segunda-feira, 3 de dezembro de 2001

O crime de escalar montanhas

3 de dezembro de 2001, no.com.br

Anabela Paiva
no.com.br (http://www.no.com.br/).

De traficante do morro da Mangueira a cantor apanhado com um grama de cocaína, o advogado Alexandre Dumans já defendeu todos os tipos de acusados do crime de usar ou vender drogas. "São mais de mil casos", contabiliza Dumans, fumando sem parar cigarros da droga legal embalada pela Souza Cruz. O cilindro de papel e tabaco é um dos seus argumentos na defesa da sua causa favorita: a liberação do uso de drogas. Ou todas as drogas são legais, ou todas são ilegais, incluindo o álcool, raciocina.

É com a lógica afiada em 26 anos de advocacia criminal que o advogado carioca de 50 anos impressiona os alunos de mestrado de Criminologia, Direito Penal e Processo Penal da Universidade Cândido Mendes, onde ensina a origem, contradições e pontos fracos das leis referentes ao uso e tráfico de drogas no Brasil e no mundo. Uma racionalidade que a lei brasileira, que pune o usuário, desafia. "Vamos então punir também o suicida", compara. Dumans comemora a entrada em vigor de uma lei que poderá representar o fim da prisão do usuário e está certo de que o mundo caminha para a liberação das drogas. Mas reconhece que nem só com leis a sociedade pune os transgressores, como mostrou o caso recente da demissão da apresentadora Soninha (19/11/2001). Em tom irônico, diz que nunca viu maconha - depois, admite ter fumado, mas só na época em que o presidente Fernando Henrique também dava seus tapinhas. "Cliente não quer advogado maconheiro."

Anabela Paiva - Afinal, descriminalizaram o uso da maconha ou não?

Alexandre Dumans - Não. O uso continua a ser crime. O artigo 16 da lei 6368 está em vigor. O que acontece é que uma lei federal, que prevê um tratamento processual menos draconiano, vai passar a vigorar e poderá ter repercussão em outros estados, como o Rio.

Anabela Paiva - Explique melhor.

Alexandre Dumans - A lei 9099 criou juizados especiais cíveis e criminais para julgar crimes de pequeno potencial ofensivo. Os autores de delitos deste tipo têm direito a um tratamento mais benevolente. Não há flagrante e ninguém é preso. É feito apenas um termo dos fatos que ocorreram e existe uma negociação que estabelece uma pena alternativa - como a prestação de serviços comunitários ou o pagamento de cestas básicas a uma determinada instituição. Neste caso, o infrator não deixa de ser primário. A lei previa que só poderiam ser julgados nestes juizados delitos cuja pena máxima não ultrapassasse um ano, como ameaça ou violação de correspondência. E o delito de uso de drogas tem pena que vai de seis meses de detenção a dois anos.

Anabela Paiva - Ou seja, não se enquadrava nesta lei mais leniente.

Alexandre Dumans - Pois é, mas vai entrar em vigor em janeiro de 2002 a lei 10259, que dispõe sobre a instituição dos juizados especiais no âmbito da justiça federal. Esta lei aumentou o prazo da pena para dois anos - ou seja, alcançou o delito de uso. Neste caso, como o delito de uso de drogas passou a ser de pequeno potencial ofensivo, acaba a prisão em flagrante e o indivíduo não deixa de ser réu primário. Esta lei, a princípio, seria apenas para delitos julgados na justiça federal. Mas os juízes do Rio de Janeiro estão pensando em aplicar a lei também no âmbito estadual, por analogia. São juízes mais sábios, que sabem que a função da Justiça é conter o poder punitivo do Estado, e não ampliá-lo. A criminalização primária, que é operada pela polícia, vai em massa para o Judiciário. Cabe ao juiz selecionar o que merece punição. Ninguém agüenta mais ver a juventude na cadeia.

Anabela Paiva - A legislação brasileira antidrogas está ultrapassada?

Alexandre Dumans - Ela não está ultrapassada apenas, ela é uma lei cuja origem é espúria, é uma lei servil. Esta lei aparece após 1961, quando se realizou a Convenção Única de Estupefacientes, ratificada por cem países mas basicamente liderada pelos Estados Unidos. A partir dessa convenção, os EUA começam a caracterizar o tráfico de drogas como o inimigo externo que viria a substituir o comunismo. A droga era o inimigo interno da nação e os inimigos externos, o Oriente e a América Latina, como produtores da droga. Em 73, uma comissão de congressistas estadunidenses envolvidos na discussão das drogas fez uma visita à América Latina. Esse grupo foi dividido em quatro grupos: prevenção, tratamento, reabilitação e fiscalização e repressão. Curiosamente, esta é a divisão da nossa lei 6368. Foi um arremedo das idéias desta comissão. Qual foi o produto desta lei ao longo deste tempo? Promover o filicídio, a morte dos nossos filhos, anteriormente só cumprido pela guerra. A falta de parâmetros na lei para separar uso e tráfico, o despreparo da polícia e a confusão do Judiciário levou para os cárceres mulitas que faziam tráfico para subsistência e aqueles que compravam e dividiam entre os amigos. Isso quando se sabe que o tráfico de drogas é feito por grandes grupos internacionais. Hoje, mais de 50% da população carcerária está presa pela imputação de tráfico.

