Fonte: http://www.fortalnet.com.br/rkelmer/rkplantasdepoder1
Ricardo Kelmer
A cada dia mais e mais pesquisadores ligados ao estudo da consciência, antropologia, psicologia e botânica se debruçam sobre uma possibilidade no mínimo intrigante e polêmica. É provável que as plantas psicoativas (que induzem a mente a funcionar em estados especiais) possam ter contribuído significativamente para o surgimento da autoconsciência, fator decisivo que proporcionou aos nossos ancestrais, num determinado ponto da evolução, as condições para sobreviver e gerar a incrível espécie a qual pertencemos: o Homo sapiens.
Admitir tal hipótese é mexer num vespeiro. Muita gente se indagará: "Quer dizer que nós humanos só existimos porque um bando de macacos comeram umas plantinhas e ficaram doidões?" Imagino os mais religiosos: "Era só o que faltava! Deixa só Deus escutar isso!" Pois infelizmente para muita gente, e até para alguns deuses, essa hipótese vem sendo estudada com seriedade e encontra ressonância positiva no meio científico.
Quem já passou por uma experiência com as tais "plantas sagradas", como a ayahuasca, o peiote e a jurema, sabe perfeitamente do incrível poder que elas guardam. E sabe também que elas não se prestam a um consumo recreativo, exatamente porque costumam tocar muito fundo em nosso interior, abalando nossa compreensão da realidade e de nós mesmos e nos fazendo emergir da experiência profundamente transformados. Xamãs e pajés do mundo inteiro as utilizam há milhares de anos em contextos religiosos e terapêuticos. Atualmente, médicos e pesquisadores de vários países estão unindo medicina acadêmica com antiqüíssimas práticas xamânicas que envolvem o uso de plantas psicoativas e, com essa curiosa união, vêm obtendo resultados animadores na cura de muitas doenças como a dependência química.
Atualmente, no Brasil, proliferam-se seitas e dissidências de seitas que em seus rituais utilizam chás à base dessas plantas, chamando a atenção de estudiosos para o emergente fenômeno. Toma-se o chá para entrar num estado de consciência não ordinário, onde é possível viver experiências sensoriais e cognitivas as mais diversas. Há quem encontre pessoas vivas ou mortas, santos, entidades animais ou espíritos de plantas. Há os que experimentam capacidades psíquicas incomuns ou vivenciam uma intensa sensação de união com a natureza e tudo que existe. Há quem passe por profundas experiências de auto-investigação psicológica como também de autocura, ou seja tocado por revelações importantes que podem mudar toda uma vida. Pode não acontecer nada, mas também pode ser prazeroso ou doloroso. Pode ser infernal ou divino - mas será sempre construtivo. Depende de cada um e de seu momento. Os religiosos radicais, sempre obcecados, diriam que é coisa do demônio. Alguns psicólogos talvez usassem o termo "terapia de choque". Talvez nada mais seja que um providencial reencontro consigo mesmo e com sua verdade mais íntima.
Por que a crescente procura atual pelas plantas de poder dos xamãs? Por qual razão tantas pessoas ousam se submeter a uma experiência incerta, largando a segurança de sua mente cotidiana e desafiando o desconhecido de si mesmo? Minha impressão é que isso tudo talvez signifique, em última instância, uma forma de religação à natureza porque, na verdade, nós também fazemos parte da natureza. O que houve é que, infelizmente, passamos a nos ver separados dela e com isso nos distanciamos demais da sabedoria natural do planeta e agora, perdidos num mundo cada vez mais caótico e insano, buscamos com avidez crenças e experiências que nos reconectem ao sentido maior da vida e às nossas verdades mais profundas. Entendo isso como um anseio natural e legítimo de uma espécie adoecida: o anseio de cura, liberdade, totalidade e harmonia com a natureza.
O que liberta também escraviza
Por minha própria experiência, sei que as plantas psicoativas podem ser bastante úteis porque nos fazem olhar para dentro, nos reconectam às leis naturais e ao sagrado de nossas vidas, nos lembram de nosso potencial para a autocura e ajudam a nos libertarmos de medos, culpas e bloqueios. Não há como não se transformar após um profundo encontro consigo mesmo. É por isso que quem passa por tais experiências xamânicas engrossa a legião dos que já entenderam o mais importante: somente a profunda mudança interior de cada um é que fará finalmente com que o mundo mude para melhor.
