25 de abril de 2002, Folha de S. Paulo (Tendências e Debates)
Julita Lemgruber
Julita Lemgruber, 57, socióloga, é diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes. Foi diretora do Sistema Penitenciário (1991-94) e ouvidora de Polícia (1999-2000) no Estado do Rio de Janeiro.
"Cresce o cultivo de coca na Colômbia", dizia manchete do caderno Mundo no dia 9 de março último. De acordo com relatório da CIA (agência de inteligência dos EUA), o cultivo da coca, planta utilizada para a produção da cocaína, cresceu 24,7% na Colômbia no último ano, a despeito do Plano Colômbia, de combate ao narcotráfico, para o qual os EUA contribuem com US$ 1,3 bilhão. Ao final, informa o texto que "o subsecretário de Estado para assuntos de narcotráfico, Rand Beers, admitiu que a política americana de combate às drogas não tem significado uma redução na oferta de drogas".
Aliás, Barry McCaffrey, antecessor de Beers, ao deixar seu posto, reconheceu que, a despeito dos bilhões de dólares gastos nessa luta na era Clinton, nunca as drogas haviam estado tão puras, tão baratas e tão acessíveis em seu país. Ora, tem a "guerra contra as drogas", inspirada no modelo ditado por Washington, alguma chance de vitória?
Entre 1980 e 2000 o orçamento federal estadunidense para o combate às drogas passou de US$ 1 bilhão para US$ 18,5 bilhões.
Estimativas conservadoras mostram que, nos Estados Unidos, entre 1981 e 1998, o preço do grama de cocaína caiu de US$ 191 para US$ 44 e o grama de heroína passou de US$ 1.194 para US$ 317. No mesmo período, a pureza cresceu: passou de 60% para 66%, no caso da cocaína, e de 19% para 51%, no caso da heroína.
Quanto à acessibilidade, pesquisa de 1999 revelou que estudantes secundários consideram fácil adquirir drogas ilícitas nos Estados Unidos: 88% dos entrevistados disseram que é fácil comprar maconha e 47% afirmaram poder comprar cocaína sem dificuldades.
Anualmente morrem, nos Estados Unidos, aproximadamente 500 mil pessoas em conseqüência do uso de drogas lícitas (400 mil têm mortes relacionadas ao uso do tabaco e 100 mil morrem em conseqüência da ingestão de álcool); e apenas 20 mil mortes relacionam-se ao uso de drogas ilícitas. Ora, dirão alguns, esses números não servem para condenar as drogas lícitas, pois a quantidade de pessoas que usam álcool e tabaco é infinitamente maior, logo o número de mortes também deve ser, necessariamente, maior.
No entanto a ponderação pelo número de usuários revela que as drogas lícitas são de fato muito mais letais: morrem 506 pessoas em cada 100 mil usuários de álcool e tabaco, contra 166 em cada 100 mil usuários de maconha, cocaína, crack e heroína.
Além de não impedir que as drogas se tornassem mais baratas, puras e acessíveis, o modelo estadunidense de combate ao narcotráfico contribuiu para abarrotar as prisões, aumentando exponencialmente os gastos da Justiça e do sistema penitenciário. Pior: recente estudo realizado nos Estados Unidos mostrou que 36% de todos os presos condenados por crimes relacionados com drogas eram pequenos infratores, sem nenhum registro anterior de comportamento violento.
A violência que acompanha a expansão do mercado de drogas, nos EUA ou em outras partes do mundo, decorre em grande medida do próprio modelo repressivo adotado, que pode ser descrito, no mínimo, como esquizofrênico: proíbem-se as drogas, mas não as armas de fogo; criminaliza-se o comércio de substâncias menos letais do que o álcool e o tabaco; colocam-se na cadeia milhares de usuários e pequenos traficantes sem nenhuma periculosidade; e, ao mesmo tempo, incentiva-se a guerra generalizada dentro do tráfico e contra ele, o armamento até das polícias e da população, a mobilização de exércitos, a resolução à bala de disputas comerciais.
Um estudo do Ministério da Justiça estadunidense admite que os conflitos no interior do mercado de drogas ilícitas, junto com a proliferação das armas de fogo, estão entre os principais determinantes da violência letal naquele país; admite ainda que grande parcela dos homicídios se relaciona ao tráfico e que cerca de dois terços desses homicídios são cometidos com armas de fogo.
Mas, mesmo assim, continua a aposta na "guerra" como solução para o problema das drogas. Uma guerra perdida, que gera mais morte e destruição do que evita, que estimula não só a violência, como a corrupção da polícia e dos políticos, contra um mercado capaz de movimentar no mundo US$ 400 bilhões por ano só com a venda de drogas, sem contar os ganhos da indústria de armas. Será isso esquizofrenia ou hipocrisia?
O Brasil é hoje exemplo no mundo quando se fala em política de combate à AIDS. O sucesso dessa política foi resultado de campanhas corajosas e agressivas, ao longo das quais superamos preconceitos e enfrentamos interesses poderosos. Está mais do que na hora de iniciar um debate sério sobre a descriminalização das drogas, lembrando que, através de campanhas educacionais, também corajosas e honestas, poderemos evitar que pessoas morram pelo abuso de drogas pesadas. Não é com a repressão policial violenta, com gastos de somas fabulosas (que não temos!) ou com campanhas mentirosas que estaremos criando um mundo livre de drogas.
