segunda-feira, 1 de abril de 2002

Legalizar drogas não, descriminalizar sim

Abril de 2002, Ciência Hoje
Especial "Drogas" - 7ª parte

Alessandra Pereira

Elisaldo Carlini é o primeiro brasileiro a integrar a Junta Internacional de Controle de Narcóticos (INCB, na abreviação em inglês), órgão ligado à Organização das Nações Unidas (ONU) e responsável pelo monitoramento da produção e do comércio de entorpecentes no mundo. Foram duas as indicações da Organização Mundial de Saúde (OMS) até que o médico paulista aceitasse o convite. O primeiro ocorreu em 1994. Na mesma época, no entanto, Carlini optou por assumir a Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, atual Agência Nacional de Vigilância Sanitária. "Não poderia acumular as duas funções, pois haveria conflito de interesses. Não seria possível defender as diretrizes da ONU sendo membro do governo brasileiro", explica. No ano passado, recebeu novamente a indicação da OMS e foi eleito para a Junta. Dessa vez, o convite foi aceito. "É motivo de orgulho para mim o fato de a OMS reconhecer que no Brasil há alguém capaz de representá-la entre as nações". Carlini toma posse no próximo mês, em Viena.

Atualmente com 71 anos de idade e 45 de profissão, o também professor aposentado pela Universidade Federal de São Paulo dirige um dos mais renomados institutos brasileiros de pesquisa sobre drogas - o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas -, dedicando 10 horas diárias à instituição. Nesta entrevista, defende temas polêmicos, como a descriminalização das drogas e o uso medicinal da maconha.

Alessandra Pereira (Ciência Hoje) - O senhor é o primeiro brasileiro eleito para a Junta Internacional de Controle de Narcóticos. Qual será sua atuação no órgão?

Elisaldo Carlini - A Junta Internacional de Controle de Narcóticos ou International Narcotics Control Board (INCB) tem o amparo da ONU, mas não está sujeita a suas determinações. A função da junta é estabelecer como devem ser feitos a produção, a colheita, o monitoramento dos estoques mundiais e o transporte de drogas narcóticas entre os países. É ela quem autoriza a emissão de licenças para importação e exportação dessas substâncias e define quais drogas precisam de mais ou de menos controle e aquelas que poderiam deixar de ser controladas. Esse órgão é composto por 13 membros, que não podem ter nenhuma ligação oficial com os governos de suas nações de origem para evitar conflito de interesses.

A minha função nos próximos cinco anos é tentar melhorar o controle dos entorpecentes, o que implica verificar por que um país pede para importar determinada quantidade de morfina e, no ano seguinte, solicita mais que o dobro, por exemplo. Vou atuar na área de substâncias psicoativas. Terei de ir duas vezes por ano à sede da Junta, em Viena, pelo prazo de cerca de um mês e deverei ainda estar disponível para fazer auditorias nos diferentes países.

O controle, mais ou menos eficiente, que monitora a produção da papoula - planta da qual é extraído o ópio, usado na produção de morfina -, consegue diminuir o tráfico, mas cria um problema sério que é a pouca disponibilidade desses produtos para doentes terminais. O Brasil é um país com um consumo de morfina 20 vezes menor que o necessário para minorar a dor dos pacientes terminais. Controla-se de tal maneira o abuso que o uso médico acaba sofrendo restrição. É um dos pontos básicos a serem resolvidos pela Junta em 2002.

Alessandra Pereira (Ciência Hoje) - A Junta controla a produção e o comércio de entorpecentes e faz os países seguirem três convenções internacionais. O que elas determinam?

Elisaldo Carlini - A Convenção Única sobre Drogas Narcóticas, publicada em 1961, estabeleceu as primeiras diretrizes de fiscalização internacional das substâncias narcóticas. Entre elas, a morfina é a mais importante. A codeína [como a morfina, ela é elaborada a partir do ópio com finalidade analgésica], a heroína e o ópio também foram incluídos. Em 1971, foi assinada a segunda convenção - a de drogas psicotrópicas. Com ela, passaram a ser controlados as anfetaminas, os barbitúricos e os benzodiazepínicos. Em 1988, saiu a terceira convenção internacional, a dos precursores de reagentes químicos para produção de drogas de abuso. A cocaína, por exemplo, está incluída na convenção de 1961, mas não seus reagentes. Para fabricá-la, é preciso ácido clorídrico, permanganato, acetona. A partir do acordo de 1988, exerce-se controle sobre as substâncias necessárias para a produção dessa droga.