Este talvez seja o convite que as plantas sagradas estão fazendo neste momento à nossa espécie: quanto mais pessoas se religarem à sua verdade mais íntima, mais a humanidade estará reencontrando seu ponto de equilíbrio. Por outro lado, sei também que a espécie humana está doente e que, na busca angustiada pela cura, é capaz de exagerar no remédio. Por isso, nessa urgente busca por valores espirituais, é preciso, acima de tudo, priorizar a liberdade e atentar para o risco sempre presente de cairmos escravos exatamente daquilo que um dia elegemos como libertador. As plantas sagradas não ficam de fora desse perigo. Tenho amigos que fazem parte de seitas que utilizam tais plantas e certamente discordarão. Respeito o que eles pensam e admiro sua busca pessoal. Porém, como tudo o mais que existe, as plantas sagradas também possuem dois lados. Se um lado liberta, o outro está lá prontinho para escravizar caso você não se mantenha atento, equilibrado e sem apegos excessivos.
Religiões, seitas e gurus funcionam muito bem para os que necessitam de regras ou se sentem mais seguros pertencendo a um certo grupo. Eles estão em seu caminho e isso deve ser respeitado. Mas há pessoas que conseguem beber em todos os ensinamentos e usufruir o melhor que eles lhes oferecem sem ter de se enquadrar em nenhum específico. É um caminho mais solitário, evidente, e exige um contínuo "estar aberto" - mas que exatamente por isso recompensa quem o trilha com a liberdade que nenhum outro caminho pode oferecer. As regras da seita ou as palavras do guru podem até iluminar durante um tempo, sim, mas até mesmo essa luz pode cegar para os horizontes seguintes da jornada. O principal ensinamento das plantas de poder (assim como deveria ser o de todo guru) é este: devemos abandonar todas as muletas e aprender a caminhar por nós mesmos.
Esse atual processo coletivo de reconectar-se aos valores da natureza através da sabedoria das plantas psicoativas não significa uma espécie de retrocesso evolutivo e que devemos voltar a saltar pelas árvores. Não é nada disso. Uma vez ultrapassados, os marcos da evolução da consciência sempre nos impulsionam para o novo, jamais para trás. Acontece que a verdadeira evolução avança em forma de espiral e é por isso que quando o caminho parece retornar a um determinado ponto, na verdade ele está sim passando novamente por lá - porém num novo nível, mais acima, numa nova dimensão.
Talvez essas poderosas plantas, que acompanham nossa espécie desde o seu nascimento numa impressionante relação simbiótica, estejam agora oferecendo a ela a preciosa oportunidade de mais um salto quântico da consciência, uma intensa transformação da mente e de sua interpretação da realidade - como fizeram nossos peludos antepassados em algum ponto de sua jornada. Agora, porém, diferente deles, possuímos razão e discernimento. Possuímos milênios e milênios de experiência sedimentados no inconsciente comum da espécie e temos nossos próprios erros para nos guiar.
Retornaremos à Mãe Terra e ao sagrado, sim, porque não há outro caminho se quisermos de fato sobreviver como espécie. Mas o faremos num novo nível porque agora estamos mais capacitados para enfrentar o grande mistério da vida, esse mistério que nos maravilha e assombra cada vez que olhamos tanto para o sem-fim do mundo lá fora quanto para o infinito interior de nós mesmos.
segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009
Respeite a maconha
Fonte: http://www.fortalnet.com.br/rkelmer/rkmaconha1
Ricardo Kelmer
Eu tinha 20 anos quando decidi conhecer pessoalmente a maconha. Olhando agora de onde estou, 18 anos depois, vejo que esse encontro seria mesmo inevitável em minha vida, pois desde pequeno nutri um inquieto interesse por tudo que se relacionasse à psique humana, seu funcionamento, suas leis, seu poder, psicologia, mitologia, estados especiais de consciência e o que mais fosse. Por isso seria absolutamente natural que, assim como um dia experimentei o álcool, eu também experimentasse a maconha.