Muitas drogas ilícitas já foram legais no passado. Vamos ter que aprender a conviver com elas e desenvolver uma política consistente e conseqüente de redução dos danos das drogas pesadas. Mais ousadia e menos hipocrisia é do que precisamos para avançar nessa área, como conseguimos indiscutivelmente avançar na luta contra a AIDS.
Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idArea=1&idSubArea=126
quinta-feira, 25 de abril de 2002
segunda-feira, 1 de abril de 2002
Reflexões sobre uma indústria altamente rentável
Abril de 2002, Ciência Hoje
Especial "Drogas" - 1ª parte
Alicia Ivanissevich
A variedade de opiniões sobre como abordar o problema do crescente consumo de drogas no Brasil e no mundo é imensa. Mas existe consenso pelo menos quanto a um ponto: trata-se de uma das indústrias mais rentáveis do planeta, ultrapassando inclusive a de petróleo. A venda mundial de entorpecentes para usuários é estimada em US$ 150 bilhões - quantia próxima à gasta pelos consumidores de cigarro (US$ 204 bilhões) e do álcool (US$ 252 bilhões). É, com certeza, o mercado ilícito que mais movimenta dinheiro.
Em todo o mundo, o consumo de drogas não pára de crescer. Os Estados Unidos são certamente o maior consumidor, sobretudo de cocaína e anfetaminas (as vendas chegam a US$ 60 bilhões), seguidos de perto pela Europa. Paquistão, Tailândia, Irã e China respondem pelo maior número de usuários de heroína - os preços baixos, entretanto, impedem que as vendas atinjam US$ 10 bilhões. Em países ricos, como a Grã-Bretanha, as drogas que mais atraem os jovens são as consumidas ocasionalmente, como a maconha, o ecstasy, as anfetaminas e a cocaína.
Ninguém gasta mais com uma política antidrogas do que os Estados Unidos: US$ 35 a 40 bilhões anuais. Os resultados, no entanto, não são nada animadores. A repressão tem ajudado a inchar as prisões e a tornar mais corrupta a polícia norte-americana. Milhares de jovens negros e hispânicos acabam na cadeia: há mais deles na prisão do que na escola. Apesar de o governo insistir em afirmar que a estratégia de combate está funcionando (o consumo ocasional caiu e o uso de drogas pesadas se estabilizou, segundo órgãos oficiais), um terço dos norte-americanos com mais de 12 anos de idade admitiu já ter experimentado drogas no último ano.
Ainda sobre o modelo norte-americano, devemos lembrar que, nos Estados Unidos, o tabaco mata proporcionalmente mais fumantes do que a heroína destrói a vida de seus usuários; da mesma forma, o álcool faz mais vítimas fatais do que a cocaína.
A avaliação das estatísticas e das experiências conduzidas em diversos países aponta para uma questão central: as políticas atuais para o controle de entorpecentes não parecem adequadas. É importante aqui recordar as conseqüências da instituição da Lei Seca nos Estados Unidos (1920-1933), que proibia a venda de álcool e só admitia o consumo dentro de casa. Nesses 13 anos, ocorreu, na verdade, uma distorção do sentido original da lei: a proibição acabou encorajando a formação de gangues, aumentando a corrupção policial e disseminando o crime por todo o território norte-americano.
Em uma extensa análise publicada em julho/agosto de 2001, a revista inglesa The Economist destaca a necessidade de rever a legalização das drogas - não apenas a posse e o uso, como também o comércio - para reverter radicalmente o quadro de corrupção policial, danos à saúde, crimes e prejuízos sociais a elas associados.
Motivado pela repercussão do artigo da The Economist, nosso conselho editorial decidiu refletir sobre a questão, convidando, para comentá-lo, alguns especialistas no assunto. São pesquisadores de diversas áreas do conhecimento que apresentam suas argumentações em prol ou contra a descriminalização das drogas, ponderando os danos causados tanto aos usuários de drogas ilícitas quanto à sociedade. Suas opiniões não refletem necessariamente o pensamento dos editores.
Este especial pretende funcionar como um caleidoscópio, através do qual o leitor de Ciência Hoje poderá construir, a partir dos fragmentos por ele escolhidos, sua própria avaliação sobre o tema. Para isso vale ter em mente: as políticas antidrogas de alguns governos são, muitas vezes, mais prejudiciais para a sociedade do que as próprias drogas.
Fonte: Ciência Hoje nº 181 (Abril de 2002)
Especial "Drogas" - 1ª parte
Alicia Ivanissevich
A variedade de opiniões sobre como abordar o problema do crescente consumo de drogas no Brasil e no mundo é imensa. Mas existe consenso pelo menos quanto a um ponto: trata-se de uma das indústrias mais rentáveis do planeta, ultrapassando inclusive a de petróleo. A venda mundial de entorpecentes para usuários é estimada em US$ 150 bilhões - quantia próxima à gasta pelos consumidores de cigarro (US$ 204 bilhões) e do álcool (US$ 252 bilhões). É, com certeza, o mercado ilícito que mais movimenta dinheiro.
Em todo o mundo, o consumo de drogas não pára de crescer. Os Estados Unidos são certamente o maior consumidor, sobretudo de cocaína e anfetaminas (as vendas chegam a US$ 60 bilhões), seguidos de perto pela Europa. Paquistão, Tailândia, Irã e China respondem pelo maior número de usuários de heroína - os preços baixos, entretanto, impedem que as vendas atinjam US$ 10 bilhões. Em países ricos, como a Grã-Bretanha, as drogas que mais atraem os jovens são as consumidas ocasionalmente, como a maconha, o ecstasy, as anfetaminas e a cocaína.
