Janeiro de 2002, TRIP nº 94
1. Descriminalize já!
(Artigo publicado originalmente na TRIP nº 65 - http://www2.uol.com.br/trip/65/GUIMA/HOME.HTM).
Ricardo Guimarães
Ricardo Guimarães, 52 anos, é publicitário e colunista desta revista.
Há 15 anos a TRIP participa ativamente da discussão sobre drogas no Brasil, com reportagens, debates e troca permanente de impressões com leitores, colaboradores e especialistas no assunto. Conclusão? Não faz sentido alguém que fuma maconha ser tratado como criminoso. O texto a seguir, escrito pelo colunista Ricardo Guimarães, resume com exatidão e brilho o que a revista pensa sobre a droga em questão e a questão das drogas. Fazemos nossas as palavras dele.
Sou a favor da descriminalização. E da educação da maconha. Maconha é poder. Poder de alterar. Assim como o álcool que altera seu estado, o trator que altera o solo, o dinheiro que altera sua liberdade e a energia nuclear que altera a vida. Maconha é muito bom, assim como o álcool, o dinheiro, o trator, a energia nuclear e o poder político. São poderes que podem fazer a vida melhor, mais divertida, inteligente e segura. Ou podem acabar com tudo. Por isso, tem que descriminalizar e educar. Como na reforma agrária.
Você já viu um agricultor pobre e ignorante sentado em cima de um trator? Movido pela necessidade de alimentar sua família ele é capaz de heroicamente destruir uma floresta e acabar com um rio que são os obstáculos para ele obter o sustento da família. Eu vi isso e é difícil explicar para ele a burrice e o atraso de vida do que ele estava fazendo. Para ele era progresso. E justo. É isso: põe a maconha na mão de neguinho cheio de insegurança e precisando se afirmar socialmente e veja como ele enfrenta os obstáculos que a vida coloca para ele crescer. Florestas e rios serão destruídos, com certeza. E ele vira um ser devastado.
NÃO DEIXE A VIDA PASSAR
Não tenho compromisso com o mainstream nem com a vanguarda nem com o marginal. Não vejo nada essencialmente diferente em nenhum desses lados mesmo porque não passam de lados da mesma coisa - não são outras coisas. Para mim o burguês-fumando-charuto-tomando-whisky-na-frente-da-TV não é muito diferente do mano-queimando-erva-tomando-cerva-na-frente-do-mar se os dois estiverem igualmente entorpecidos, anestesiados, fazendo hora para essa vida cheia de problemas passar logo. São escolhas. Eu estou fora!
Outra coisa é ver a maconha como uma conquista, um direito. Não uma conquista jurídica, descriminalização - esse é um processo social e tem seu tempo para amadurecer e eu sou todo a favor, já disse. Mas falo do âmbito pessoal, de um recurso a mais que alguém conquistou para usar e se levar a um outro estado. Isto é, precisa ter uma certa maestria, uma certa senioridade para usar a maconha ou qualquer outra droga justamente pelo poder que ela confere ao indivíduo. Quando o cara usa a maconha antes de estar pronto para usufruir tudo que ela pode dar parece que se está colocando um chantili muito bom em cima de um bolo que tiraram do forno antes de assar direito: estraga o bolo e o chantili.
É preciso estar maduro, com trabalho definido, afetividade satisfeita para então a erva ter o efeito de expansão. Antes disso é roubada.
Maconha devia ser prêmio e não meio de vida. Acho uma pena o estrago que a maconha faz na produtividade e na perseverança de algumas pessoas talentosas, assim como acho muito bom o adianto que a maconha faz na cabeça de pessoas que ainda não sacaram o tamanho e a beleza da viagem que temos por fazer. Acho pobre a idealização da maconha e a estética desencanada inconseqüente que ela cria. Essa estética revela uma ética corrompida de não se importar nem se abalar com as coisas mais chatas e difíceis da vida como se fosse possível passar por esta vida com esta insustentável leveza do ser.
A BANDEIRA DA CONSCIÊNCIA
Se tem uma bandeira que vale a pena carregar nesta história não é a da maconha - que até acho legal apoiar para questionar e oxigenar o sistema mas não como causa em si - mas a bandeira da consciência que é uma coisa cada vez mais necessária para que todo esse poder colocado em nossas mãos não destrua nossas cabeças, nossas relações e nosso planeta.