Se hoje em dia, século XXI, o assunto "drogas" ainda costuma vir numa forma confusa, desencontrada e impregnada de preconceitos e "ouvi-dizeres", nos anos 1970 era ainda pior. Naqueles dias a questão das drogas ainda não integrava, como hoje, o contexto dos grandes problemas sociais; e a maconha, particularmente, era quase sempre associada não à marginalidade mas à subversão política: quem fumava maconha eram os hippies, os artistas e a juventude metida com ideais revolucionários. A maioria das informações vinha envolta numa certa névoa de mistério. O assunto só fazia parte da mídia quando na página policial. Na escola não se tocava no assunto. Na família, ainda que se falasse, tudo era dito em voz baixa, meios-termos, sem explicações consistentes. Meus pais, dentro daquele natural pavor de ver seus filhos envolvidos com drogas, nos aconselhavam a não aceitar refrigerante de estranhos pois podiam conter bolinhas. Tempos ingênuos em que o traficante era o pipoqueiro do colégio. Coitados dos pipoqueiros. Jamais conheci um que passasse fumo.
No entanto eu lia bastante e algo me dizia que aquela história não estava muito bem contada. Lentamente comecei a desconfiar que a verdade de meus pais talvez fosse apenas um único aspecto da verdade maior. Talvez houvesse outros. Tudo isso ajudou a produzir em mim um bocado de curiosidade, o que terminou me levando a buscar mais informações em conversas, revistas, livros e filmes. A maconha era uma coisa muito estranha: era proibida, marginal, misteriosa. Era ilegal no Brasil e permitida em outros países. Era algo meio mágico. Era apreciada por artistas. Era coisa do demônio. Era inimiga do regime militar. Era fascinante. Eu simplesmente precisava descobrir por mim mesmo.
Meus pais, que casaram pobres, enriqueceram com o trabalho e me proporcionaram uma adolescência de classe média alta: bons colégios, cursos de inglês e esportes. Durante dois anos participei de grupos de jovens católicos, chegando a ser coordenador. Aos 18 entrei para o curso de Comunicação Social. Personalidade calma mas bastante curioso e criativo, eu agora via o mundo se abrir à minha frente em novas cores, novas idéias, pessoas diferentes, possibilidades sem fim.
Na faculdade muita gente fumava e logo eu percebi que o que se falava da maconha não condizia com a realidade: ali estavam pessoas que fumavam e que, não obstante, eram inteligentes, talentosas, produtivas, sociais, honestas, companheiras, saudáveis... Percebi logo que ser usuário não significava necessariamente ser doente ou dependente, assim como quem bebe não é necessariamente alcoólatra. Foi essa constatação que me ajudou a relaxar e admitir para mim mesmo que sim, eu estava curioso e gostaria de saber como era. Eu me considerava crescido o suficiente para enfrentar o tal perigo.
1984. Dois anos depois de ingressado na faculdade fumei meu primeiro baseado. E nada aconteceu. Já haviam me explicado que isso é comum, mas ainda assim fiquei meio decepcionado. Meses depois fumei novamente, durante um festival de música na cidade do Rio de Janeiro [Rock in Rio]. Dessa vez foi diferente. Fumei mais do que devia, misturei com muita cachaça e o resultado foi um verdadeiro motim em minha mente, alterando percepções, confundindo idéias e me fazendo passar por um terrível mal-estar psicológico que durou duas horas mas que pareceu uma eternidade. Cheguei a pensar seriamente que morreria ali mesmo, longe de casa e no meio da multidão.
Eu poderia ter adquirido aí uma profunda aversão à erva. Isso ocorre com algumas pessoas após uma iniciação traumática. Mas a curiosidade foi maior. Algo me dizia que não devia desistir, que havia coisas a serem descobertas. Ainda um pouco tenso por conta do trauma inicial, tentei outras aproximações, agora mais atento e cuidadoso. Aos poucos consegui relaxar e finalmente conheci os vários aspectos da maconha e seu grande poder. Mergulhei até onde senti que devia ir em minha busca por saber o que afinal era a maconha e o que de fato ela poderia ter de útil a me oferecer. Vi que existe o uso saudável e o doentio. Vi que ela pode mesmo confundir e iludir. Vi que ela é realmente poderosa e pode fazer uma pessoa escravizar a si própria e assim desequilibrar-se em seu caminho de realização pessoal. Vi que maconha, assim como qualquer droga, é coisa para adultos - e ainda assim nem todo adulto pode com ela.