Anabela Paiva - Mas o tráfico emprega essas pessoas para outros crimes graves, assassinatos, seqüestros...

Alexandre Dumans - Mas não os prendem por assassinato e seqüestro, prendem pelo tráfico. Prendem o avião, o pobretão que vai comprar para outro para poder comprar a sua droga ou alguma outra coisa. No entanto, segundo reportagem da caretíssima revista Time, baseada numa agência de monitoramento do uso de drogas na Europa, 45 milhões de europeus fumam maconha. Quando 45 milhões de pessoas violam a lei, as pessoas estão erradas ou é a lei que está errada?

Anabela Paiva - Como o consumo de drogas se tornou crime no Brasil, se até o início do século, havia casas de ópio espalhadas pelo Rio e vendia-se cocaína em farmácia?

Alexandre Dumans - Nas Ordenações Filipinas, a lei penal que funcionava nos tempos coloniais, já se dizia: que ninguém tenha em casa rosalgar, nem o venda, nem outro material venenoso. Era a droga da época. Pena: perda da fazenda e degredo para a África. O código penal do Império, publicado em 1830, nada falava. Já na República, o código de 1890 consagra o chamado delito do boticário. Era delito praticado pelo boticário expor para venda ou ministrar substâncias venenosas sem legítima autorização e sem as formalidades previstas nos regulamentos sanitários. Até aí, as substâncias eram consideradas simplesmente venenosas. O decreto-lei 891 de 1938 é o primeiro modelo legislativo em consonância com o modelo internacional. No artigo 33, condena quem facilitar, instigar por atos ou palavras o uso ou emprego de qualquer substância entorpecente e prevê pena de um a cinco anos de prisão celular. É com o código penal de 40 e o popular artigo 281 que o Brasil ingressa na guerra contra as drogas. Um erro de lógica e filosofia, já que mover guerra contra entorpecentes é como combater um fantasma.

Anabela Paiva - Mas não é uma simples força de expressão?

Alexandre Dumans - Mas as expressões têm sua força, que se consolidam na prática. Se o indivíduo é apanhado comprando um baseado e diz "Não é para mim, é para fulano!", isso faz a diferença entre cadeia e liberdade, entre o simples pagamento de uma multa e uma pena mínima de três anos, sem direito à progressão de regime. Uma pessoa condenada por homicídio simples a uma pena de 18 anos só vai cumprir três anos. Na concepção legalista dessa lei boçal, o avião praticou um crime mais grave do que um homicídio, que tem direito a progressão de regime. O bem jurídico maior, que é a vida, passou a ser menor que a saúde pública, que em tese é o bem tutelado pela lei do tráfico de drogas. Ainda assim, a lógica do direito penal era seguida, até o advento do decreto lei 385 de 68, que passou a punir o usuário.

Anabela Paiva - E o que mudou?

Alexandre Dumans - A prostituta não pode ser punida, pois ela não pratica crime nenhum pelo fato de ser prostituta. A exploração da prostituição é que se constitui crime. O suicídio não constitui crime. Se você tentar se matar e não morrer, não vai ser punida. Mas a instigação ao suicídio é punida. Essa sempre foi a lógica do código penal. Esta lei passou a incriminar a vítima do ato, que seria o usuário. É uma lei fascista. Por que se imiscuir na vida alheia? Se querem proteger a saúde pública, cuidem da água, da qualidade do ar, das moléstias. Qual é a diferença entre fumar maconha e escalar uma montanha? Ambos os comportamentos apresentam riscos, mas só devem preocupar seguradoras e mães, não o Estado democrático. Que ambiente hipócrita é esse?

Anabela Paiva - E como foi impedida a progressão de pena?

Alexandre Dumans - O artigo 5, inciso 43 da Constituição Federal lista como crimes inafiançáveis e impedidos de receber anistia a prática de tortura, o tráfico e os crimes classificados como hediondos. Isso é uma besteirada que foi incluída na Constituição quando seria matéria a ser tratada no Código Penal. Vicente Cernichiaro, que foi ministro do Superior Tribunal de Justiça e hoje é um famoso advogado (como acontece com todos os ministros e magistrados; quando acabam a suas profissões, já preparados, aí sim estão habilitados a exercer a advocacia), nenhuma Constituição anterior especificou delitos que impedissem seus agentes de receber benefícios da anistia.

Anabela Paiva - E que circunstâncias políticas motivaram esse acirramento?

Alexandre Dumans - Ele se deu por conta da perda do inimigo externo pelas superpotências, a transposição do clima de guerra para este campo. Nos filmes, o papel que antes cabia aos agentes soviéticos hoje é dos traficantes colombianos. Nos anos 80, o consumidor era visto como cliente, agora é visto como comparsa. Entretanto, isso está mudando.

Anabela Paiva - Como?

