17 de março de 2004, The Narco News Bulletin
Primeiro passo para descriminalizar o usuário e diminuir a superlotação dos presídios
Karine Mueller
“Cada crime uma sentença. Cada sentença um motivo, uma história de lágrima. Sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio, sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo. Misture bem essa química. Pronto: eis um novo detento… Mas pro Estado é só um número, mais nada. Nove pavilhões, sete mil homens. Que custam trezentos reais por mês, cada.” (Diário de um Detento – autor desconhecido.)
O trecho acima se refere à música interpretada pelos Racionais MC’s, grupo de rap brasileiro. A letra é o retrato da realidade vivida pelos presos da superlotada Casa de Detenção Carandiru, desativada em 2002, dez anos após o massacre que deixou 111 mortos. A superlotação tem sido o maior problema do sistema prisional do país. Dados do último censo divulgado pelo DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional), revelam que, em 1995, o Brasil tinha 95,5 presos por 100 mil habitantes; e, hoje, tem 173,5 por 100 mil – um aumento de 81,7%. Eram 148 mil detentos há oito anos e hoje são 300 mil, disputando espaço em 1.430 presídios e delegacias.
Por trás destes números está uma política de combate à criminalidade equivocada, que aposta no endurecimento da legislação penal como instrumento para garantir a nossa segurança. O número de presos despejados nas cadeias é muito maior do que aquele que o sistema de justiça criminal consegue digerir e colocar de volta na rua. A grande maioria, 98% dos presidiários, são pessoas pobres, 38% têm menos de 25 anos e 67% não concluíram o ensino fundamental. Dados que comprovam que quem tem dinheiro para pagar um advogado não é preso e, muitas vezes, sequer é processado.
Estima-se que, do número total de detentos, cerca de 12,5% foram surpreendidos em flagrante com pequeno porte de drogas (quantidades que caracterizam uso próprio) e indiciados através da Lei 6368/76 – tráfico de drogas – artigo 12 do Código Penal, parágrafo 2, inciso 3, que trata da contribuição ou difusão do uso indevido de drogas ou tráfico de entorpecente, com pena de três a 15 anos. Ou seja, foram vítimas de uma lei ambígua que não diferencia o traficante do usuário ou dependente químico.
Luz no fim do túnel
O problema da crise social dentro dos presídios é também um problema de leis. Mal elaboradas e aplicadas, colocam na mesma cela o “ladrão de galinhas” e o homicida. O usuário de drogas e o traficante. Servindo como instrumento para reparar esta confusão, no último dia 11/02 foi aprovada, no Senado, a Lei 7134. A medida determina o fim da pena de prisão para usuários e dependentes de drogas. A nova lei também dispensa a necessidade de o consumidor flagrado com entorpecentes ir à delegacia. Ele deverá apenas ser encaminhado à Justiça, onde prestará depoimento. Caso isso não seja possível, o infrator terá de assinar termo circunstanciado, em que se compromete a ir ao juizado. A pena prevista varia da advertência verbal até a prestação de serviços à comunidade. A prisão para o consumidor ocorrerá somente em um caso: quando ele se recusar a cumprir a pena determinada pelo juiz.
A lei tem o apoio do Governo, mas deverá sofrer algumas modificações no texto antes de começar a ser aplicada. Distinguindo o usuário do traficante, espera-se que o uso de drogas seja tratado como tema de saúde; e o do tráfico, como uma questão de polícia.
Na prática, o que muda com a Lei 7134?
Menos gente presa por abuso de drogas, mais investimento em outros setores da saúde pública ou no combate a violência. Em um ano, o governo brasileiro chega a gastar de 1500 a 3000 reais por preso na repressão ao uso de drogas dentro das cadeias. Ainda não temos informações se, junto com a implantação da Lei 7134, haverá a possibilidade de habeas corpus aos detentos enquadrados na legislação anterior. Tampouco se os mesmos terão alguma chance de lutar na justiça contra a sentença julgada. São 37.500 pessoas, enquadradas neste caso, esperando uma chance de reintegração na sociedade. Enquanto isto não for possível, ao menos a mudança promete poupar as vidas, muitas vezes vítimas do preconceito e da exclusão social, das condições precárias e subumanas em que vivem os presidiários no país.