Mas vi também outras coisas. Vi que ela não é a vilã que tanto falam. Vi que nesse filme a maconha, na verdade, não é nem bandido nem herói: ela é como a água que tanto pode afogar quanto aliviar a sede. Vi que o que conta mesmo é o tipo de relação que se desenvolve com ela. Vi que a maconha também oferece coisas boas e foram elas que tratei de usufruir nessa amizade que se iniciava: momentos de tranqüilidade e descanso, momentos de intensa atividade criativa, autodescobertas importantes, experiências de sadia comunhão com a natureza além de inesquecíveis momentos de lazer e alegria.
Cannabis sagrada
Como ocorre com o álcool, há quem fume mais e quem fume menos. Eu sempre fumei bem menos que a média dos usuários que conhecia. No início era uma espécie de autovigilância temerosa: eu não queria de jeito algum me viciar. Fumava esporadicamente quando achava que o momento era propício e seguro. Reprovava as atitudes de alguns amigos que fumavam demais e aprendia com o exemplo deles.
Mas havia outra razão para eu fumar pouco: desde o início meus contatos com a erva sempre se constituíram de momentos especiais e, intuitivamente, logo percebi que não deveria banalizar esses momentos. Fumar maconha era como encontrar alguém muito sábio que sempre tem algo a ensinar, alguém poderoso que pode ajudar a descobrir e realizar coisas e até mudar uma vida, alguém tão misterioso que jamais se pode prever bem o que trará. Como eu poderia fazer disso um acontecimento comum e corriqueiro?
Com o tempo minha relação com a Cannabis foi se tornando cada vez mais transparente para mim. Perdi o medo de me tornar dependente no dia em que entendi que nossa amizade só teria sentido enquanto nossos encontros fossem especiais - mas para isso eles não podiam se tornar corriqueiros e banais. Aos 35 anos vivi uma incrível experiência xamânica com a jurema (outra planta de poder) e, entre as várias coisas que ocorreram nesse impressionante mergulho interior, entendi finalmente o que era a maconha e a natureza de nossa relação. Entendi que ela, do mesmo modo que a jurema e a ayahuasca, por exemplo, possui uma espécie de inteligência própria e pode, ao seu modo, se comunicar com a espécie humana. Porém, diferente das outras duas plantas em que o mergulho interior é bastante profundo, intenso e revelador, a maconha geralmente atua em níveis mais superficiais, presta-se ao lazer e pode ser usada em diversas circunstâncias.
Foi exatamente durante essa experiência que entendi finalmente que a maconha é uma planta sagrada e deve ser devidamente reverenciada por quem a utiliza. Entendi que a natureza se comunica com os seres humanos de diversas maneiras mas que eles, infelizmente, esqueceram que essa comunicação existe e, principalmente, que ela é imprescindível à saúde e à sobrevivência da espécie. Entendi que a maconha, como outras plantas de poder, tem a capacidade de fazer com que as pessoas se voltem para dentro de si mesmas e, uma vez lá, reencontrem as verdades mais básicas de suas vidas e sejam por elas guiadas. E que isso deve ser feito sempre com respeito e reverência, numa relação saudável e sem dependência, caso contrário a experiência se destitui de seu profundo significado e corre-se o risco de se perder num mundo de ilusões e auto-enganos.
Depois daquele dia em que pensei que ia morrer, demorei 15 anos para compreender a natureza sagrada da maconha. Sei que a maioria dos usuários não alcança essa dimensão da planta e por isso sua relação com ela tende a ser banal, quando não destrutiva. É uma pena. A natureza, através de suas plantas de poder, tem muito a nos ensinar. Infelizmente nossa sociedade adquiriu um vício terrível: o de banalizar tudo, até mesmo o que é sagrado, fazendo com que o significado essencial das coisas se perca. E, como todo viciado, ela reluta e reluta em admitir o erro.
Sim, maconha serve para se divertir com os amigos, assistir um show, jogar futebol. Não tem nada de errado nisso. Tudo depende da consciência que se tem. No entanto se os usuários soubessem que as plantas de poder, como a maconha, são seres vivos que habitam este planeta há milhões de anos, que têm um tipo de sabedoria própria, que sempre se comunicaram com os seres humanos e os guiaram, que essas plantas podem ensinar, ajudar e até curar, então entenderiam essa simbiose como algo muito sagrado e teriam, conseqüentemente, uma relação mais respeitosa, responsável e muito mais saudável com elas.