Ninguém gasta mais com uma política antidrogas do que os Estados Unidos: US$ 35 a 40 bilhões anuais. Os resultados, no entanto, não são nada animadores. A repressão tem ajudado a inchar as prisões e a tornar mais corrupta a polícia norte-americana. Milhares de jovens negros e hispânicos acabam na cadeia: há mais deles na prisão do que na escola. Apesar de o governo insistir em afirmar que a estratégia de combate está funcionando (o consumo ocasional caiu e o uso de drogas pesadas se estabilizou, segundo órgãos oficiais), um terço dos norte-americanos com mais de 12 anos de idade admitiu já ter experimentado drogas no último ano.
Ainda sobre o modelo norte-americano, devemos lembrar que, nos Estados Unidos, o tabaco mata proporcionalmente mais fumantes do que a heroína destrói a vida de seus usuários; da mesma forma, o álcool faz mais vítimas fatais do que a cocaína.
A avaliação das estatísticas e das experiências conduzidas em diversos países aponta para uma questão central: as políticas atuais para o controle de entorpecentes não parecem adequadas. É importante aqui recordar as conseqüências da instituição da Lei Seca nos Estados Unidos (1920-1933), que proibia a venda de álcool e só admitia o consumo dentro de casa. Nesses 13 anos, ocorreu, na verdade, uma distorção do sentido original da lei: a proibição acabou encorajando a formação de gangues, aumentando a corrupção policial e disseminando o crime por todo o território norte-americano.
Em uma extensa análise publicada em julho/agosto de 2001, a revista inglesa The Economist destaca a necessidade de rever a legalização das drogas - não apenas a posse e o uso, como também o comércio - para reverter radicalmente o quadro de corrupção policial, danos à saúde, crimes e prejuízos sociais a elas associados.
Motivado pela repercussão do artigo da The Economist, nosso conselho editorial decidiu refletir sobre a questão, convidando, para comentá-lo, alguns especialistas no assunto. São pesquisadores de diversas áreas do conhecimento que apresentam suas argumentações em prol ou contra a descriminalização das drogas, ponderando os danos causados tanto aos usuários de drogas ilícitas quanto à sociedade. Suas opiniões não refletem necessariamente o pensamento dos editores.
Este especial pretende funcionar como um caleidoscópio, através do qual o leitor de Ciência Hoje poderá construir, a partir dos fragmentos por ele escolhidos, sua própria avaliação sobre o tema. Para isso vale ter em mente: as políticas antidrogas de alguns governos são, muitas vezes, mais prejudiciais para a sociedade do que as próprias drogas.
Fonte: Ciência Hoje nº 181 (Abril de 2002)
Drogas: um panorama no Brasil e no mundo
Abril de 2002, Ciência Hoje
Especial "Drogas" - 2ª parte
Alba Zaluar
Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Nos últimos 30 anos, inúmeros esforços foram feitos para deter o crescimento das drogas como poder econômico e fator degradante da sociedade. Uma postura radical, com a repressão severa e o encarceramento, já demonstraram ter pouca eficácia, gerando efeitos colaterais como o aumento da população carcerária e dos custos para mantê-la. Novas diretrizes, adotadas por países como os Estados Unidos, indicam que campanhas de informação, o incentivo à cooperação entre a população e a polícia e o investimento em programas de tratamento de dependentes graves podem diminuir a criminalidade, sendo um caminho para lidar melhor com um problema que já faz parte da cultura mundial.
À frente da war on drugs (guerra às drogas) desde o final dos anos 70, os Estados Unidos vêm adotando uma política repressiva, violenta e inútil, na tentativa de conter a produção e a comercialização de drogas. O objetivo é diminuir o consumo interno, que em vários estados também é reprimido por lei. Na década de 90, em apenas quatro anos foram gastos US$ 45 bilhões, pagos pelos contribuintes norte-americanos para financiar campanhas internacionais. Apesar desses esforços, os Estados Unidos continuam aparecendo nas estatísticas como o país com maior diversidade de drogas em circulação. Em Baltimore, cidade norte-americana com 740 mil habitantes, população predominantemente negra e renda média de US$ 19 mil anuais, estima-se que 60% de todos os crimes envolvam drogas. Entre 1986 e 1991, a polícia dessa cidade prendeu 82 mil pessoas por crimes e contravenções relativas a drogas. Em 1991, 46% dos homicídios nessa cidade tinham a ver com os entorpecentes.
Com a adoção da política de tolerância zero em várias cidades norte-americanas, em meados dos anos 90 o número de prisões feitas por pequenos delitos, entre os quais o uso e o comércio de drogas, ajudou a elevar drasticamente a população carcerária, aumentando ainda mais os custos da repressão interna. Os Estados Unidos tornaram-se campeões do mundo nesse item (um milhão e meio de pessoas presas). Os índices de criminalidade baixaram em várias cidades, ao mesmo tempo em que novas medidas foram aplicadas. Por exemplo, projetos de cooperação entre a população e a polícia, patrulhamento a pé, planejamento, treinamento e recrutamento de “policiais de serviços” e de “civis”. Todas essas medidas visavam conquistar a confiança dos moradores, ao mesmo tempo em que os policiais abandonavam a postura de “caçadores” dentro de viaturas, de onde não interagiam com as pessoas e que inspiravam nelas medo e hostilidade.