Maconha, trator, dinheiro e energia nuclear corrompem como o poder político. Se o indivíduo não está preparado, é o fim, é a corrupção. Como saber isso antes de experimentar? Infelizmente, acho que não temos alternativa senão correr o risco da experiência. Às vezes, fico querendo ter o poder para alterar o mundo e colocar tudo no seu devido lugar e garantir a evolução sem o risco da devastação. Mas este poder não existe. O que existe é um caminho a caminhar.
MACONHA MATA?
Não há casos na literatura médica de pessoas que morreram por overdose de maconha.
2. Na lata
"Sou a favor da legalização de todas as drogas. Elas devem ser livres e as pessoas adultas devem saber o que querem, podem e devem fazer." (Caetano Veloso, 58, cantor e compositor.)
"Minha posição é que o usuário não deve ter o mesmo tratamento que o traficante. Já fumei maconha e não gostei." (Marta Suplicy, 56, prefeita de São Paulo.)
"Sou contra a legalização de qualquer tipo de droga, mas acho um absurdo a lei considerar o usuário um criminoso." (Turco Loco, 36, deputado estadual pelo PSDB.)
"Adoro maconha. É uma planta sagrada. Proporciona um estado elevado para criar. Maravilhosa na libido. Todos os alucinógenos são tão importantes quanto o computador. Sou pela legalização de todas as drogas, menos o crack." (Zé Celso Martinez, 64, dramaturgo.)
"Sou completamente contra a legalização da maconha. Gostaria que o álcool e cigarro fossem ilegais, mas impor lei criminal ao usuário é uma injustiça e grossa burrice." (Boris Casoy, 60, jornalista.)
MACONHA BROXA?
Não há indícios de que a maconha cause impotência. Sabe-se, contudo, que, na mulher, altas doses de THC desregulam o ciclo ovulatório. No homem, o uso crônico diminui a produção de espermatozóides. Em ambos, o quadro é reversível.
3. Por que é preciso mudar a lei
André Viana
Sabe qual a diferença entre o usuário e o traficante de drogas? Praticamente nenhuma, de acordo com a ultrapassada lei brasileira. Enquanto isso, um baseado pode render dois anos de cadeia.
Dois meia quatro é o número do flagrante de Paulo Roberto Lisboa Gouvêa Júnior, 30 anos, brasileiro, branco, natural do Rio de Janeiro, fotógrafo, estudante de jornalismo. Crime: portava maconha. Foi há cinco anos. Paulo comemorava aniversário num bar do Baixo Gávea, zona sul carioca. De um amigo, como presente, ganhou um baseado. Foi assim: Quando se preparava para ir embora, dois policiais o pararam, impondo revista. No instinto, tentou sumir com a prova - "Um deles", conta, "botou o cano na minha cara e gritava para eu não engolir". Paulo foi carimbado no artigo 16 da lei de entorpecentes, que classifica o porte. Como pena, a obrigação de comparecer mensalmente, pelos dois anos seguintes, diante de um juiz.
De passagem marcada para estudar nos Estados Unidos, Paulo conseguiu liberação para viajar. Assim passaram-se dois anos. Nesse tempo, recebeu nova convocação judicial. Tentaram encontrá-lo, mas foi em vão. De regresso ao cotidiano carioca, Paulo não imaginou ter, em suas costas, um mandado de prisão. No início deste ano, no embarque para um trabalho fotográfico na Irlanda, recebeu voz: "'Você está preso!', berrou o agente da Polícia Federal na minha cara", recorda, traumatizado. Por três dias, Paulo ficou trancafiado numa cela da Polinter com outros quarenta, até ser solto por um advogado. "Logo que saí da cadeia, fiquei dois dias com febre e dor em tudo", revela. "Ainda estou assustado."
MACONHA E HAXIXE SÃO A MESMA COISA? E SKANK?
O haxixe e a maconha derivam da mesma planta, a Cannabis sativa. A maconha é extraída da folha, e o haxixe é produzido a partir da seiva extraída do caule - e tem o dobro de concentração de THC. O skank é uma variação criada em laboratório para ter concentração ainda maior de THC.
4. Não existe droga leve
Ronaldo Laranjeira, psiquiatra e coordenador do Proad (Programa de Orientação e Assistência a Dependentes, da Escola Paulista de Medicina), afirma em entrevista a Drauzio Varella que a erva já não é tão natural e pode lhe prejudicar. Os altos níveis de THC produzidos em laboratório são capazes de viciar, dispara.