Ricardo Kelmer
Eu tinha 20 anos quando decidi conhecer pessoalmente a maconha. Olhando agora de onde estou, 18 anos depois, vejo que esse encontro seria mesmo inevitável em minha vida, pois desde pequeno nutri um inquieto interesse por tudo que se relacionasse à psique humana, seu funcionamento, suas leis, seu poder, psicologia, mitologia, estados especiais de consciência e o que mais fosse. Por isso seria absolutamente natural que, assim como um dia experimentei o álcool, eu também experimentasse a maconha.
Se hoje em dia, século XXI, o assunto "drogas" ainda costuma vir numa forma confusa, desencontrada e impregnada de preconceitos e "ouvi-dizeres", nos anos 1970 era ainda pior. Naqueles dias a questão das drogas ainda não integrava, como hoje, o contexto dos grandes problemas sociais; e a maconha, particularmente, era quase sempre associada não à marginalidade mas à subversão política: quem fumava maconha eram os hippies, os artistas e a juventude metida com ideais revolucionários. A maioria das informações vinha envolta numa certa névoa de mistério. O assunto só fazia parte da mídia quando na página policial. Na escola não se tocava no assunto. Na família, ainda que se falasse, tudo era dito em voz baixa, meios-termos, sem explicações consistentes. Meus pais, dentro daquele natural pavor de ver seus filhos envolvidos com drogas, nos aconselhavam a não aceitar refrigerante de estranhos pois podiam conter bolinhas. Tempos ingênuos em que o traficante era o pipoqueiro do colégio. Coitados dos pipoqueiros. Jamais conheci um que passasse fumo.
No entanto eu lia bastante e algo me dizia que aquela história não estava muito bem contada. Lentamente comecei a desconfiar que a verdade de meus pais talvez fosse apenas um único aspecto da verdade maior. Talvez houvesse outros. Tudo isso ajudou a produzir em mim um bocado de curiosidade, o que terminou me levando a buscar mais informações em conversas, revistas, livros e filmes. A maconha era uma coisa muito estranha: era proibida, marginal, misteriosa. Era ilegal no Brasil e permitida em outros países. Era algo meio mágico. Era apreciada por artistas. Era coisa do demônio. Era inimiga do regime militar. Era fascinante. Eu simplesmente precisava descobrir por mim mesmo.
Meus pais, que casaram pobres, enriqueceram com o trabalho e me proporcionaram uma adolescência de classe média alta: bons colégios, cursos de inglês e esportes. Durante dois anos participei de grupos de jovens católicos, chegando a ser coordenador. Aos 18 entrei para o curso de Comunicação Social. Personalidade calma mas bastante curioso e criativo, eu agora via o mundo se abrir à minha frente em novas cores, novas idéias, pessoas diferentes, possibilidades sem fim.
Na faculdade muita gente fumava e logo eu percebi que o que se falava da maconha não condizia com a realidade: ali estavam pessoas que fumavam e que, não obstante, eram inteligentes, talentosas, produtivas, sociais, honestas, companheiras, saudáveis... Percebi logo que ser usuário não significava necessariamente ser doente ou dependente, assim como quem bebe não é necessariamente alcoólatra. Foi essa constatação que me ajudou a relaxar e admitir para mim mesmo que sim, eu estava curioso e gostaria de saber como era. Eu me considerava crescido o suficiente para enfrentar o tal perigo.
1984. Dois anos depois de ingressado na faculdade fumei meu primeiro baseado. E nada aconteceu. Já haviam me explicado que isso é comum, mas ainda assim fiquei meio decepcionado. Meses depois fumei novamente, durante um festival de música na cidade do Rio de Janeiro [Rock in Rio]. Dessa vez foi diferente. Fumei mais do que devia, misturei com muita cachaça e o resultado foi um verdadeiro motim em minha mente, alterando percepções, confundindo idéias e me fazendo passar por um terrível mal-estar psicológico que durou duas horas mas que pareceu uma eternidade. Cheguei a pensar seriamente que morreria ali mesmo, longe de casa e no meio da multidão.