Alessandra Pereira (Ciência Hoje) - Qual o papel da Junta com relação à política interna dos países?

Elisaldo Carlini - Ela não pode interferir na soberania de cada nação, mas tem uma força moral muito grande. Quando o órgão envia um relatório [publicado anualmente em fevereiro] sobre a situação dos diferentes países, nele estão apontados quais não cumprem a lei ou não fornecem os dados para o relatório. É o caso do Brasil, que no último relatório não respondeu várias questões. Essa situação ocorre com freqüência. Se um país desobedece às regras, a Junta pode pedir aos demais que não exportem para ele medicamentos ou drogas importantes. É uma espécie de “embargo”, porque os outros países geralmente acatam a posição do órgão.

Alessandra Pereira (Ciência Hoje) - Como o Brasil aparece nos relatórios?

Elisaldo Carlini - O relatório de 2000 faz críticas à capacidade operacional das autoridades brasileiras responsáveis pelo registro, controle e inspeção de drogas psicotrópicas. Em relação a essas substâncias, há outro ponto no documento que preocupa a Junta: o abuso do consumo de drogas para emagrecer na América do Sul. Os três países mais atingidos pelo problema - Argentina, Brasil e Chile - têm, por recomendação do INCB, tomado medidas administrativas e legislativas. A diminuição já foi relatada no Chile, enquanto os outros dois países ainda tentam superar o problema. O Brasil é campeão mundial em consumo de medicamentos para emagrecer.

Alessandra Pereira (Ciência Hoje) - A revista inglesa The Economist publicou, em julho de 2001, uma reportagem na qual afirma que a legalização das drogas traria mais benefícios que problemas. A matéria também menciona que o mercado dessas substâncias é altamente rentável e organizado e movimenta em torno de U$ 400 bilhões por ano - valores próximos aos da indústria mundial de petróleo. É possível combater um problema com essa dimensão?

Elisaldo Carlini - Não podemos lidar com o problema dos entorpecentes unicamente sob o ponto de vista econômico. Há dois outros aspectos fundamentais: a visão médica e o sofrimento do ser humano. E esses devem prevalecer. É importante abordar com cautela a legalização e a descriminalização. Sou contra a legalização, acredito que seria imoral tornar legal o uso da heroína porque um determinado país deixa de arrecadar milhares de dólares com a venda dela. O governo dá o aval e é como se dissesse: “Legaliza essa droga porque a questão da saúde não é importante”. A diferença é grande em relação à descriminalização. Se fizermos isso, não estaremos inocentando a droga, mas afirmando que seu uso não é criminoso. A abordagem muda. Continuamos a afirmar que droga faz mal, mas o indivíduo não vai para a cadeia por isso. Posso me aproximar de uma pessoa que está sofrendo e tem problemas de dependência, sem que ela tenha medo de ser punida. Sou a favor da descriminalização de todas as drogas. Estamos lidando com indivíduos doentes. Para funcionar, o governo precisa simultaneamente esclarecer sobre os benefícios e prejuízos do uso dessas substâncias. Por meio de uma propaganda séria, honesta e insistente, devemos dar ao cidadão o direito de fazer sua própria opção.

Alessandra Pereira (Ciência Hoje) - A aprovação pelo Congresso de penas alternativas para o usuário de drogas é o primeiro passo para que ele deixe de ser tratado como criminoso?

Elisaldo Carlini - Sem dúvida. Antes disso, quem tinha problemas com drogas não podia, em tese, sequer procurar aconselhamento. Até então, ao buscar ajuda, essa pessoa se identificava como alguém que exercia uma atividade criminosa. Retirar a questão dos entorpecentes da esfera policial é formidável. Reconheço que, para muitos que consomem drogas, elas não são problema porque esses usuários sabem se controlar. Como acontece comigo agora que consigo fumar cigarros só às vezes.

Não vejo maiores problemas em fumar, beber ou consumir drogas esporadicamente, em condições controladas, se é a pessoa quem determina o momento de fazer uso. O complicado é quando ocorre o contrário, quando a droga programa a vida do usuário. Conheci um senhor dependente de álcool que, em vez de pegar o ônibus na esquina perto de casa para ir ao trabalho, caminhava três quarteirões a mais até o outro ponto porque havia um bar no caminho. Esse é um exemplo típico da vida condicionada pela droga.

Alessandra Pereira (Ciência Hoje) - O que pode ser feito no Brasil para elaborar uma política antidrogas efetiva?

