as nações". Carlini toma posse no próximo mês, em Viena.

Atualmente com 71 anos de idade e 45 de profissão, o também professor aposentado pela Universidade Federal de São Paulo dirige um dos mais renomados institutos brasileiros de pesquisa sobre drogas - o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas -, dedicando 10 horas diárias à instituição. Nesta entrevista, defende temas polêmicos, como a descriminalização das drogas e o uso medicinal da maconha.

Alessandra Pereira (Ciência Hoje) - O senhor é o primeiro brasileiro eleito para a Junta Internacional de Controle de Narcóticos. Qual será sua atuação no órgão?

Elisaldo Carlini - A Junta Internacional de Controle de Narcóticos ou International Narcotics Control Board (INCB) tem o amparo da ONU, mas não está sujeita a suas determinações. A função da junta é estabelecer como devem ser feitos a produção, a colheita, o monitoramento dos estoques mundiais e o transporte de drogas narcóticas entre os países. É ela quem autoriza a emissão de licenças para importação e exportação dessas substâncias e define quais drogas precisam de mais ou de menos controle e aquelas que poderiam deixar de ser controladas. Esse órgão é composto por 13 membros, que não podem ter nenhuma ligação oficial com os governos de suas nações de origem para evitar conflito de interesses.

A minha função nos próximos cinco anos é tentar melhorar o controle dos entorpecentes, o que implica verificar por que um país pede para importar determinada quantidade de morfina e, no ano seguinte, solicita mais que o dobro, por exemplo. Vou atuar na área de substâncias psicoativas. Terei de ir duas vezes por ano à sede da Junta, em Viena, pelo prazo de cerca de um mês e deverei ainda estar disponível para fazer auditorias nos diferentes países.

O controle, mais ou menos eficiente, que monitora a produção da papoula - planta da qual é extraído o ópio, usado na produção de morfina -, consegue diminuir o tráfico, mas cria um problema sério que é a pouca disponibilidade desses produtos para doentes terminais. O Brasil é um país com um consumo de morfina 20 vezes menor que o necessário para minorar a dor dos pacientes terminais. Controla-se de tal maneira o abuso que o uso médico acaba sofrendo restrição. É um dos pontos básicos a serem resolvidos pela Junta em 2002.

Alessandra Pereira (Ciência Hoje) - A Junta controla a produção e o comércio de entorpecentes e faz os países seguirem três convenções internacionais. O que elas determinam?

Elisaldo Carlini - A Convenção Única sobre Drogas Narcóticas, publicada em 1961, estabeleceu as primeiras diretrizes de fiscalização internacional das substâncias narcóticas. Entre elas, a morfina é a mais importante. A codeína [como a morfina, ela é elaborada a partir do ópio com finalidade analgésica], a heroína e o ópio também foram incluídos. Em 1971, foi assinada a segunda convenção - a de drogas psicotrópicas. Com ela, passaram a ser controlados as anfetaminas, os barbitúricos e os benzodiazepínicos. Em 1988, saiu a terceira convenção internacional, a dos precursores de reagentes químicos para produção de drogas de abuso. A cocaína, por exemplo, está incluída na convenção de 1961, mas não seus reagentes. Para fabricá-la, é preciso ácido clorídrico, permanganato, acetona. A partir do acordo de 1988, exerce-se controle sobre as substâncias necessárias para a produção dessa droga.

Alessandra Pereira (Ciência Hoje) - Qual o papel da Junta com relação à política interna dos países?

Elisaldo Carlini - Ela não pode interferir na soberania de cada nação, mas tem uma força moral muito grande. Quando o órgão envia um relatório [publicado anualmente em fevereiro] sobre a situação dos diferentes países, nele estão apontados quais não cumprem a lei ou não fornecem os dados para o relatório. É o caso do Brasil, que no último relatório não respondeu várias questões. Essa situação ocorre com freqüência. Se um país desobedece às regras, a Junta pode pedir aos demais que não exportem para ele medicamentos ou drogas importantes. É uma espécie de “embargo”, porque os outros países geralmente acatam a posição do órgão.

Alessandra Pereira (Ciência Hoje) - Como o Brasil aparece nos relatórios?