Eu poderia ter adquirido aí uma profunda aversão à erva. Isso ocorre com algumas pessoas após uma iniciação traumática. Mas a curiosidade foi maior. Algo me dizia que não devia desistir, que havia coisas a serem descobertas. Ainda um pouco tenso por conta do trauma inicial, tentei outras aproximações, agora mais atento e cuidadoso. Aos poucos consegui relaxar e finalmente conheci os vários aspectos da maconha e seu grande poder. Mergulhei até onde senti que devia ir em minha busca por saber o que afinal era a maconha e o que de fato ela poderia ter de útil a me oferecer. Vi que existe o uso saudável e o doentio. Vi que ela pode mesmo confundir e iludir. Vi que ela é realmente poderosa e pode fazer uma pessoa escravizar a si própria e assim desequilibrar-se em seu caminho de realização pessoal. Vi que maconha, assim como qualquer droga, é coisa para adultos - e ainda assim nem todo adulto pode com ela.
Mas vi também outras coisas. Vi que ela não é a vilã que tanto falam. Vi que nesse filme a maconha, na verdade, não é nem bandido nem herói: ela é como a água que tanto pode afogar quanto aliviar a sede. Vi que o que conta mesmo é o tipo de relação que se desenvolve com ela. Vi que a maconha também oferece coisas boas e foram elas que tratei de usufruir nessa amizade que se iniciava: momentos de tranqüilidade e descanso, momentos de intensa atividade criativa, autodescobertas importantes, experiências de sadia comunhão com a natureza além de inesquecíveis momentos de lazer e alegria.
Cannabis sagrada
Como ocorre com o álcool, há quem fume mais e quem fume menos. Eu sempre fumei bem menos que a média dos usuários que conhecia. No início era uma espécie de autovigilância temerosa: eu não queria de jeito algum me viciar. Fumava esporadicamente quando achava que o momento era propício e seguro. Reprovava as atitudes de alguns amigos que fumavam demais e aprendia com o exemplo deles.
Mas havia outra razão para eu fumar pouco: desde o início meus contatos com a erva sempre se constituíram de momentos especiais e, intuitivamente, logo percebi que não deveria banalizar esses momentos. Fumar maconha era como encontrar alguém muito sábio que sempre tem algo a ensinar, alguém poderoso que pode ajudar a descobrir e realizar coisas e até mudar uma vida, alguém tão misterioso que jamais se pode prever bem o que trará. Como eu poderia fazer disso um acontecimento comum e corriqueiro?
Com o tempo minha relação com a Cannabis foi se tornando cada vez mais transparente para mim. Perdi o medo de me tornar dependente no dia em que entendi que nossa amizade só teria sentido enquanto nossos encontros fossem especiais - mas para isso eles não podiam se tornar corriqueiros e banais. Aos 35 anos vivi uma incrível experiência xamânica com a jurema (outra planta de poder) e, entre as várias coisas que ocorreram nesse impressionante mergulho interior, entendi finalmente o que era a maconha e a natureza de nossa relação. Entendi que ela, do mesmo modo que a jurema e a ayahuasca, por exemplo, possui uma espécie de inteligência própria e pode, ao seu modo, se comunicar com a espécie humana. Porém, diferente das outras duas plantas em que o mergulho interior é bastante profundo, intenso e revelador, a maconha geralmente atua em níveis mais superficiais, presta-se ao lazer e pode ser usada em diversas circunstâncias.
Foi exatamente durante essa experiência que entendi finalmente que a maconha é uma planta sagrada e deve ser devidamente reverenciada por quem a utiliza. Entendi que a natureza se comunica com os seres humanos de diversas maneiras mas que eles, infelizmente, esqueceram que essa comunicação existe e, principalmente, que ela é imprescindível à saúde e à sobrevivência da espécie. Entendi que a maconha, como outras plantas de poder, tem a capacidade de fazer com que as pessoas se voltem para dentro de si mesmas e, uma vez lá, reencontrem as verdades mais básicas de suas vidas e sejam por elas guiadas. E que isso deve ser feito sempre com respeito e reverência, numa relação saudável e sem dependência, caso contrário a experiência se destitui de seu profundo significado e corre-se o risco de se perder num mundo de ilusões e auto-enganos.
Depois daquele dia em que pensei que ia morrer, demorei 15 anos para compreender a natureza sagrada da maconha. Sei que a maioria dos usuários não alcança essa dimensão da planta e por isso sua relação com ela tende a ser banal, quando não destrutiva. É uma pena. A natureza, através de suas plantas de poder, tem muito a nos ensinar. Infelizmente nossa sociedade adquiriu um vício terrível: o de banalizar tudo, até mesmo o que é sagrado, fazendo com que o significado essencial das coisas se perca. E, como todo viciado, ela reluta e reluta em admitir o erro.