Alexandre Dumans - Afora países que já promoveram a completa descriminalização do uso, a exemplo da Holanda, da Dinamarca e de outros, em nações com a Alemanha e a França, o uso de drogas, embora ainda seja crime, vem sendo tolerado pelas autoridades. A Bélgica recentemente apresentou uma proposta de só punir o usuário quando ele se tornar "problemático"; a Espanha há muito não processa usuário de qualquer espécie de droga, desde que se aplique reservadamente. Portugal em meados deste ano descriminalizou o uso de drogas, impondo ao usuário o pagamento de multa ou prestação de serviço comunitário, mas nunca a prisão. No Canadá, a Polícia Montada admite o porte de pequena quantidade de drogas. E na Inglaterra, o líder do Partido Conservador Britânico, Peter Lylley, propôs a concessão de licença para venda de maconha em lojas especializadas. Soube que já está sendo implantada lá a primeira cofee-shop no estilo das que funcionam em Amsterdã. Sem falar na nova lei brasileira.

Anabela Paiva - A lei pode estar mudando mas existem outros tipos de punições. Recentemente, a apresentadora Soninha foi demitida pela TV Cultura por admitir à revista Época que usa drogas. Ela poderia ter buscado algum recurso legal?

Alexandre Dumans - Tenho certeza de que caberiam todos os recursos. Se a lei trabalhista presta para alguma coisa - e eu acho que não presta, pois a Justiça Trabalhista consome mais dinheiro do que as indenizações que paga - , com certeza ela tem todos os direitos trabalhistas. Quando ela colocou em pauta um assunto como esses ela não fez nenhuma apologia. Se usarmos essa lógica burra, quando alguém sugerir que seria bom para o país a pena de morte, estaria havendo apologia do crime de homicídio.

Anabela Paiva - Mas o chefe dela poderia alegar que ela admitiu ter fumado, e que isso seria um crime.

Alexandre Dumans - Mas ela admitiu o mesmo que o presidente brasileiro e o ex-presidente americano, Bill Clinton, admitiram. Quem ele deseja lá, anjos? Ou prefere a hipocrisia que certamente alimentou a decisão de demiti-la? Isso não é uma televisão, é um beco. Meu senso de Justiça diz que esse cavalheiro deveria ser punido, pois demonstrou preconceito. A Soninha tentou abrir um debate franco - e não existe nada mais profícuo.

Anabela Paiva - Comprar drogas não significa ser cúmplice do tráfico, que comete crimes terríveis para preservar seus mercados? Isso não é uma questão moral?

Alexandre Dumans - O tráfico envolve uma rede de crimes por ser um mercado ilegal. Haverá uma criminalidade circunstancial. Mas como o mercado é muito grande, o consumo é muito grande, esses traficantes de drogas dos morros se encaram como comerciantes e não como bandidos. Alguns deles têm a ética de nunca ter roubado - dizem frases como "Nunca roubei ninguém, meu negócio é vender sacolé". Por isso a pessoa que compra é freguês e não cúmplice. Se o uso fosse mais caseiro e escondido a cumplicidade seria maior, pois o indivíduo para obter a droga teria de teria ter acesso a informação.

Anabela Paiva - O senhor é a favor da liberação de todas as drogas ou só da maconha?

Alexandre Dumans - Minha posição é solitária, é a da autodeterminação dos homens. Acho que tudo deve ser liberado. Ou vamos proibir o uso de todas as drogas, incluindo o álcool, ou liberamos. Por que serei obrigado a me drogar com álcool? A quem interessa esta proibição, se não a policiais corruptos, traficantes de drogas e fabricantes de bebidas, cigarros e outras drogas legais? Minha geração passou anos fumando maconha e brincando de esconder com os PMs. Esses PMs poderiam estar procurando bandidos truculentos, ferrabrases de verdade condenados por homicídio, estupradores de criancinhas. Existem cerca de 100 mil mandados de prisão a pessoas já condenadas. Em vez disso, estão procurando os maconheiros para pegar o arrego!

Anabela Paiva - O senhor fuma maconha?

Alexandre Dumans - Eu nunca fumei maconha.

Anabela Paiva - O senhor acabou de falar da sua geração...

Alexandre Dumans - Minha geração, não eu. Eu nunca vi maconha.

Anabela Paiva - O que é isso?

Alexandre Dumans - Essas respostas parecem mentira, não é? Por quê?

Anabela Paiva - Porque todo mundo vê...

Alexandre Dumans - Se todo mundo vê, por que é proibido?

Anabela Paiva - O senhor já foi advogado de traficantes. Vai ao morro conversar com eles. Então já viu.

Alexandre Dumans - Ah, quando a maconha aparecia eu saía correndo, porque sabia que era proibido pela lei... Veja como essas respostas são cretinas. Mas são respostas juridicamente corretas. Cliente não quer advogado maconheiro. Eu me lembro que eu fui uma vez a um médico. Era muito jovem e fumava maconha - na mesma época que o Fernando Henrique fumou. Fui ao médico e ele mostrou para mim que fumava também, abriu uma caixinha e me deu um cigarro. Eu nunca mais voltei. Era maconheiro e preconceituoso.

Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idArea=1&idSubArea=109
 

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