"Existe, no cérebro, uma área conhecida como 'sistema de recompensa cerebral', responsável por toda espécie de prazer que a gente tem: sexo, comida, o sol que a gente sente quando sai na rua. As drogas agem nesse fim comum. Cigarro, maconha, cocaína, heroína ou crack, todas pervertem nosso sistema natural de recompensa, e a pessoa passa a dar preferência ao prazer artificial da droga, colocando outras fontes de prazer de lado." (Ronaldo Laranjeira)
"Sim, mas quase todo mundo usa álcool de vez em quando. E tem quem fume maconha ou cheire cocaína esporadicamente. Entretanto, existe o sujeito que fuma crack o dia inteiro e acaba com sua vida. O que faz uns se viciarem e outros não?" (Drauzio Varella)
"Uns são mais tolerantes aos sintomas de abstinência do que outros. Isso é um processo que depende muitas vezes do modo como essa pessoa começou a usar a droga. Maconha, por exemplo. As evidências mostram que, quanto mais cedo a pessoa fumar, maiores são as chances de ele ficar dependente. Porque o cérebro de um garoto dessa idade ainda está em formação. Não bastasse isso, a concentração de THC, o princípio ativo da maconha, aumentou muito nos últimos anos. Na década de 60, era de 0,5%. Hoje, é de 5%, em média. Por esses motivos é que há, hoje, mais uso compulsivo de maconha." (Laranjeira)
TH QUEM?
THC são as iniciais de tetrahidrocanabinol, substância ativa encontrada na maconha. Ela age aderindo a proteínas da superfície das células do cérebro chamadas receptores de canabinóides e atua em regiões cerebrais relacionadas à memória, aos sentidos, à capacidade de aprender e à sensação de equilíbrio.
5. Sou viciado em maconha
Fernando Costa Netto
Paciente do Ambulatório da Maconha, a primeira clínica especializada no tratamento de dependentes da droga no Brasil, revela a dificuldade em parar de fumar um, dois, três…
"Tenho insônia e tomo antidepressivos" (M., 15 anos, estudante)
"Acordava às 6h30 para ir à escola. Antes da aula, fumava o primeiro. Na hora do intervalo, mais um. E depois da escola, a tarde inteira e à noite. Comecei a fumar maconha aos 12 anos. Fumava 10, 12 baseados por dia e não estudava (parei no primeiro colegial). Minha mãe descobriu no ano passado. A gente conversou e ela pensou que eu fosse parar. Continuei, a gente brigou e fui morar com uma amiga. Voltei pra casa na condição de procurar tratamento. Tem sido difícil. Sinto falta de maconha. Tenho insônia, tomo antidepressivos. Sinto saudade da vida que levava. Passo o dia em casa. Se sair, não agüento, procuro os amigos e aí… Quero uma vida normal."
O Ambulatório da Maconha funciona à rua Botucatu, 394, na Vila Clementina, em São Paulo. O telefone é 11 5575 1708
A maconha é, hoje, a droga ilícita mais tolerada no Brasil. Seu consumo quadruplicou na última década. Estima-se que existam, atualmente, cerca de 5 milhões de usuários no país.
Outra pesquisa mostrou que quase 20% dos jovens cariocas entre 14 e 20 anos provenientes das classes A e B têm ou já tiveram contato com maconha. Entre os jovens das classes C, D e E, o número não chega aos 10%.
6. Conheça seus direitos
Enquanto o novo projeto de lei sobre drogas é apreciado pelo Senado, saiba como agir de for apanhado pela polícia com maconha.
Pela lei, o que diferencia o usuário do traficante é a intenção, além da quantidade de droga apreendida. De modo geral, configura-se tráfico quando a pessoa pretende dar ou vender a droga para outra pessoa, seja um grama, seja uma tonelada. É o delegado de polícia, a quem a ocorrência for apresentada, quem decidirá se seu caso encaixa-se no artigo 12 (tráfico) ou o artigo 16 (porte) da Lei de Entorpecentes (lei no 6368/76). Há casos em que o usuário foi enquadrado como traficante porque deu ou iria dar pequena quantidade de droga, mesmo um baseado, para um amigo.