Sim, maconha serve para se divertir com os amigos, assistir um show, jogar futebol. Não tem nada de errado nisso. Tudo depende da consciência que se tem. No entanto se os usuários soubessem que as plantas de poder, como a maconha, são seres vivos que habitam este planeta há milhões de anos, que têm um tipo de sabedoria própria, que sempre se comunicaram com os seres humanos e os guiaram, que essas plantas podem ensinar, ajudar e até curar, então entenderiam essa simbiose como algo muito sagrado e teriam, conseqüentemente, uma relação mais respeitosa, responsável e muito mais saudável com elas.
O trem não espera quem viaja demais
Fonte: http://www.fortalnet.com.br/rkelmer/rkmaconha2
Ricardo Kelmer
O aspecto mais notável da maconha é seu incrível poder de nos reconectar à dimensão da liberdade, a mais sagrada das dimensões do ser. Ela existe nas profundezas de cada um de nós e só a alcançamos através do mais verdadeiro conhecimento de si próprio. Infelizmente, no dia-a-dia, costumamos perder de vista sua trilha, entre tantas coisas que elegemos importantes. É justamente esta, então, a grande sedução da maconha: basta uma tragadinha num baseado para, de repente, lembrarmos que somos exatamente isso, viajantes da liberdade. Basta uma tragadinha para voltarmos a enxergar, entre tudo o mais que existe, a trilha que conduz ao céu azul dessa libertadora dimensão.
A maconha é um presente da natureza. Ela relaxa o corpo e descontrai as idéias. Ela nos devolve a capacidade de rir da vida. Ela desata os nós que prendem nosso barco ao cais de estúpidas normas sociais. A maconha tem a capacidade de afrouxar a gravata do pensamento e deixar que ele saia por aí, gaivota livre e sem destino, pela imensidão azul do céu. É como se vivêssemos nosso dia-a-dia presos numa pequena cela e a maconha de repente viesse abrir a porta para nos lembrar daquilo que não deveríamos ter esquecido. O que sentimos então é só um vislumbre da imensidão mas não há como não se extasiar.
É exatamente assim, seduzida por esse raro vislumbre do nosso céu azul interior, que a maioria das pessoas se inicia no uso da Cannabis. E prosseguem fumando para se sentirem religadas à sagrada dimensão, à sua própria e esquecida liberdade. No entanto, a maioria dos usuários esquece que a planta apenas os levou até a porta: eles é quem devem abri-la e conquistar, por si mesmos, sua própria liberdade através da luta do dia-a-dia.
A liberdade é um constante caminhar, um contínuo desapegar, um estar sempre atento. Para ser livre é preciso se livrar daquilo que limita e prende. Medos, traumas, culpas e bloqueios pesam bastante na mochila, limitam os movimentos e impedem que o viajante prossiga. Por isso é que, para alcançar sua mais sagrada dimensão, o viajante da liberdade deve saber verdadeiramente quem ele é. E conhecer a si mesmo é o maior de seus desafios: ele deve voltar o olhar para seu interior, com coragem, e encarar firme o que desconhece de si mesmo, o que tem medo de admitir - tudo aquilo que o torna pesado demais para prosseguir na difícil e escorregadia trilha de sua liberdade. Porque a maior liberdade não é fazer o que se tem vontade: é fazer o que deve ser feito.
Claro que não é fácil ser livre. Nunca foi nem será pois a verdadeira liberdade é a recompensa dos que, apesar do medo, desvendaram a si mesmos. Mas é possível. Basta manter-se disposto e atento e ser implacável no que se deve fazer. O. k., não há nada demais em parar um pouco, fumar um baseado, relaxar, divertir-se, curtir a paisagem ao redor. A maconha também tem seu lado lúdico e, além disso, o viajante merece. O problema é relaxar demais e perder o trem, esquecer que se tem de prosseguir, que há novos desafios à frente, que a vida não espera e não há tempo a perder.
Infelizmente grande parte dos usuários termina se acomodando em dimensões mais superficiais e acessíveis como o relaxamento e a diversão e assim desperdiçam o imenso potencial da planta para a verdadeira liberdade. Mais triste ainda é que boa parte dessas pessoas termina usando a maconha para fugir da realidade, escondendo-se de seus próprios problemas e, dessa forma, criando mais um: a dependência da planta. Esse é o maior perigo que envolve a relação das pessoas com as plantas de poder.