Elisaldo Carlini - É preciso que um centro, do governo ou não, elabore programas e que exista continuidade nessas ações. Já fiz parte de mais de sete comissões para estabelecer a política nacional antidrogas. Pelo menos quatro editaram um programa que deveria ser implementado. Nenhum deles foi colocado em prática. Mudava o governo e tudo era “enterrado”. No Brasil, o poder público tem uma característica única: os chefes do momento tentam destruir o que foi criado pelo antecessor. Considero importante também dizer que qualquer programa baseado exclusivamente em repressão não vai funcionar. O governo norte-americano, quando criminalizava as drogas - atualmente, muitos estados têm uma política menos severa -, chegou a prender em um ano 500 mil jovens por uso de maconha.

Alessandra Pereira (Ciência Hoje) - A taxa de prisão por porte de drogas nos Estados Unidos é maior que o número de detenções por todos os tipos de crimes em alguns países da Europa. Já países como a Holanda, onde a maconha é vendida em quantidades controladas nos coffee shops, adotam uma política mais liberal. Qual é o modelo mais adequado?

Elisaldo Carlini - Prefiro o da Holanda, pois a repressão não resolve a situação e acaba criando o submundo das drogas. Amsterdã tem algumas experiências interessantes. Nos coffee shops, os próprios freqüentadores condicionam o uso da droga. Ninguém injeta outras mais pesadas nesses lugares. A maconha é para uso pessoal. Outro aspecto que vale a pena ressaltar é a implantação de programa de redução de danos. Uma equipe médica vai até os locais de uso e aplica drogas, como heroína, nos dependentes, desde que eles devolvam a seringa anterior. Os casos de AIDS nessas áreas não chegam a 10% entre os usuários, enquanto em cidades como Barcelona e Milão atingem até 30%.

Alessandra Pereira (Ciência Hoje) - Qual a sua avaliação dos serviços de tratamento?

Elisaldo Carlini - Acho que poderíamos ter centros de tratamento mais eficientes. Qualquer modelo terapêutico no mundo consegue recuperar, em um período de dois anos, 30% dos pacientes. Sem tratá-los, a taxa de recuperação é a mesma: entre 25% e 30%. Para a medicina, melhorar a vida de 25 pessoas já é significativo, mas, do ponto de vista de saúde pública, tratamento - assim como a repressão - não é a melhor solução. Acho que a única maneira eficaz de lidar com as drogas é evitar o uso através da prevenção. Isso tem de ser feito com os jovens. A vida miserável acaba, porém, levando ao abuso dessas substâncias. Para discutir prevenção, o governo precisa pensar claramente como a população vive e quais os problemas que agravam a saúde dela. A única atitude que resolveria a questão é a menos prestigiada pelo governo brasileiro: quase nenhuma verba pública é destinada à prevenção.

Alessandra Pereira (Ciência Hoje) - O senhor foi secretário da Vigilância Sanitária de 1995 a 1997 e, ao sair, fez algumas críticas ao órgão. Quais foram as dificuldades enfrentadas e como define sua passagem pela Vigilância?

Elisaldo Carlini - Uma desgraça, devido à inutilidade do esforço dedicado. Propus reformular a classificação dos medicamentos e instaurar o programa de farmacovigilância. Tive total apoio do ministro [da Saúde] Adib Jatene, que me convidou para o cargo. Criamos nesse período um programa de inspeção da indústria farmacêutica brasileira. As dificuldades foram as mais diversas. Durante os dois anos, não consegui gastar nem 20% do orçamento que diziam que a Vigilância Sanitária tinha mas não estava disponível. A Vigilância não tinha sequer um livro técnico. Em 1996, chegamos inclusive a marcar a data de inauguração da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, mas, com a saída de Jatene, todos os programas foram abandonados. O ministro incompatibilizou-se com o governo porque ele quis realmente resolver os problemas de saúde do país. No período em que estive na secretaria, muitos interesses foram contrariados. Cassamos a licença de funcionamento de mais de 200 laboratórios. Em alguns lugares ditos laboratórios funcionavam padarias. Nos dois anos anteriores a minha entrada (1993 e 1994), haviam sido feitas 25 inspeções. Nós fizemos mais de mil. A falsificação de medicamentos em 1997 e em 1998 ocorreu em conseqüência da interrupção do programa de inspeção. Agora, felizmente, esses projetos estão voltando. Se a Vigilância Sanitária não tiver certeza da continuidade de programação, é melhor não implantar nenhuma proposta.

Fonte: Ciência Hoje nº 181 (Abril de 2002)

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