Elisaldo Carlini - O relatório de 2000 faz críticas à capacidade operacional das autoridades brasileiras responsáveis pelo registro, controle e inspeção de drogas psicotrópicas. Em relação a essas substâncias, há outro ponto no documento que preocupa a Junta: o abuso do consumo de drogas para emagrecer na América do Sul. Os três países mais atingidos pelo problema - Argentina, Brasil e Chile - têm, por recomendação do INCB, tomado medidas administrativas e legislativas. A diminuição já foi relatada no Chile, enquanto os outros dois países ainda tentam superar o problema. O Brasil é campeão mundial em consumo de medicamentos para emagrecer.

Alessandra Pereira (Ciência Hoje) - A revista inglesa The Economist publicou, em julho de 2001, uma reportagem na qual afirma que a legalização das drogas traria mais benefícios que problemas. A matéria também menciona que o mercado dessas substâncias é altamente rentável e organizado e movimenta em torno de U$ 400 bilhões por ano - valores próximos aos da indústria mundial de petróleo. É possível combater um problema com essa dimensão?

Elisaldo Carlini - Não podemos lidar com o problema dos entorpecentes unicamente sob o ponto de vista econômico. Há dois outros aspectos fundamentais: a visão médica e o sofrimento do ser humano. E esses devem prevalecer. É importante abordar com cautela a legalização e a descriminalização. Sou contra a legalização, acredito que seria imoral tornar legal o uso da heroína porque um determinado país deixa de arrecadar milhares de dólares com a venda dela. O governo dá o aval e é como se dissesse: “Legaliza essa droga porque a questão da saúde não é importante”. A diferença é grande em relação à descriminalização. Se fizermos isso, não estaremos inocentando a droga, mas afirmando que seu uso não é criminoso. A abordagem muda. Continuamos a afirmar que droga faz mal, mas o indivíduo não vai para a cadeia por isso. Posso me aproximar de uma pessoa que está sofrendo e tem problemas de dependência, sem que ela tenha medo de ser punida. Sou a favor da descriminalização de todas as drogas. Estamos lidando com indivíduos doentes. Para funcionar, o governo precisa simultaneamente esclarecer sobre os benefícios e prejuízos do uso dessas substâncias. Por meio de uma propaganda séria, honesta e insistente, devemos dar ao cidadão o direito de fazer sua própria opção.

Alessandra Pereira (Ciência Hoje) - A aprovação pelo Congresso de penas alternativas para o usuário de drogas é o primeiro passo para que ele deixe de ser tratado como criminoso?

Elisaldo Carlini - Sem dúvida. Antes disso, quem tinha problemas com drogas não podia, em tese, sequer procurar aconselhamento. Até então, ao buscar ajuda, essa pessoa se identificava como alguém que exercia uma atividade criminosa. Retirar a questão dos entorpecentes da esfera policial é formidável. Reconheço que, para muitos que consomem drogas, elas não são problema porque esses usuários sabem se controlar. Como acontece comigo agora que consigo fumar cigarros só às vezes.

Não vejo maiores problemas em fumar, beber ou consumir drogas esporadicamente, em condições controladas, se é a pessoa quem determina o momento de fazer uso. O complicado é quando ocorre o contrário, quando a droga programa a vida do usuário. Conheci um senhor dependente de álcool que, em vez de pegar o ônibus na esquina perto de casa para ir ao trabalho, caminhava três quarteirões a mais até o outro ponto porque havia um bar no caminho. Esse é um exemplo típico da vida condicionada pela droga.

Alessandra Pereira (Ciência Hoje) - O que pode ser feito no Brasil para elaborar uma política antidrogas efetiva?

Elisaldo Carlini - É preciso que um centro, do governo ou não, elabore programas e que exista continuidade nessas ações. Já fiz parte de mais de sete comissões para estabelecer a política nacional antidrogas. Pelo menos quatro editaram um programa que deveria ser implementado. Nenhum deles foi colocado em prática. Mudava o governo e tudo era “enterrado”. No Brasil, o poder público tem uma característica única: os chefes do momento tentam destruir o que foi criado pelo antecessor. Considero importante também dizer que qualquer programa baseado exclusivamente em repressão não vai funcionar. O governo norte-americano, quando criminalizava as drogas - atualmente, muitos estados têm uma política menos severa -, chegou a prender em um ano 500 mil jovens por uso de maconha.