Hoje a sociedade norte-americana divide-se em torno do acirrado debate sobre a legalização do uso de drogas. Representantes do próprio governo expressam preocupação com a superpopulação carcerária; agentes penitenciários denunciam que a maioria dos presos é de usuários de drogas e não de perigosos criminosos.
Nos organismos internacionais, o debate e a preocupação não são menores. Segundo o Conselho Social e Econômico das Nações Unidas (dados de 1994), o crime organizado transnacional, com capacidade de expandir suas atividades ao ponto de ameaçar a segurança e a economia dos países, particularmente aqueles em transição e desenvolvimento, representa atualmente o maior perigo que os governos precisam enfrentar para assegurar sua estabilidade e segurança.
Razões do uso de drogas
Numerosos estudos abordam a dificuldade da separação entre traficante e usuário, sombreada pelos efeitos do vício que a droga proporciona. Pesquisas do tipo survey ou levantamento, muito caras e de difícil metodologia, foram conduzidas nos Estados Unidos com a conclusão de que os homens, mais do que as mulheres, usam drogas ilegais. Homens mais novos (de 18 a 25 anos) usam mais do que os mais velhos; os desempregados mais do que os empregados; os solteiros e divorciados mais do que os casados.
Existem igualmente estudos focalizados nas relações familiares, de emprego e de vizinhança que os usuários abusivos de drogas mantêm. As conclusões contestam as idéias de senso comum, que associam tais comportamentos à pobreza, a “lares desfeitos” e a “más companhias”. Alguns estudos procuram mostrar que não a pobreza, mas as próprias exigências do funcionamento do tráfico são a origem do comportamento violento associado ao uso de drogas. Outros juntam evidências de que a falta de diálogo aberto entre pais e filhos abre caminho para o consumo das mesmas. Seria, então, a violência doméstica e a ausência dos pais, mais do que a separação deles, as principais razões do uso de drogas. A curiosidade, a valorização do proibido e do risco, característicos da adolescência, assim como o desejo de se afirmar como alguém capaz de enfrentar a morte, faz do uso de drogas proibidas uma atração constante para os jovens, só superada pela informação, pelo diálogo e pela preocupação demonstrada pelos adultos.
Usuários e traficantes
No Brasil, o governo sempre adotou medidas repressivas no combate às drogas, e a polícia tem um enorme poder em determinar quem será ou não processado e preso como traficante, crime considerado hediondo. No que se refere à administração da justiça, jovens pobres, negros ou mulatos são presos como traficantes, o que ajuda a criar uma superpopulação carcerária, além de tornar ilegítimo e injusto o funcionamento do sistema jurídico no país. Policiais costumam prender meros fregueses ou pequenos repassadores de drogas (aviões) para mostrar eficiência no trabalho. A quantidade apreendida não é o critério diferenciador. Essa indefinição, que está na legislação, favorece o abuso do poder policial que, por sua vez, inflaciona a corrupção.
No Rio de Janeiro, onde coordenei trabalho de campo realizado entre 1998 e 2000 em três bairros - Copacabana, Tijuca e Madureira - e em que entrevistamos cerca de 120 policiais, moradores, usuários e alguns repassadores, concluímos que os usuários eram, em sua maioria, usuários sociais. Em comum, tinham a busca da privacidade e de um uso discreto para “não dar na vista”, nem assustar os demais freqüentadores dos locais de boemia. Isso não quer dizer que não existam usuários pesados. Estes têm dificuldades no relacionamento com os usuários sociais e mesmo com os traficantes, que não os respeitam, nem gostam deles por chamarem a atenção da polícia e não conseguirem pagar as dívidas.
Usuários de Copacabana, Tijuca e Madureira, de modo geral, evitaram classificar-se como dominados pela droga ou capazes de qualquer coisa para obtê-la, escapando dos estereótipos do marginal. Só aqueles que foram entrevistados quando já estavam sob tratamento admitiram a dependência e a associação com outras práticas criminais.
Traficantes de favelas na Tijuca e em Madureira controlam mais facilmente as ruas do bairro, seja para impedir que vendedores independentes comercializem drogas por ali, seja para demonstrar o seu poder de fogo. Não é incomum vê-los andando armados. Quando um vendedor não autorizado é identificado pelos “donos” das bocas de fumo (por extensão, das favelas), ele é ameaçado de morte. Nesses dois bairros, é preciso ter a permissão dos “donos” para vender drogas. Na Tijuca, a proximidade dos morros tira a paz e a tranqüilidade do bairro residencial e conservador: tiros atingem as casas, matando gente que assiste à televisão ou dorme.
O estilo do tráfico na Tijuca e em Madureira, poderia ser resumido como diretamente controlado pelos traficantes de favela, caracterizado pelo uso corriqueiro da arma de fogo para assegurar o território, cobrar dívidas, afastar concorrentes e amedrontar possíveis testemunhas. Isso marca uma diferença crucial em relação à Copacabana, cujo estilo discreto dos traficantes se caracteriza pela clandestinidade e ausência de controle de territórios.