Se você for surpreendido com droga, vai receber voz de prisão em flagrante delito. Seja educado com as autoridades. Se a lei for cumprida, você será encaminhado à DP mais próxima, onde um delegado de polícia analisará o caso e, provavelmente, iniciará um procedimento chamado "Auto de Prisão em Flagrante". Caso não tenha condenações anteriores por outros crimes e seja autuado como usuário de drogas, pagará uma fiança entre R$ 14,83 e R$ 148,30. É o início de um processo que poderá culminar numa pena que varia de seis meses a dois anos de detenção.
Se tudo correr bem e você for enquadrado como usuário, sendo réu primário, dificilmente irá para a prisão. Com o advento da Lei nº 9099/95, caso você se enquadre nas exigências legais, o processo poderá ficar suspenso por dois anos. Nesse tempo, você será obrigado a comparecer mensalmente à presença de um juiz e a cumprir algumas exigências - tais como proibição de freqüentar determinados locais e de ausentar-se do distrito onde mora sem autorização judicial. Ao final de dois anos, caso não seja condenado por outro crime e atenda às exigências do juiz, você voltará à condição de "primário".
O artigo 16, que classifica o usuário, define como crime apenas três ações: "Adquirir, guardar ou trazer consigo". Caso você já tenha consumido a droga e não haja resquícios, o crime foi cometido, embora seja mais difícil conseguir a prova técnica. Caso haja suspeita de posse de entorpecente, a lei autoriza a polícia a revistar você, seu carro, ou seus pertences. O DENARC aconselha que você acompanhe a ação. Já na sua casa, a polícia só estará autorizada por lei a efetivar uma busca se houver certeza da existência de entorpecente ou com mandado judicial.
Atenção: aquela inofensiva muda de maconha para consumo próprio pode transformar você em traficante (já que, pelo inciso II, parágrafo 1º do artigo 12, "quem semeia, cultiva ou faz colheita de plantas destinadas à preparação de entorpecente" incorre nas penas do crime de tráfico de drogas). Aí, a história se complica, pois você não terá direito à fiança e poderá pegar de 3 a 15 anos de reclusão - e, até provar a sua "boa" intenção, poderá passar algum tempo em cana.
Fonte: http://www2.uol.com.br/trip/94/maconha/01.htm
terça-feira, 1 de janeiro de 2002
segunda-feira, 3 de dezembro de 2001
O crime de escalar montanhas
3 de dezembro de 2001, no.com.br
Anabela Paiva
no.com.br (http://www.no.com.br/).
De traficante do morro da Mangueira a cantor apanhado com um grama de cocaína, o advogado Alexandre Dumans já defendeu todos os tipos de acusados do crime de usar ou vender drogas. "São mais de mil casos", contabiliza Dumans, fumando sem parar cigarros da droga legal embalada pela Souza Cruz. O cilindro de papel e tabaco é um dos seus argumentos na defesa da sua causa favorita: a liberação do uso de drogas. Ou todas as drogas são legais, ou todas são ilegais, incluindo o álcool, raciocina.
É com a lógica afiada em 26 anos de advocacia criminal que o advogado carioca de 50 anos impressiona os alunos de mestrado de Criminologia, Direito Penal e Processo Penal da Universidade Cândido Mendes, onde ensina a origem, contradições e pontos fracos das leis referentes ao uso e tráfico de drogas no Brasil e no mundo. Uma racionalidade que a lei brasileira, que pune o usuário, desafia. "Vamos então punir também o suicida", compara. Dumans comemora a entrada em vigor de uma lei que poderá representar o fim da prisão do usuário e está certo de que o mundo caminha para a liberação das drogas. Mas reconhece que nem só com leis a sociedade pune os transgressores, como mostrou o caso recente da demissão da apresentadora Soninha (19/11/2001). Em tom irônico, diz que nunca viu maconha - depois, admite ter fumado, mas só na época em que o presidente Fernando Henrique também dava seus tapinhas. "Cliente não quer advogado maconheiro."
Anabela Paiva - Afinal, descriminalizaram o uso da maconha ou não?
Alexandre Dumans - Não. O uso continua a ser crime. O artigo 16 da lei 6368 está em vigor. O que acontece é que uma lei federal, que prevê um tratamento processual menos draconiano, vai passar a vigorar e poderá ter repercussão em outros estados, como o Rio.
Anabela Paiva - Explique melhor.
