segunda-feira, 1 de abril de 2002

Nada de novo no front

Abril de 2002, Ciência Hoje
Especial "Drogas" - 3ª parte

Alexandre Moura Dumans (Departamento de Direito Penal, Universidade Cândido Mendes) e Vera Malaguti Batista (Departamento de Criminologia, Universidade Cândido Mendes).

Descriminalizar não apenas o uso, mas também o comércio de drogas parece uma idéia chocante e insensata? A resposta deve ser não, se levarmos em conta que em nosso país, a maioria dos condenados por tráfico de entorpecentes - crime hediondo e inafiançável segundo a atual legislação - não são os verdadeiros “chefões” das drogas, mas jovens negros e pobres recrutados pelo mercado ilegal graças à falta de oportunidades imposta pelo modelo econômico ao qual estamos submetidos. A nova Lei de Tóxicos, portanto, permanece atrelada aos valores das oligarquias, mantendo seu controle social sobre os marginalizados.

A discussão sobre o problema das drogas no Brasil parece estar presa a uma espécie de armadilha do tempo, que aponta para trás. As modificações legais representam sempre um “avanço para o passado”.

A socióloga venezuelana Rosa del Olmo, a maior intelectual latino-americana a trabalhar o assunto, adverte para a dificuldade de analisar um tema tão mistificado. Ela defende que a mistura de informação, desinformação e até contra-informação produz uma “saturação funcional à ocultação de seus problemas”. Para evitar tal saturação, teríamos que compreender a questão das drogas de acordo com o sistema penal no capitalismo tardio (globalização), o poder infinito do mercado e o papel que a política criminal de entorpecentes, capitaneada pelos Estados Unidos, desempenha no processo de criminalização global dos pobres. Para Rosa del Olmo, faz parte da desmistificação ou aproximação crítica ao problema dos tóxicos enquadrá-lo em uma perspectiva geopolítica - através da análise das relações de poder no sistema mundial.

O fracasso dos Estados Unidos

Os Estados Unidos têm sido o eixo central da atual política de drogas no continente americano. As marcas de seu fracasso são a multiplicação das áreas de cultivo, a organização dos traficantes, a corrupção de autoridades, o crescimento da adicção e o aumento da criminalidade. Por outro lado, a América Latina tem sido fonte produtora de maconha, cocaína e até de heroína para consumo nos Estados Unidos e na Europa. A crise econômica é uma constante na geopolítica desse quadro. As novas políticas de ajuste econômico favorecem a expansão dessa produção voltada para o comércio globalizado. Podemos observar que a cada novo “ajuste” corresponde uma nova onda de criminalização e encarceramento.

Paralelamente a esse processo econômico, o governo dos Estados Unidos, desde os anos 80, utiliza o “combate às drogas” como ponto central da política norte-americana no continente. Passam a difundir termos como “narcoguerrilha” e “narcoterrorismo”, em uma clara simbiose dos seus “inimigos externos”. As drogas passam a ser o pretexto das políticas de segurança nacional nos países atrelados a Washington, ao mesmo tempo em que o capital financeiro e a nova divisão internacional do trabalho obrigam tais países a serem os produtores da valiosa mercadoria. Os países andinos se transformam em campos de batalha e nossas cidades se transformam em mercados brutalizados para o varejo residual das drogas ilícitas.

Guerra santa contra as drogas

Outro ponto importante para a desconstrução do assunto “drogas” é rompermos o discurso moral que o ronda. Como disse o advogado Nilo Batista, quando incorporamos a idéia de “cruzada” contra os entorpecentes, introduzindo a combinação de elementos morais e religiosos, estamos exigindo ações sem limites, sem restrições e sem padrões reguladores. Não há nada mais parecido com a inquisição medieval do que a atual guerra santa contra as drogas, com a figura do “traficante-herege que pretende apossar-se da alma de nossas crianças”. E os mortos dessa cruzada têm uma extração social comum: são jovens, negros/índios/árabes e são pobres.