Estar “ligado”, estar “chapado”
No caso específico da maconha e da cocaína, verificou-se a importância do grupo e do ambiente na decisão de consumi-las, assim como na continuidade do uso. Todos os entrevistados que experimentaram drogas ilegais - permanecendo ou não como usuários - registraram que a primeira experiência ocorreu em situações coletivas e de lazer como acampamentos, viagens e festas. Por isso mesmo, aqueles que interromperam momentânea ou definitivamente o uso dessas substâncias, se afastaram do grupo e do ambiente associado a essa prática. Os que voltaram a usar, mesmo após tratamento e desintoxicação, devem a “recaída” a encontros com amigos e conhecidos, ligados aos circuitos e locais em que as drogas ilegais são comercializadas e compartilhadas.
Embora haja alguns usuários múltiplos de maconha e cocaína, em geral são grupos que não se misturam. O etos e as imagens associadas a cada uma dessas drogas divergem entre si. A maconha teria um etos bucólico, com referências ao dia, ao campo, à natureza, à comida, à saúde, ao ócio e à paz. Já a cocaína, seria associada a um uso mais urbano e artificial, à saída noturna para boates, ao viver agitado, à degeneração do corpo, e à guerra. Ela também é usada para potencializar a capacidade produtiva, especialmente no trabalho noturno, como o de jornalistas, bancários, caminhoneiros, vigias etc. Entrevistados nos três bairros assinalaram que entre os efeitos desejados estão a euforia, a “adrenalina”, a “ligação” e “o ficar aceso”, atribuídos à cocaína; assim como o “estar chapado” ou “ficar lesado”, “desligado”, devido à maconha.
Segundo usuários, por causa da cocaína, “o cara mata, não tem amizade, não tem nada”, o que nos indica a maior associação entre o traficante e o usuário quando a droga é a cocaína. Vários afirmaram ter visto “gente se destruir” e homens que “deixam de querer saber de mulher” ou “que viram mulher”, “que se prostituem para pagar o vício”. Assertivas que foram confirmadas pelas histórias de vida de prostitutas e michês ouvidos em Copacabana.
O prazer da transgressão
Não falta, no Brasil, o que o antropólogo norte-americano Howard Becker chamou de “motivação de um ato desviante”. Esta deriva de uma situação na qual o sujeito não aceita o jogo social e político vigente, e se revolta contra ele. A pobreza não explica o ato desviante mas, em conjugação com as falhas do Estado, pode facilitar a escolha ou a adesão às subculturas marginais de uso de drogas ilícitas. Tais subculturas se formam a partir do próprio preconceito dos agentes governamentais e da sociedade em relação aos usuários de drogas. A imagem negativa, a discriminação, o medo, a “satanização” do viciado contribuem decisivamente para a cristalização desses grupos, assim como dos tons agressivos e anti-sociais que algumas vezes adquirem.
Já o ato desviante ou sua repetição decorrem do aprendizado do jovem junto ao grupo social de desviantes, ao qual ele vem a fazer parte. Este “pertencimento” gera uma série de atitudes, valores e identidades que podem se cristalizar, assim como gerar laços reais de amizade, domínio ou dívida, dificultando o rompimento com o grupo e, conseqüentemente, com o próprio desvio. Porém, não se pode concluir que todos os usuários de drogas são iguais ou que professam o mesmo credo cultural. Pesquisas feitas em todo o mundo sugerem diferentes graus de envolvimento com a droga e com o grupo: se a tomam nas horas de lazer, se ela define um estilo de vida alternativo compartilhado com outras pessoas e que estilo é esse, se ela é o eixo da identidade do usuário compulsivo.
Não seria exagero afirmar que, entre os jovens pobres, existe maior pressão para o envolvimento com grupos de criminosos comuns, por conta da facilidade de entrar em dívida com traficantes, da repressão policial e da dificuldade em encontrar atendimento médico e psicológico quando vêm a ter problemas reais com o uso e controle das drogas.
No Brasil, o atendimento nos hospitais públicos, onde há programas de tratamento de viciados, todos os problemas apontados se unem de forma trágica: normas internas rígidas, atendimento precário por falta de equipamentos e de pessoal tecnicamente qualificado, atraso nos calendários. Burocratas sem compromisso com os objetivos humanos e políticos desses programas prejudicam a ação dos poucos médicos realmente interessados neles. Por outro lado, os efeitos negativos dos internatos que criam outras formas de exclusão dos viciados já foram bastante apontados na literatura.
A busca de soluções
Enquanto isso, em países como os Estados Unidos, o entendimento da questão das drogas em novos termos provocou uma verdadeira revolução no atendimento e proteção ao usuário pesado. Nos Estados Unidos, líder da política proibitiva, numerosos estudos encomendados pelo governo mostraram que os custos de programas de prevenção do uso de drogas e de tratamento de dependentes é muito mais barato (entre 20 e 10 vezes) e eficaz do que a repressão externa e interna respectivamente. Relatório recente da ONU (1997) e pesquisa realizada em Miami demonstram, por exemplo, que dependentes de drogas em tratamento tendem a cometer muito menos crimes (entre 4 e 10 vezes menos) contra a propriedade e contra pessoas, do que os que não estão sob tratamento.
Com base em dados de fontes variadas, é possível montar-se políticas de tratamento e de prevenção que façam declinar a violência nas regiões metropolitanas brasileiras. Tais políticas deveriam se desenvolver com a participação da própria população - tanto as vítimas quanto os agentes da violência -, para a mudança de práticas e concepções em associações, comitês de moradores ou grupos de discussão.
