segunda-feira, 1 de abril de 2002

Drogas psicotrópicas e a política de saúde pública no Brasil

Abril de 2002, Ciência Hoje
Especial "Drogas" - 6ª parte


Ana Regina Noto (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas [CEBRID], Departamento de Psicobiologia, Universidade Federal de São Paulo) e Maria Lucia O. S. Formigoni (Unidade de Dependência de Drogas [UDED], Departamento de Psicobiologia, Universidade Federal de São Paulo).

Na década de 1980, a falta de conhecimento sobre o consumo de drogas psicotrópicas no Brasil levou o país a adotar o modelo de política repressiva exportado pelos Estados Unidos, para o combate principalmente da maconha e cocaína. Vinte anos depois, o número de usuários dessas substâncias cresceu, denunciando a inadequação de medidas exclusivamente repressivas. Os problemas de saúde decorrentes do consumo de álcool, tabaco, solventes e medicamentos psicotrópicos continuaram sendo maiores do que os provocados por drogas ilícitas, mas as políticas de saúde se mostram negligentes frente à questão. Urge criar uma política de saúde pública respaldada em dados científicos, que permita criar campanhas adequadas a cada setor da sociedade envolvido no problema.

O enorme volume de informações disponíveis sobre drogas psicotrópicas atualmente tem gerado mais dúvidas do que conhecimento. Sem contar que as informações válidas para uma determinada sociedade podem não se aplicar a outras culturas ou realidades sociais e econômicas diversas.

O Brasil apresenta diferenças regionais marcantes quanto ao poder aquisitivo da população, acesso à saúde, nível de educação e peculiaridades culturais, que se refletem no cenário do consumo de drogas psicotrópicas. No entanto, existem poucos estudos consistentes nessa área. A carência de dados abre espaço para especulações e, portanto, deixa o país vulnerável a políticas públicas importadas, quase sempre inadequadas à nossa realidade.

Um exemplo histórico ocorreu na década de 1980. Considerado rota de tráfico, o Brasil começou a receber forte influência do movimento intolerante e repressivo dos Estados Unidos. Até então, não se tinha idéia da situação nacional, o que abriu espaço para diversas medidas repressivas. Baseando-se em dados estrangeiros, a mídia passou a enfatizar excessivamente o consumo de maconha e cocaína, despertando a curiosidade da população e mobilizando a opinião pública. Os primeiros estudos abrangentes, realizados no final da década de 1980, mostraram que naquele momento a situação nacional era diferente da norte-americana, sendo muito inferior e relativamente estável o número de estudantes usuários de substâncias ilícitas.

Por outro lado, o número de usuários e os problemas de saúde decorrentes do consumo de álcool, tabaco e medicamentos psicotrópicos (substâncias que também atuam no sistema nervoso alterando o comportamento) superavam em muito os de drogas ilícitas. Um estudo realizado entre estudantes de 1º e 2º graus em 1987, em 10 capitais brasileiras, mostrou que cerca de 75% dos jovens já haviam consumido bebidas alcoólicas e 22% já tinham fumado tabaco. O uso de inalantes (lança-perfume, loló, cola, entre outros) foi relatado por 14,7%, e o de medicamentos psicotrópicos por 12,1%, proporções muito maiores que as de maconha (2,8%) e cocaína (0,5%). Na mesma ocasião, o álcool era responsável por 95% das internações hospitalares decorrentes do uso de drogas, enquanto, para a maconha, esse índice era de 1,4% e, para a cocaína, de 0,8%.

O crescimento das drogas no Brasil

A partir da década de 90, o número de usuários de cocaína realmente começou a aumentar. O índice de uso entre estudantes, que era de 0,5% em 1987, quadruplicou passando a 2,0% em 1997. Porém, esse aumento não se deu de forma homogênea no país, concentrando-se principalmente nas regiões Sul e Sudeste. Quantidades cada vez maiores de drogas foram apreendidas, e os atendimentos hospitalares decorrentes do uso de cocaína tornaram-se mais freqüentes Ao longo dessa década, derivados da coca começaram a ganhar a preferência em algumas cidades brasileiras, como o crack (cristais fumados em cachimbo) em São Paulo e a merla (espécie de pasta também fumada) em Brasília, aumentando ainda mais os índices de problemas de saúde.

Na década de 1990, também cresceu o número de usuários de maconha no Brasil. O índice de uso entre estudantes, que era de 2,8% em 1987, passou para 7,6% em 1997. A opinião pública, entretanto, foi se tornando cada vez mais tolerante em relação ao uso dessa droga, graças à divulgação de informações sobre seu potencial terapêutico e debates sobre a descriminalização. As conseqüências do seu uso, no entanto, não têm merecido o mesmo destaque, permitindo a propagação de uma falsa idéia de inocuidade. Embora em curto prazo os efeitos prejudiciais da maconha não sejam tão evidentes quanto os da cocaína, ela causa problemas de concentração e memória, dificultando a aprendizagem e a execução de tarefas como dirigir ou operar máquinas. O uso contínuo pode causar tosse crônica, alteração da imunidade, redução dos níveis de testosterona e desencadear doenças mentais como esquizofrenia, depressão e crises de pânico. É muito comum a observação da síndrome amotivacional (redução do interesse e de motivação pela vida) em usuários crônicos.

