segunda-feira, 1 de abril de 2002

A idade da desordem

Abril de 2002, Ciência Hoje
Especial "Drogas" - 4ª parte

Ib Teixeira
Economista e advogado, pesquisador de temas sociais aposentado, Fundação Getúlio Vargas/RJ.

A relação entre drogas e criminalidade é indiscutível. Estatísticas mostram que nos países em que foram adotadas medidas descriminalizantes dos entorpecentes o número de crimes aumentou, paralelamente a problemas como a maior incidência de AIDS, caso de Portugal, e o narcoturismo, caso da Holanda. No Brasil, estudos apontam que 80% dos crimes são ligados ao mercado de tóxicos. A descriminalização não é a melhor maneira de combater ambos os males - crimes e drogas -, pois pode levar o país a um processo de narcotização semelhante ao da Colômbia.

Como um verdadeiro maremoto, as drogas avançam sobre o Brasil. A força destruidora dessa invasão é impulsionada pelo terror, os extermínios, a desintegração social, um quase genocídio e razoável poder político. Uma análise das causas de óbitos nas grandes cidades brasileiras, ao longo dos últimos 50 anos, evidencia a participação das drogas leves e pesadas no crescimento exponencial do obituário. No mercado de compra e venda dos entorpecentes está a origem de 80% dos crimes de sangue.

Na cidade do Rio de Janeiro, entre 1942 e 1990, os assassinatos saltaram de 3,8 para 59 por grupo de 100 mil habitantes. Isso significa um crescimento de 1.458%, em contraste com o avanço de todos os óbitos no mesmo período: apenas 82,72%. Nos 20 anos que se seguiram ao dumping colombiano e à invasão da cocaína no mercado brasileiro - entre 1970 e 1990 -, verifica-se a seguinte evolução dos homicídios por 100 mil indivíduos: 1970 = 8,67; 1980 = 17,33; 1990 = 59.

O panorama não é diferente na grande São Paulo. Após a invasão da cocaína, o número de homicídios saltou de 2.300, em 1980, para 13 mil, em 1998. Um crescimento, portanto, de 465%. Como se comportou o total de óbitos em São Paulo no mesmo período? Subiu apenas 19%! Hoje, por incrível que pareça, o Brasil registra mais homicídios provocados pela droga do que a própria guerra civil colombiana.

Brasil: uma futura Colômbia?

Em 1974, denunciamos o início do processo de dumping da cocaína em uma reportagem intitulada “O Brasil na rota da cocaína” na revista Manchete. Cartéis colombianos, então bloqueados pela ação norte-americana antidrogas, concluíram que o Brasil seria uma nova plataforma para a expansão do mercado. Naquele ano, o entorpecente chegou às favelas cariocas a preços inferiores aos da maconha.

Como aconteceu na Colômbia, o processo de narcotização em nosso país não comoveu o poder público. Lá como cá, aceitou-se passivamente sua inexorável dinâmica e óbvias conseqüências. Fato que levaria o escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez a lamentar, no jornal espanhol El País, muito mais tarde: “O mais surpreendente dos colombianos é sua curiosa capacidade de se acostumar com tudo. Alguns, talvez os mais sábios, nem sequer parecem estar cientes de viver em um dos países mais perigosos do mundo.”

O Brasil seria, hoje, uma futura Colômbia? Um dos diretores da empresa automobilística alemã Volkswagen no Brasil, Miguel Jorge, com a experiência de quem viveu décadas em Bogotá, diz que sim. Em um artigo escreveu: “... Diante de nossos olhos o Brasil caminha para se tornar uma nova Colômbia, à medida que o banditismo, assaltos, seqüestros e assassinatos ganham espaço na sociedade brasileira.”

Realmente, diante de nossos olhos, o Brasil caminha para ser uma Colômbia dos anos 70. As coincidências são impressionantes. Ações criminosas em busca de armas e petrechos bélicos alcançam já agora os quartéis do Exército e outras unidades militares. A autoridade policial em todo o país vem sendo desmoralizada com ataques a batalhões da PM, acesso a arsenais por via da corrupção e invasão de delegacias para o resgate de perigosos delinqüentes. Tal como na Colômbia nos anos 80, as prisões estão sob o controle dos chefes da droga. Estes ainda exercem influência política e eleitoral, possuem meios de comunicação sofisticados, telefones por satélites e armas poderosas. Todos esses elementos compõem o acervo do narcotráfico. Da mesma forma que no país cordilheirano, seu modo degenerado de ação alcança crianças, mulheres e idosos. A crueldade não tem limites.

Retórica sedutora, mas irreal

Ante essa guerra civil não declarada, qual é a resposta do Estado? A aprovação pelo Congresso de uma lei que: 1) reduz as penas para o traficante, 2) torna não hediondo o crime de tráfico ignorando, aliás, a própria Constituição (art. 5º, XLIII), 3) permite ao traficante pleitear o benefício do regime de progressão (na prática, a liberdade), tendo cumprido um terço da pena em regime fechado, 4) protege os proprietários das glebas produtoras de entorpecentes, apesar do que estabelece o artigo 243 da Constituição. Além de tudo, a nova lei não é capaz de distinguir o usuário do dependente, ao contrário da atual legislação 6368/76, e 5) segundo a Ordem dos Advogados do Brasil, do Rio de Janeiro, trata-se, portanto, de uma lei pró-traficante.

No fundo, pretende-se chegar à descriminalização dos entorpecentes. Tratar a droga como algo folclórico. O tom da campanha foi dado pelo novo secretário nacional antidrogas, que ao tomar posse no cargo, saiu-se com uma extravagância: “Fumar maconha não é crime...”