Gostaríamos de comentar duas recentes publicações que tiveram enorme repercussão no debate sobre drogas no Brasil: a reportagem intitulada “Stumbling in the dark” (Tropeçando no escuro), na revista The Economist e o filme Traffic, do cineasta norte-americano Steven Soderbergh. Ambos têm um mérito: apontar a grande falácia das políticas criminais de drogas lideradas pelos Estados Unidos, sendo que a reportagem frisa a insensatez da descriminalização apenas do consumo. Como criminalizar a venda de um produto indiferentemente consumido? Mas ambos destilam sobre nós o veneno colonial: The Economist de uma forma mais elegante, e Traffic de forma mais grotesca. Tanto um quanto outro atribuem aos países produtores o ethos (ética) da corrupção. Não haveria controle da oferta porque países como a Colômbia e o México são muito corruptos. Mas as drogas ilegais são distribuídas até o varejo de todas as cidades da Europa e da América do Norte, apesar da “superioridade ética” de suas instituições policiais.

A revista inglesa afirma que o varejo é feito pelos imigrantes pobres por razões culturais (será?) e somente como complemento por sua dificuldade de acesso ao emprego (esta seria uma razão secundária). Já o filme Traffic (elogiado na The Economist) escancara o olhar preconceituoso sobre nós. No filme, tudo o que é mexicano é corrupto, imoral, anárquico e caótico. Mas não há um só agente norte-americano corrupto. Estão todos na luta contra o mal, alguns equivocados, alguns ingênuos, mas todos “bons”. Não há cena mais repugnante do que aquela em que o traficante/negro/herege praticamente estupra a jovem branca, loura, linda e indefesa, consumidora, filha do czar das drogas. Aquela imagem reproduz a idéia, oriunda da geopolítica das drogas, de que países como a Bolívia seriam os agressores e os Estados Unidos, a vítima. É com esse discurso que o aparato bélico-industrial dirigido pelo jovem Bush pretende renovar sua história de intervenções militares na América Latina, através do acirramento do conflito na Colômbia, com o auxílio luxuoso da mídia e dos governos neoliberais do continente.

Vitória da verdade sobre a hipocrisia

A tarefa dos profissionais que se dedicam a refletir sobre as questões da criminalidade, das drogas e da violência na periferia do capitalismo é estabelecer sua própria pauta. Nossa reflexão tem que romper com os estereótipos que nos foram conferidos pelo capital vídeofinanceiro, pelos meios de comunicação de massa. Queremos novos destinos para a nossa juventude pobre que não sejam a cadeia ou o extermínio; queremos estudar a questão da droga e a criminalização crescente das mulheres; queremos avaliar os efeitos do uso dos herbicidas norte-americanos em nosso ambiente; queremos produzir uma reflexão latino-americana voltada para nossa realidade; reconstruir os paradigmas oferecendo uma forma radicalmente distinta de definir, estudar e controlar nossos problemas.

Nessa linha, a descriminalização do uso e do comércio de entorpecentes é a vitória da verdade sobre a hipocrisia. A União Européia de Monitoramento de Drogas afirma que 45 milhões de seus cidadãos experimentaram maconha ao menos uma vez e 15 milhões fizeram uso nos últimos 12 meses. Quando 45 milhões de pessoas - apenas na Europa - violam uma lei, sua legitimidade deve ser questionada.

Atualmente - fora os países que já promoveram uma completa descriminalização, a exemplo de Holanda, Dinamarca e outros -, em nações como Alemanha e França, o uso de drogas, malgrado subsista como crime, vem sendo tolerado pelas autoridades. A Bélgica, recentemente, apresentou proposta de somente punir o usuário quando ele se tornar “problemático”. A Espanha há muito não processa usuário de qualquer espécie de droga ilícita, desde que a consuma reservadamente. Portugal, em meados do ano passado, descriminalizou o uso de drogas, impondo ao usuário o pagamento de multa ou prestação de serviço comunitário, mas nunca a prisão. Na Inglaterra, Peter Lilley, líder do partido conservador, propôs a concessão de licença para venda de maconha em lojas especializadas. No Canadá, onde a Real Polícia Montada já tolerava o porte de pequena quantidade de droga, a permissão do uso de maconha com finalidades terapêuticas decorreu da declaração de inconstitucionalidade da interdição da Cannabis sativa na lei de drogas, pela Corte de Apelação de Ontário. No Brasil, a recente Lei no 10.259, de 12 de julho de 2001, passou a considerar o uso de drogas “delito de pequeno potencial ofensivo”, cujos infratores já não serão submetidos à prisão em flagrante.

