22 de outubro de 2003, CartaCapital
O premier do Canadá vem opondo-se às políticas da ONU sobre drogas, por seguirem o modelo norte-americano.
Walter Fanganiello Maierovitch
Mais uma vez, o governo George W. Bush atritou com o premier canadense Jean Chrétien, cujo mandato terminará em fevereiro de 2004. Os moralistas do staff de Bush estão inconformados com os “maus exemplos” provindos do país vizinho.
Algumas recentes iniciativas administrativas e dois projetos legislativos do governo Chrétien irritaram profundamente Bush. E a sua “turma brancaleone” partiu para a tradicional intromissão em casa alheia. A fina ironia do premier e uma fala dura do ministro da Justiça, Martin Cauchon, serviram de respostas.
Chrétien quer aprovar no Parlamento uma lei sobre a união civil de homossexuais. Também objetiva, por meio de nova lei, deixar de criminalizar o porte de drogas leves para uso próprio, mantendo a proibição do consumo como infração administrativa, sujeita a pagamento de multa pecuniária.
Nos dois casos, Chrétien invoca o legado de tolerância e de racionalidade deixado pelo estadista progressista Pierre Elliot Trudeau, morto em 2000. O liberal Trudeau foi primeiro-ministro durante 16 anos (1968 a 1984). Conseguiu manter o país unido, apesar dos separatistas gaulistas de Quebec, e excluiu do Código Penal o crime de “convivência homossexual”. Agora, Chrétien pretende alargar o passo e legalizar as uniões de fato entre pessoas do mesmo sexo.
Diante das diatribes norte-americanas, Jean Chrétien ironizou ao afirmar que, ao ser aprovada a lei descriminalizando o uso de drogas, vai segurar um cigarro de maconha numa mão e levar, na outra, uma cédula de dólar canadense, para pagar a multa administrativa.
A Casa Branca resolveu responder por meio de seu czar antidrogas, John Walters, o encarregado, no governo Bush, de militarizar o combate à oferta de drogas na América Latina e aumentar, nos EUA e países aliados, a duração da pena de prisão dos consumidores de qualquer tipo de droga proibida.
Na sexta-feira 10, quando discursava no Center for Strategic and International Studies, Walters disparou: “Os canadenses devem estar envergonhados pelo que disse o seu líder. Chrétien foi irresponsável ao dar esse tipo de exemplo. O Canadá é um dos lugares do planeta onde as coisas estão sendo conduzidas por maus caminhos. É o país onde a produção de drogas aumenta em vez de diminuir”.
Por sua vez, o ministro da Justiça canadense contra-atacou: “Walters deveria ocupar-se com os fatos que acontecem nos EUA. Lá, mais de dez estados têm leis contemplando penas alternativas à prisão. Então, se os estados norte-americanos não estão no caminho correto, Walters deveria dar conselhos a eles, não ao Canadá”.
Quanto ao aumento da “produção” de drogas no Canadá, Walters se referia ao plantio oficial de marijuana. Com efeito, inúmeros juízes canadenses autorizaram o uso terapêutico da erva. Para evitar a aquisição da maconha de traficantes, o governo do Canadá determinou aos agentes públicos o plantio na região montanhosa de Flin Flon, na província de Manitoba.
A maconha da referida procedência desagradou não apenas ao czar Walters. Houve protestos de pacientes canadenses que consideram a marijuana de Manitoba de péssima qualidade, com princípio ativo fraco para inibir dores ou suprimir náuseas aos submetidos à quimioterapia. O ministro da Saúde canadense, Dave Choamiac, com um certo embaraço, prometeu providências: assim, sementes de maconha transgênica provindas da Albânia estariam fora de cogitação.
Com a falta de cerimônia própria de um agente da autoridade imperial, Walters deixou claro, ainda, não concordar com as concessões dadas para o funcionamento de caffès cannabis no Canadá. Atacou a proliferação desses lugares e ignorou tratar-se de medida voltada a evitar o contato com o narcotraficante, sempre pronto a ofertar drogas mais pesadas.
O premier Jean Chrétien, há tempo, vem opondo-se às políticas das Nações Unidas sobre drogas, por seguirem o modelo norte-americano. Evidentemente, sabe que os norte-americanos são campeões mundiais de consumo e as suas políticas não conseguem tirá-los do topo do pódio.
Como o Canadá seguia as políticas do modelo norte-americano, Chrétien resolveu mudar o estilo. Para comprovar essa necessidade, utilizou a pesquisa sobre o custo social da droga no Canadá, estimado em 4% do seu PIB.
Nada mais precisava fazer para demonstrar o fracasso. Ou melhor, poderia ter sutilmente avisado o presidente Lula que, no particular, mantém a política do governo anterior. Em outras palavras, Lula está mais para FHC do que para Chrétien-Trudeau.
Fonte: CartaCapital nº 263 (22 de outubro de 2003)
quarta-feira, 22 de outubro de 2003
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