Para algumas autoridades, de olho em polpudas contribuições de organizações internacionais, a retórica da tolerância às drogas é, de fato, sedutora. O ensaio publicado na revista The Economist (28-07-2001), embora tenha oferecido um interessante panorama sobre o desafio dos entorpecentes, concluiu que somente programas de desintoxicação, reeducação e clínicas especializadas poderiam oferecer alguma esperança para a contenção do vicio. Isso é o mesmo que decretar o fim da esperança para países em desenvolvimento como o Brasil.

Para a Europa, vale o conselho. Para o Reino Unido, principalmente, que tem um PIB per capita de US$ 22 mil. E quanto a nós? Nosso PIB contabiliza menos de US$ 3 mil, além de uma dívida externa de US$ 600 bilhões. É com esses míseros US$ 2.900 mal distribuídos que devemos enfrentar o problema do analfabetismo real ou funcional, que avança além da metade de nossa população, o índice brutal de mortalidade infantil (42 menores de 5 anos morrem para cada mil nascidos vivos. A proporção no Reino Unido é de 6 para mil), um sistema de saúde em colapso e todas as demais carências que a reportagem parece ignorar.

Nossa tarefa deve ser dissuadir o consumo. Colocar um freio inibidor e não liberá-lo, como pretendem alguns irresponsáveis. É óbvio que, sem consumidor, não existe mercado.

O fracasso das fórmulas descriminalizantes

É expressivo o fracasso das fórmulas descriminalizantes. Na Inglaterra, o ministro do Interior David Blunkett iniciou recentemente em Lamberth, um subúrbio de Brixton, um projeto experimental que visa impedir a prisão de usuários apanhados em flagrante, apesar de a legislação britânica determinar a prisão para os drogados. Qual o resultado? Lamberth continua como uma das áreas mais violentas da Grã-Bretanha.

As Nações Unidas, por sua vez, analisaram os 25 anos da legislação permissiva holandesa. Quais os resultados? Diz a ONU: Nenhum dos objetivos pretendidos foi alcançado. Nem a redução da criminalidade, nem a segurança da sociedade, nem a prevenção. Em conseqüência de sua Lei do Ópio, a Holanda se encontra, atualmente, em primeiríssimo lugar entre as nações mais desenvolvidas em matéria de criminalidade. Eis a marca holandesa: 15 assassinatos por 100 mil habitantes. Um recorde de brutalidade, se compararmos com o Japão (1 assassinato para cada 100 mil habitantes), Espanha (1,6), Canadá (1,9), Noruega (2,1), Bélgica (3,1) Austrália (3,6), França (4,7), Dinamarca e Itália (4,9). Atualmente, segundo dados da ONU, cerca de 15% dos holandeses maiores de 12 anos são escravos da droga. Coffee-shops que distribuem a maconha legal também vendem as demais drogas. O país já é considerado um dos expoentes do narcoturismo. Legiões de viciados chegam do exterior para desfrutar da permissividade holandesa. Boa parte deles recebe tratamento médico ou metadona (substituto sintético da morfina), para que tentem abandonar o vício. Qual, porém, é o PIB per capita da Holanda? Cerca de US$ 25 mil, em doloroso contraste contra os nossos minguados US$ 2.900.

Países como Suíça e Portugal, que abriram suas portas aos entorpecentes, também se arrependem da liberalidade. A Suíça está voltando atrás. Quanto a Portugal, um informe do Observatório Europeu para a Droga (OED) revela que o país, atualmente, possui um dos maiores contingentes de vítimas da AIDS entre os consumidores de drogas injetáveis. Segundo a OED, a AIDS estaria alcançando cerca de 40 mil usuários de drogas naquele país. Peter Piot, um dos diretores da Onusida (órgão da ONU para o combate à AIDS) afirmou que: “Portugal enfrenta a pior situação da União Européia, suportando uma alta transmissão de AIDS entre os drogados, heterossexuais e um deficiente esforço de prevenção para controlar a dimensão do problema” (El País, 24/11/2001).

A enorme legião de brasileiros assassinados em função do avanço dos entorpecentes, a vulgarização do homicídio - crimes cada vez mais bárbaros, que desafiam a humanidade -, o crescimento sem paralelo dos seqüestros, tudo isso parece não ter importância para quem só enxerga votos pouco além do nariz. E vamos aceitando as chacinas, vivendo a incerteza das balas perdidas. O psicólogo norte-americano Robert MacCoun, professor de políticas públicas e legislação na Universidade da Califórnia (Berkeley), chamou a descriminalização das drogas de uma autêntica “redistribuição do mal”..., redistribuição entre os pobres. Parafraseando The Economist, é possível dizer que o Brasil vive tempos nebulosos, ou a idade da desordem, com a conivência de personalidades ilustres, governantes omissos, políticos comprometidos e burocratas autoritários. Aos brasileiros de boa vontade, que ainda sonham com a legalização, restaria a advertência: lembrai-vos da Colômbia, lembrai-vos da Holanda.

Sugestões para leitura

TEIXEIRA, I., A violência sem retoque - A trágica contabilidade da violência, Rio de Janeiro, ed. Cidade, 2002.

TEIXEIRA, I., “Funk, uma dança macabra? Drogas & genocídio” in Revista Problemas Brasileiros, São Paulo, ed. do Sesc, fevereiro/2001.

HOPENHAYN, M., La grieta de las drogas, desintegración social y politicas publicas en América Latina, Nova York, Nações Unidas, 1997.

LE BOT, I., Le temps des guerres communautaires, Paris, editions de la découverte, 1996.

Fonte: Ciência Hoje nº 181 (Abril de 2002)

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