A proposta inicialmente apresentada ao Congresso Nacional era que a apreensão da droga e a punição aplicada ao reincidente (quando caracterizado como usuário) deixassem de ser julgadas pelo Código penal, passando a ser problema de ordem sanitária ou administrativa. Isto porque “o consumo é próprio do direito privado” (ou civil) e “o direito penal não pode ter por objeto condutas estritamente privadas”. Tal proposta defendia, ainda, uma estratégia preventiva extensa a todas as substâncias psicoativas lícitas e ilícitas. O alvo é a “pessoa humana” e não a substância psicoativa em si. O projeto aprovado substitui a pena de privação de liberdade pela pena de tratamento forçado em clínicas especializadas, o que mantém na prática a criminalização.
Sugestões para leitura
BETTANCOURT, G. & GARCIA, M. Contrabandistas, marimberos y mafiosos. Historia social de la mafia colombiana, TM editores, Bogotá, 1994.
LABROUSSE, A. & KOUTOUSIS, M. Géopolitique et géostratégies des drogues, Paris, Economica, 1996.
REUTER, P. Disorganized crime: illegal markets and the mafia, Massachusetts, MIT Press, 1986.
ZALUAR, A. “Para não dizer que não falei de samba -- os enigmas da violência no Brasil”, in L. M. Schwarcz, História da Vida Privada no Brasil vol. 4 - Contrastes da intimidade contemporânea, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.
Fonte: Ciência Hoje nº 181 (Abril de 2002)
Especial "Drogas" - 2ª parte
Alba Zaluar
Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Nos últimos 30 anos, inúmeros esforços foram feitos para deter o crescimento das drogas como poder econômico e fator degradante da sociedade. Uma postura radical, com a repressão severa e o encarceramento, já demonstraram ter pouca eficácia, gerando efeitos colaterais como o aumento da população carcerária e dos custos para mantê-la. Novas diretrizes, adotadas por países como os Estados Unidos, indicam que campanhas de informação, o incentivo à cooperação entre a população e a polícia e o investimento em programas de tratamento de dependentes graves podem diminuir a criminalidade, sendo um caminho para lidar melhor com um problema que já faz parte da cultura mundial.
À frente da war on drugs (guerra às drogas) desde o final dos anos 70, os Estados Unidos vêm adotando uma política repressiva, violenta e inútil, na tentativa de conter a produção e a comercialização de drogas. O objetivo é diminuir o consumo interno, que em vários estados também é reprimido por lei. Na década de 90, em apenas quatro anos foram gastos US$ 45 bilhões, pagos pelos contribuintes norte-americanos para financiar campanhas internacionais. Apesar desses esforços, os Estados Unidos continuam aparecendo nas estatísticas como o país com maior diversidade de drogas em circulação. Em Baltimore, cidade norte-americana com 740 mil habitantes, população predominantemente negra e renda média de US$ 19 mil anuais, estima-se que 60% de todos os crimes envolvam drogas. Entre 1986 e 1991, a polícia dessa cidade prendeu 82 mil pessoas por crimes e contravenções relativas a drogas. Em 1991, 46% dos homicídios nessa cidade tinham a ver com os entorpecentes.
Com a adoção da política de tolerância zero em várias cidades norte-americanas, em meados dos anos 90 o número de prisões feitas por pequenos delitos, entre os quais o uso e o comércio de drogas, ajudou a elevar drasticamente a população carcerária, aumentando ainda mais os custos da repressão interna. Os Estados Unidos tornaram-se campeões do mundo nesse item (um milhão e meio de pessoas presas). Os índices de criminalidade baixaram em várias cidades, ao mesmo tempo em que novas medidas foram aplicadas. Por exemplo, projetos de cooperação entre a população e a polícia, patrulhamento a pé, planejamento, treinamento e recrutamento de “policiais de serviços” e de “civis”. Todas essas medidas visavam conquistar a confiança dos moradores, ao mesmo tempo em que os policiais abandonavam a postura de “caçadores” dentro de viaturas, de onde não interagiam com as pessoas e que inspiravam nelas medo e hostilidade.
Hoje a sociedade norte-americana divide-se em torno do acirrado debate sobre a legalização do uso de drogas. Representantes do próprio governo expressam preocupação com a superpopulação carcerária; agentes penitenciários denunciam que a maioria dos presos é de usuários de drogas e não de perigosos criminosos.
Nos organismos internacionais, o debate e a preocupação não são menores. Segundo o Conselho Social e Econômico das Nações Unidas (dados de 1994), o crime organizado transnacional, com capacidade de expandir suas atividades ao ponto de ameaçar a segurança e a economia dos países, particularmente aqueles em transição e desenvolvimento, representa atualmente o maior perigo que os governos precisam enfrentar para assegurar sua estabilidade e segurança.
Razões do uso de drogas
Numerosos estudos abordam a dificuldade da separação entre traficante e usuário, sombreada pelos efeitos do vício que a droga proporciona. Pesquisas do tipo survey ou levantamento, muito caras e de difícil metodologia, foram conduzidas nos Estados Unidos com a conclusão de que os homens, mais do que as mulheres, usam drogas ilegais. Homens mais novos (de 18 a 25 anos) usam mais do que os mais velhos; os desempregados mais do que os empregados; os solteiros e divorciados mais do que os casados.