Tudo isso mostra que a descriminalização do uso e do comércio de drogas é medida que está em curso em inúmeros países. Afinal, tal espécie de incriminação violenta o princípio segundo o qual não cabe criminalizar condutas que não produzam lesão a algum bem jurídico ou que lesionem apenas o próprio agente. O indivíduo deve ser soberano sobre seu corpo e sua mente. A idéia de risco à saúde é hoje um argumento vetusto e, neste particular, caminha bem o texto de The Economist, que assegura não haver diferença entre injetar uma dose de heroína e escalar uma montanha. Ambos os comportamentos apresentam riscos e devem, apesar da preocupação de seguradoras e de mães, ser tolerados pelo Estado de direito democrático.

Versão tardia e pobre da “Lei seca”

Parece claro que o banditismo do tráfico local de drogas no Brasil é apenas uma versão tardia e pobre do banditismo do tráfico de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos dos anos 30. Essa enfadonha repetição traz desgraçadas conseqüências, especialmente para aqueles que habitam os morros e as periferias das cidades brasileiras, sempre qualificados como traficantes quando surpreendidos com qualquer quantidade de droga, diversamente do jovem “do asfalto”, que será considerado apenas usuário, objeto do lado brando da lei.

É exatamente esse tratamento diferenciado que compromete qualquer política de drogas. À indiferença penal quanto ao uso deve corresponder a indiferença penal quanto ao comércio. De nada vale a liberação do uso se a criminalização do tráfico for mantida, pois é através das ambigüidades conceituais que se apresentam na aplicação desta última que as agências policiais manipulam a classificação usuário/traficante. Ou seja, permite-se que tais agências reservem o cárcere para negros, desempregados e pobres em geral. Na prática, a classificação seletiva pode representar quase uma autorização policial para matar. Quando a execução se antecipa à investigação, a oportuna classificação post mortem subtrai o interesse do caso, como nas centenas de pequenas notas das páginas vermelhas: “Três traficantes morreram ontem...”.

Passos para o passado

A recente discussão sobre a nova lei de drogas caminha a passos largos para o passado. Quando se fala em descriminalizar, o máximo a que se chega é a um ponto de vista do qual não compartilhamos: aquele que legisla a partir de certos redutos eleitorais, de jovens consumidores de classe média e alta. Em pesquisa feita nos arquivos do antigo Juizado de Menores do Rio de Janeiro, constatamos que a juventude de classe média e alta já conta com mecanismos privados de descriminalização. Os projetos de descriminalização do usuário deixam ainda mais expostas à demonização as principais vítimas dos efeitos perversos da exclusão globalizada: a juventude pobre de nossas cidades, recrutada pelo mercado ilegal graças à falta de oportunidades imposta pelo modelo econômico ao qual estamos submetidos.

O amplo apoio que a atual política criminal de drogas recebe das oligarquias brasileiras e dos “especialistas” a seu serviço provém muito mais da fantástica alavancagem de controle social penal sobre os marginalizados do que de qualquer resultado compatível com a saúde pública: sua força está em favorecer a violência e a morte, não a saúde e a vida. É lamentável que algo tão evidente seja diariamente mistificado. Porém, também aqui, a exemplo de tantos outros tópicos criminológicos, tal mistificação é muito útil, como Rosa del Olmo advertiu.

Sugestões para leitura

OLMO, R. del, Drogas: inquietudes e interrogantes, série “Textos para su Estúdio”, nº 4, Caracas, Fundación José Félix Ribas, 1998.

BATISTA, N., “Política criminal com derramamento de sangue” in Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 20, p. 129, ed. Revista dos Tribunais, ano 5, São Paulo, março-dezembro/1997.

CARVALHO, S. de, A política criminal de drogas no Brasil - do discurso oficial às razões da descriminalização, Rio de Janeiro, Luam Editora Ltda., 1996.

BATISTA, V. M., Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, ed. F. Bastos, 1999.

Fonte: Ciência Hoje nº 181 (Abril de 2002)

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