A nova lei impede a prisão do usuário e ainda acaba com o tratamento obrigatório contra a dependência química. Quando achar necessário, o juiz pode sugerir um tratamento, que deve ser oferecido gratuitamente pela rede pública de saúde. Para traficantes, a pena varia de 5 a 15 anos de prisão, sem direito a fiança ou benefícios. A diferenciação dos dependentes será feita por um juiz. Na avaliação do relator da proposta, deputado Paulo Pimenta “uma pessoa surpreendida com cinco cigarros de maconha na frente de casa é bem diferente de outra, surpreendida com a mesma quantidade em uma escola”. No caso do financiador do tráfico a pena pode variar de 8 a 20 anos.
Parlamentares que desaprovam a nova legislação
Apesar deste avanço na legislação brasileira há quem insista na “Guerra das Drogas”, exigindo a permanência da criminalização do uso. O deputado Alberto Fraga, da Frente Parlamentar de Segurança Pública, não poupou críticas ao projeto na imprensa, argumentando que é por meio do consumidor que a polícia chega ao traficante. Ele ainda confundiu a descriminalização com a legalização afirmando que a nova lei “é praticamente a liberação das drogas”.
Durante a aprovação da nova lei, o deputado Walter Rubinelli, engrossou o coro dos descontentes na Câmara, dizendo em voz alta: “Este é um dia especial para traficantes”. Já o deputado Morani Torgan, que presidiu a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do narcotráfico em 1999, foi mais longe. Além das críticas na imprensa, o parlamentar aproveitou a brecha de que o texto iria sofrer modificações e propôs um anteprojeto de lei.
Torgan valeu-se do fato de que não foi estabelecido um prazo para fazer as alterações na redação do projeto, para revelar sua descrença na aplicabilidade da lei enfatizando que esta poderia virar “letra morta”.
Atitude sábia
Apesar das ondas negativas, o Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que sempre foi a favor da descriminalização das drogas, elogiou a aprovação da Lei 7134. O ministro está convencido de que a proposta é “um avanço na direção do combate efetivo ao tráfico e ao consumo de drogas no País”. Definiu a lei como uma atitude sábia, sustentando que o usuário não pode sofrer mais a criminalização da cadeia.
O atual secretário da SENAD (Secretaria Nacional Anti-Drogas), general Paulo Roberto Uchôa, esteve presente durante toda a votação do projeto e afirmou que o mais importante na proposta é “a diferenciação entre viciados e traficantes”.
A opinião de especialistas
Mudar leis no Brasil não é tarefa fácil. Gera muita polêmica e equívocos. Mesmo com a mudança na legislação ainda não atingimos o tratamento ideal na questão do uso de drogas. Expressões como “viciado”, “antidroga”, “penas alternativas”, “criminoso”, ainda são freqüentes neste debate. Contudo, é fundamental ressaltar que um primeiro passo foi dado em direção à descriminalização do usuário.
O juiz aposentado, Waltér Maierovitch, especialista em drogas, considera a Lei 7134 como uma “despenalização relativa do consumo, mas que poderia ir mais longe”. Ele defende que “era possível chegar ao patamar da modernidade, como em Portugal, onde o uso de drogas não é mais crime”. Maierovitch, que já foi secretário nacional antidrogas durante o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, opina que a lei continua estigmatizando o dependente.
Profissionais de saúde também defendem tratamento em vez de prisão. Na atual política de Redução de Danos, o dependente não é criminoso, mas alguém que precisa de ajuda. Entretanto, mesmo sem prisão, o projeto não agradou à psicóloga Sandra Batista, presidente da Rede Latino-Americana de Redução de Danos. Para ela, dar seguimento às penas alternativas significa continuar tratando o consumidor como um criminoso.
“O uso de droga não deve ser crime”, esta é a opinião do antropólogo e ex-secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Luiz Eduardo Soares. Por ser favorável à descriminalização, o antropólogo aprovou a medida do governo, ressaltando a evolução da política pública sobre drogas no país. Para Soares, o debate deve seguir cada vez mais público e não ficar restrito apenas ao cenário governamental.
Com este gancho, e levantando a bandeira do respeito à população brasileira, especialmente aos que não têm chance de defesa, o próximo passo é cobrar dos parlamentares, juristas e demais autoridades competentes que a Lei 7134 seja aplicada de forma justa e democrática. E que se estabeleça uma razoável proporcionalidade entre o crime cometido e o castigo aplicado.
Fonte: http://narconews.com/Issue32/artigo928.html
quarta-feira, 17 de março de 2004
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