Existem igualmente estudos focalizados nas relações familiares, de emprego e de vizinhança que os usuários abusivos de drogas mantêm. As conclusões contestam as idéias de senso comum, que associam tais comportamentos à pobreza, a “lares desfeitos” e a “más companhias”. Alguns estudos procuram mostrar que não a pobreza, mas as próprias exigências do funcionamento do tráfico são a origem do comportamento violento associado ao uso de drogas. Outros juntam evidências de que a falta de diálogo aberto entre pais e filhos abre caminho para o consumo das mesmas. Seria, então, a violência doméstica e a ausência dos pais, mais do que a separação deles, as principais razões do uso de drogas. A curiosidade, a valorização do proibido e do risco, característicos da adolescência, assim como o desejo de se afirmar como alguém capaz de enfrentar a morte, faz do uso de drogas proibidas uma atração constante para os jovens, só superada pela informação, pelo diálogo e pela preocupação demonstrada pelos adultos.
Usuários e traficantes
No Brasil, o governo sempre adotou medidas repressivas no combate às drogas, e a polícia tem um enorme poder em determinar quem será ou não processado e preso como traficante, crime considerado hediondo. No que se refere à administração da justiça, jovens pobres, negros ou mulatos são presos como traficantes, o que ajuda a criar uma superpopulação carcerária, além de tornar ilegítimo e injusto o funcionamento do sistema jurídico no país. Policiais costumam prender meros fregueses ou pequenos repassadores de drogas (aviões) para mostrar eficiência no trabalho. A quantidade apreendida não é o critério diferenciador. Essa indefinição, que está na legislação, favorece o abuso do poder policial que, por sua vez, inflaciona a corrupção.
No Rio de Janeiro, onde coordenei trabalho de campo realizado entre 1998 e 2000 em três bairros - Copacabana, Tijuca e Madureira - e em que entrevistamos cerca de 120 policiais, moradores, usuários e alguns repassadores, concluímos que os usuários eram, em sua maioria, usuários sociais. Em comum, tinham a busca da privacidade e de um uso discreto para “não dar na vista”, nem assustar os demais freqüentadores dos locais de boemia. Isso não quer dizer que não existam usuários pesados. Estes têm dificuldades no relacionamento com os usuários sociais e mesmo com os traficantes, que não os respeitam, nem gostam deles por chamarem a atenção da polícia e não conseguirem pagar as dívidas.
Usuários de Copacabana, Tijuca e Madureira, de modo geral, evitaram classificar-se como dominados pela droga ou capazes de qualquer coisa para obtê-la, escapando dos estereótipos do marginal. Só aqueles que foram entrevistados quando já estavam sob tratamento admitiram a dependência e a associação com outras práticas criminais.
Traficantes de favelas na Tijuca e em Madureira controlam mais facilmente as ruas do bairro, seja para impedir que vendedores independentes comercializem drogas por ali, seja para demonstrar o seu poder de fogo. Não é incomum vê-los andando armados. Quando um vendedor não autorizado é identificado pelos “donos” das bocas de fumo (por extensão, das favelas), ele é ameaçado de morte. Nesses dois bairros, é preciso ter a permissão dos “donos” para vender drogas. Na Tijuca, a proximidade dos morros tira a paz e a tranqüilidade do bairro residencial e conservador: tiros atingem as casas, matando gente que assiste à televisão ou dorme.
O estilo do tráfico na Tijuca e em Madureira, poderia ser resumido como diretamente controlado pelos traficantes de favela, caracterizado pelo uso corriqueiro da arma de fogo para assegurar o território, cobrar dívidas, afastar concorrentes e amedrontar possíveis testemunhas. Isso marca uma diferença crucial em relação à Copacabana, cujo estilo discreto dos traficantes se caracteriza pela clandestinidade e ausência de controle de territórios.
Estar “ligado”, estar “chapado”
No caso específico da maconha e da cocaína, verificou-se a importância do grupo e do ambiente na decisão de consumi-las, assim como na continuidade do uso. Todos os entrevistados que experimentaram drogas ilegais - permanecendo ou não como usuários - registraram que a primeira experiência ocorreu em situações coletivas e de lazer como acampamentos, viagens e festas. Por isso mesmo, aqueles que interromperam momentânea ou definitivamente o uso dessas substâncias, se afastaram do grupo e do ambiente associado a essa prática. Os que voltaram a usar, mesmo após tratamento e desintoxicação, devem a “recaída” a encontros com amigos e conhecidos, ligados aos circuitos e locais em que as drogas ilegais são comercializadas e compartilhadas.
Embora haja alguns usuários múltiplos de maconha e cocaína, em geral são grupos que não se misturam. O etos e as imagens associadas a cada uma dessas drogas divergem entre si. A maconha teria um etos bucólico, com referências ao dia, ao campo, à natureza, à comida, à saúde, ao ócio e à paz. Já a cocaína, seria associada a um uso mais urbano e artificial, à saída noturna para boates, ao viver agitado, à degeneração do corpo, e à guerra. Ela também é usada para potencializar a capacidade produtiva, especialmente no trabalho noturno, como o de jornalistas, bancários, caminhoneiros, vigias etc. Entrevistados nos três bairros assinalaram que entre os efeitos desejados estão a euforia, a “adrenalina”, a “ligação” e “o ficar aceso”, atribuídos à cocaína; assim como o “estar chapado” ou “ficar lesado”, “desligado”, devido à maconha.