A maconha é isso: uma planta sagrada que nos reconecta à trilha interior que conduz à liberdade. Mas é preciso alertar que além dos limites ela entorpece e ilude, acomodando o viajante na paisagem. E nada para atrasar mais uma viagem que perder o trem.
Ricardo Kelmer
O aspecto mais notável da maconha é seu incrível poder de nos reconectar à dimensão da liberdade, a mais sagrada das dimensões do ser. Ela existe nas profundezas de cada um de nós e só a alcançamos através do mais verdadeiro conhecimento de si próprio. Infelizmente, no dia-a-dia, costumamos perder de vista sua trilha, entre tantas coisas que elegemos importantes. É justamente esta, então, a grande sedução da maconha: basta uma tragadinha num baseado para, de repente, lembrarmos que somos exatamente isso, viajantes da liberdade. Basta uma tragadinha para voltarmos a enxergar, entre tudo o mais que existe, a trilha que conduz ao céu azul dessa libertadora dimensão.
A maconha é um presente da natureza. Ela relaxa o corpo e descontrai as idéias. Ela nos devolve a capacidade de rir da vida. Ela desata os nós que prendem nosso barco ao cais de estúpidas normas sociais. A maconha tem a capacidade de afrouxar a gravata do pensamento e deixar que ele saia por aí, gaivota livre e sem destino, pela imensidão azul do céu. É como se vivêssemos nosso dia-a-dia presos numa pequena cela e a maconha de repente viesse abrir a porta para nos lembrar daquilo que não deveríamos ter esquecido. O que sentimos então é só um vislumbre da imensidão mas não há como não se extasiar.
É exatamente assim, seduzida por esse raro vislumbre do nosso céu azul interior, que a maioria das pessoas se inicia no uso da Cannabis. E prosseguem fumando para se sentirem religadas à sagrada dimensão, à sua própria e esquecida liberdade. No entanto, a maioria dos usuários esquece que a planta apenas os levou até a porta: eles é quem devem abri-la e conquistar, por si mesmos, sua própria liberdade através da luta do dia-a-dia.
A liberdade é um constante caminhar, um contínuo desapegar, um estar sempre atento. Para ser livre é preciso se livrar daquilo que limita e prende. Medos, traumas, culpas e bloqueios pesam bastante na mochila, limitam os movimentos e impedem que o viajante prossiga. Por isso é que, para alcançar sua mais sagrada dimensão, o viajante da liberdade deve saber verdadeiramente quem ele é. E conhecer a si mesmo é o maior de seus desafios: ele deve voltar o olhar para seu interior, com coragem, e encarar firme o que desconhece de si mesmo, o que tem medo de admitir - tudo aquilo que o torna pesado demais para prosseguir na difícil e escorregadia trilha de sua liberdade. Porque a maior liberdade não é fazer o que se tem vontade: é fazer o que deve ser feito.
Claro que não é fácil ser livre. Nunca foi nem será pois a verdadeira liberdade é a recompensa dos que, apesar do medo, desvendaram a si mesmos. Mas é possível. Basta manter-se disposto e atento e ser implacável no que se deve fazer. O. k., não há nada demais em parar um pouco, fumar um baseado, relaxar, divertir-se, curtir a paisagem ao redor. A maconha também tem seu lado lúdico e, além disso, o viajante merece. O problema é relaxar demais e perder o trem, esquecer que se tem de prosseguir, que há novos desafios à frente, que a vida não espera e não há tempo a perder.
Infelizmente grande parte dos usuários termina se acomodando em dimensões mais superficiais e acessíveis como o relaxamento e a diversão e assim desperdiçam o imenso potencial da planta para a verdadeira liberdade. Mais triste ainda é que boa parte dessas pessoas termina usando a maconha para fugir da realidade, escondendo-se de seus próprios problemas e, dessa forma, criando mais um: a dependência da planta. Esse é o maior perigo que envolve a relação das pessoas com as plantas de poder.
A maconha é isso: uma planta sagrada que nos reconecta à trilha interior que conduz à liberdade. Mas é preciso alertar que além dos limites ela entorpece e ilude, acomodando o viajante na paisagem. E nada para atrasar mais uma viagem que perder o trem.
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