Alessandra Pereira (Ciência Hoje) - A taxa de prisão por porte de drogas nos Estados Unidos é maior que o número de detenções por todos os tipos de crimes em alguns países da Europa. Já países como a Holanda, onde a maconha é vendida em quantidades controladas nos coffee shops, adotam uma política mais liberal. Qual é o modelo mais adequado?

Elisaldo Carlini - Prefiro o da Holanda, pois a repressão não resolve a situação e acaba criando o submundo das drogas. Amsterdã tem algumas experiências interessantes. Nos coffee shops, os próprios freqüentadores condicionam o uso da droga. Ninguém injeta outras mais pesadas nesses lugares. A maconha é para uso pessoal. Outro aspecto que vale a pena ressaltar é a implantação de programa de redução de danos. Uma equipe médica vai até os locais de uso e aplica drogas, como heroína, nos dependentes, desde que eles devolvam a seringa anterior. Os casos de AIDS nessas áreas não chegam a 10% entre os usuários, enquanto em cidades como Barcelona e Milão atingem até 30%.

Alessandra Pereira (Ciência Hoje) - Qual a sua avaliação dos serviços de tratamento?

Elisaldo Carlini - Acho que poderíamos ter centros de tratamento mais eficientes. Qualquer modelo terapêutico no mundo consegue recuperar, em um período de dois anos, 30% dos pacientes. Sem tratá-los, a taxa de recuperação é a mesma: entre 25% e 30%. Para a medicina, melhorar a vida de 25 pessoas já é significativo, mas, do ponto de vista de saúde pública, tratamento - assim como a repressão - não é a melhor solução. Acho que a única maneira eficaz de lidar com as drogas é evitar o uso através da prevenção. Isso tem de ser feito com os jovens. A vida miserável acaba, porém, levando ao abuso dessas substâncias. Para discutir prevenção, o governo precisa pensar claramente como a população vive e quais os problemas que agravam a saúde dela. A única atitude que resolveria a questão é a menos prestigiada pelo governo brasileiro: quase nenhuma verba pública é destinada à prevenção.

Alessandra Pereira (Ciência Hoje) - O senhor foi secretário da Vigilância Sanitária de 1995 a 1997 e, ao sair, fez algumas críticas ao órgão. Quais foram as dificuldades enfrentadas e como define sua passagem pela Vigilância?

Elisaldo Carlini - Uma desgraça, devido à inutilidade do esforço dedicado. Propus reformular a classificação dos medicamentos e instaurar o programa de farmacovigilância. Tive total apoio do ministro [da Saúde] Adib Jatene, que me convidou para o cargo. Criamos nesse período um programa de inspeção da indústria farmacêutica brasileira. As dificuldades foram as mais diversas. Durante os dois anos, não consegui gastar nem 20% do orçamento que diziam que a Vigilância Sanitária tinha mas não estava disponível. A Vigilância não tinha sequer um livro técnico. Em 1996, chegamos inclusive a marcar a data de inauguração da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, mas, com a saída de Jatene, todos os programas foram abandonados. O ministro incompatibilizou-se com o governo porque ele quis realmente resolver os problemas de saúde do país. No período em que estive na secretaria, muitos interesses foram contrariados. Cassamos a licença de funcionamento de mais de 200 laboratórios. Em alguns lugares ditos laboratórios funcionavam padarias. Nos dois anos anteriores a minha entrada (1993 e 1994), haviam sido feitas 25 inspeções. Nós fizemos mais de mil. A falsificação de medicamentos em 1997 e em 1998 ocorreu em conseqüência da interrupção do programa de inspeção. Agora, felizmente, esses projetos estão voltando. Se a Vigilância Sanitária não tiver certeza da continuidade de programação, é melhor não implantar nenhuma proposta.

Fonte: Ciência Hoje nº 181 (Abril de 2002)
 

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