Segundo usuários, por causa da cocaína, “o cara mata, não tem amizade, não tem nada”, o que nos indica a maior associação entre o traficante e o usuário quando a droga é a cocaína. Vários afirmaram ter visto “gente se destruir” e homens que “deixam de querer saber de mulher” ou “que viram mulher”, “que se prostituem para pagar o vício”. Assertivas que foram confirmadas pelas histórias de vida de prostitutas e michês ouvidos em Copacabana.
O prazer da transgressão
Não falta, no Brasil, o que o antropólogo norte-americano Howard Becker chamou de “motivação de um ato desviante”. Esta deriva de uma situação na qual o sujeito não aceita o jogo social e político vigente, e se revolta contra ele. A pobreza não explica o ato desviante mas, em conjugação com as falhas do Estado, pode facilitar a escolha ou a adesão às subculturas marginais de uso de drogas ilícitas. Tais subculturas se formam a partir do próprio preconceito dos agentes governamentais e da sociedade em relação aos usuários de drogas. A imagem negativa, a discriminação, o medo, a “satanização” do viciado contribuem decisivamente para a cristalização desses grupos, assim como dos tons agressivos e anti-sociais que algumas vezes adquirem.
Já o ato desviante ou sua repetição decorrem do aprendizado do jovem junto ao grupo social de desviantes, ao qual ele vem a fazer parte. Este “pertencimento” gera uma série de atitudes, valores e identidades que podem se cristalizar, assim como gerar laços reais de amizade, domínio ou dívida, dificultando o rompimento com o grupo e, conseqüentemente, com o próprio desvio. Porém, não se pode concluir que todos os usuários de drogas são iguais ou que professam o mesmo credo cultural. Pesquisas feitas em todo o mundo sugerem diferentes graus de envolvimento com a droga e com o grupo: se a tomam nas horas de lazer, se ela define um estilo de vida alternativo compartilhado com outras pessoas e que estilo é esse, se ela é o eixo da identidade do usuário compulsivo.
Não seria exagero afirmar que, entre os jovens pobres, existe maior pressão para o envolvimento com grupos de criminosos comuns, por conta da facilidade de entrar em dívida com traficantes, da repressão policial e da dificuldade em encontrar atendimento médico e psicológico quando vêm a ter problemas reais com o uso e controle das drogas.
No Brasil, o atendimento nos hospitais públicos, onde há programas de tratamento de viciados, todos os problemas apontados se unem de forma trágica: normas internas rígidas, atendimento precário por falta de equipamentos e de pessoal tecnicamente qualificado, atraso nos calendários. Burocratas sem compromisso com os objetivos humanos e políticos desses programas prejudicam a ação dos poucos médicos realmente interessados neles. Por outro lado, os efeitos negativos dos internatos que criam outras formas de exclusão dos viciados já foram bastante apontados na literatura.
A busca de soluções
Enquanto isso, em países como os Estados Unidos, o entendimento da questão das drogas em novos termos provocou uma verdadeira revolução no atendimento e proteção ao usuário pesado. Nos Estados Unidos, líder da política proibitiva, numerosos estudos encomendados pelo governo mostraram que os custos de programas de prevenção do uso de drogas e de tratamento de dependentes é muito mais barato (entre 20 e 10 vezes) e eficaz do que a repressão externa e interna respectivamente. Relatório recente da ONU (1997) e pesquisa realizada em Miami demonstram, por exemplo, que dependentes de drogas em tratamento tendem a cometer muito menos crimes (entre 4 e 10 vezes menos) contra a propriedade e contra pessoas, do que os que não estão sob tratamento.
Com base em dados de fontes variadas, é possível montar-se políticas de tratamento e de prevenção que façam declinar a violência nas regiões metropolitanas brasileiras. Tais políticas deveriam se desenvolver com a participação da própria população - tanto as vítimas quanto os agentes da violência -, para a mudança de práticas e concepções em associações, comitês de moradores ou grupos de discussão.
A proposta inicialmente apresentada ao Congresso Nacional era que a apreensão da droga e a punição aplicada ao reincidente (quando caracterizado como usuário) deixassem de ser julgadas pelo Código penal, passando a ser problema de ordem sanitária ou administrativa. Isto porque “o consumo é próprio do direito privado” (ou civil) e “o direito penal não pode ter por objeto condutas estritamente privadas”. Tal proposta defendia, ainda, uma estratégia preventiva extensa a todas as substâncias psicoativas lícitas e ilícitas. O alvo é a “pessoa humana” e não a substância psicoativa em si. O projeto aprovado substitui a pena de privação de liberdade pela pena de tratamento forçado em clínicas especializadas, o que mantém na prática a criminalização.
Sugestões para leitura
BETTANCOURT, G. & GARCIA, M. Contrabandistas, marimberos y mafiosos. Historia social de la mafia colombiana, TM editores, Bogotá, 1994.
LABROUSSE, A. & KOUTOUSIS, M. Géopolitique et géostratégies des drogues, Paris, Economica, 1996.
REUTER, P. Disorganized crime: illegal markets and the mafia, Massachusetts, MIT Press, 1986.
ZALUAR, A. “Para não dizer que não falei de samba -- os enigmas da violência no Brasil”, in L. M. Schwarcz, História da Vida Privada no Brasil vol. 4 - Contrastes da intimidade contemporânea, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.
Fonte: Ciência Hoje nº 181 (Abril de 2002)
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