Álcool, inalantes e psicotrópicos: negligência

Apesar do pouco destaque dado na imprensa ao consumo de inalantes (solventes, como cola de sapateiro, cheirinho-da-loló, lança-perfume), ele é muito comum entre os jovens brasileiros. Em 1997, 13,8% dos estudantes já haviam experimentado algum tipo de inalante. Essa realidade é observada desde a década de 1980 e em todas as regiões do país, mas as políticas públicas nacionais ainda abordam o tema de forma superficial.

Negligência ainda mais séria envolve o consumo de bebidas alcoólicas. O álcool vem sendo, de longe, a droga mais consumida e a que gera mais problemas para a população brasileira. Um estudo realizado em Salvador (BA) observou que 37% dos motoristas envolvidos em acidentes de trânsito relataram estar sob efeito de bebidas alcoólicas. Além dos acidentes e problemas no trabalho, o álcool é responsável por mais de 80% dos casos de internações hospitalares por dependência. Um em cada 10 homens aproximadamente é ou já foi dependente de álcool. No entanto, as medidas preventivas e de controle são incipientes: há pouco rigor na proibição de venda para jovens e as informações sobre os riscos decorrentes do uso destoam do excesso de liberdade para as propagandas de bebidas alcoólicas.

Alguns estudos nacionais também denunciam a grave realidade relacionada ao uso de medicamentos psicotrópicos, como os ansiolíticos e as anfetaminas. Embora exista uma legislação abrangente e até mesmo burocrática, de controle da prescrição e venda desses medicamentos, estudos recentes indicam carência de fiscalização e descuido por parte de alguns profissionais de saúde (médicos e farmacêuticos), o que facilita seu uso excessivo e inadequado. Em 1999, um levantamento realizado em dois municípios do estado de São Paulo verificou falsificações em receitas de psicotrópicos, como numeração oficial repetida e até algumas emitidas por médicos que haviam falecido há anos, ou que tinham sido cassados. Também foram observados exageros de prescrição, como o caso de um médico que havia emitido cerca 8 mil receitas de psicotrópicos em 1999. Tais situações podem ser decorrentes da falta de formação profissional adequada, o que leva não só ao uso inapropriado de medicamentos, mas também a dificuldades para detectar e tratar usuários abusivos ou dependentes de psicotrópicos.

Descompasso entre realidade e políticas públicas

Uma avaliação geral sobre o consumo de drogas no Brasil revela um grande descompasso entre a legislação, as políticas públicas e os problemas reais de saúde da população brasileira. Nas últimas décadas, as poucas mudanças no panorama nacional do consumo de drogas psicotrópicas foram para pior, especialmente no que se refere ao aumento no consumo de drogas ilícitas (maconha e cocaína). Esse quadro mostra que as medidas adotadas nos últimos anos não tiveram a eficácia esperada. É essencial, portanto, estudar formas alternativas de se lidar com essa questão. Vários países vêm buscando soluções, mas até o momento nenhum parece ter atingido plenamente a meta pretendida.

As experiências mais bem sucedidas são, em geral, resultado da combinação de múltiplas intervenções, de modo coordenado e adequadas às características específicas da população alvo. Um programa elaborado para adolescentes de classe média, por exemplo, provavelmente não será eficaz se aplicado a uma população mais velha ou a crianças moradoras de rua. Não existem, portanto, “fórmulas mágicas” ou universais.

A história mostra que é utópico imaginar um país completamente livre do uso de drogas. As metas de intervenção não podem se restringir apenas ao controle do consumo, mas devem visar à melhoria das condições sociais e de saúde, assim como a liberdade individual, sem deixar de contabilizar os custos sociais. Urge, portanto, uma política integrada e coerente, respaldada em dados científicos que demonstrem claramente a diversidade e as diferentes necessidades de cada comunidade na qual se pretenda intervir.

Sugestões para leitura

MASUR, J. e CARLINI, E. A., Drogas: subsídios para uma discussão, São Paulo, ed. Brasiliense, 1989.

SEIBEL, S. D. e TOSCANO, A. T., Dependência de drogas, São Paulo, ed. Atheneu, 2001.

GALDURÓZ, J. C.; NOTO, A. R.; NAPPO, S. A. e CARLINI, E. A., Primeiro levantamento domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas. Parte A, São Paulo, ed. Balieiro, 2000.

NOTO, A. R., “O uso de drogas psicotrópicas no Brasil: últimas décadas e tendências” in O mundo da saúde, 23 (1): 5-9, 1999.

Fonte: Ciência Hoje nº 181 (Abril de 2002)

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