Alexandre Dumans - A lei 9099 criou juizados especiais cíveis e criminais para julgar crimes de pequeno potencial ofensivo. Os autores de delitos deste tipo têm direito a um tratamento mais benevolente. Não há flagrante e ninguém é preso. É feito apenas um termo dos fatos que ocorreram e existe uma negociação que estabelece uma pena alternativa - como a prestação de serviços comunitários ou o pagamento de cestas básicas a uma determinada instituição. Neste caso, o infrator não deixa de ser primário. A lei previa que só poderiam ser julgados nestes juizados delitos cuja pena máxima não ultrapassasse um ano, como ameaça ou violação de correspondência. E o delito de uso de drogas tem pena que vai de seis meses de detenção a dois anos.
Anabela Paiva - Ou seja, não se enquadrava nesta lei mais leniente.
Alexandre Dumans - Pois é, mas vai entrar em vigor em janeiro de 2002 a lei 10259, que dispõe sobre a instituição dos juizados especiais no âmbito da justiça federal. Esta lei aumentou o prazo da pena para dois anos - ou seja, alcançou o delito de uso. Neste caso, como o delito de uso de drogas passou a ser de pequeno potencial ofensivo, acaba a prisão em flagrante e o indivíduo não deixa de ser réu primário. Esta lei, a princípio, seria apenas para delitos julgados na justiça federal. Mas os juízes do Rio de Janeiro estão pensando em aplicar a lei também no âmbito estadual, por analogia. São juízes mais sábios, que sabem que a função da Justiça é conter o poder punitivo do Estado, e não ampliá-lo. A criminalização primária, que é operada pela polícia, vai em massa para o Judiciário. Cabe ao juiz selecionar o que merece punição. Ninguém agüenta mais ver a juventude na cadeia.
Anabela Paiva - A legislação brasileira antidrogas está ultrapassada?
Alexandre Dumans - Ela não está ultrapassada apenas, ela é uma lei cuja origem é espúria, é uma lei servil. Esta lei aparece após 1961, quando se realizou a Convenção Única de Estupefacientes, ratificada por cem países mas basicamente liderada pelos Estados Unidos. A partir dessa convenção, os EUA começam a caracterizar o tráfico de drogas como o inimigo externo que viria a substituir o comunismo. A droga era o inimigo interno da nação e os inimigos externos, o Oriente e a América Latina, como produtores da droga. Em 73, uma comissão de congressistas estadunidenses envolvidos na discussão das drogas fez uma visita à América Latina. Esse grupo foi dividido em quatro grupos: prevenção, tratamento, reabilitação e fiscalização e repressão. Curiosamente, esta é a divisão da nossa lei 6368. Foi um arremedo das idéias desta comissão. Qual foi o produto desta lei ao longo deste tempo? Promover o filicídio, a morte dos nossos filhos, anteriormente só cumprido pela guerra. A falta de parâmetros na lei para separar uso e tráfico, o despreparo da polícia e a confusão do Judiciário levou para os cárceres mulitas que faziam tráfico para subsistência e aqueles que compravam e dividiam entre os amigos. Isso quando se sabe que o tráfico de drogas é feito por grandes grupos internacionais. Hoje, mais de 50% da população carcerária está presa pela imputação de tráfico.
Anabela Paiva - Mas o tráfico emprega essas pessoas para outros crimes graves, assassinatos, seqüestros...
Alexandre Dumans - Mas não os prendem por assassinato e seqüestro, prendem pelo tráfico. Prendem o avião, o pobretão que vai comprar para outro para poder comprar a sua droga ou alguma outra coisa. No entanto, segundo reportagem da caretíssima revista Time, baseada numa agência de monitoramento do uso de drogas na Europa, 45 milhões de europeus fumam maconha. Quando 45 milhões de pessoas violam a lei, as pessoas estão erradas ou é a lei que está errada?
Anabela Paiva - Como o consumo de drogas se tornou crime no Brasil, se até o início do século, havia casas de ópio espalhadas pelo Rio e vendia-se cocaína em farmácia?
Alexandre Dumans - Nas Ordenações Filipinas, a lei penal que funcionava nos tempos coloniais, já se dizia: que ninguém tenha em casa rosalgar, nem o venda, nem outro material venenoso. Era a droga da época. Pena: perda da fazenda e degredo para a África. O código penal do Império, publicado em 1830, nada falava. Já na República, o código de 1890 consagra o chamado delito do boticário. Era delito praticado pelo boticário expor para venda ou ministrar substâncias venenosas sem legítima autorização e sem as formalidades previstas nos regulamentos sanitários. Até aí, as substâncias eram consideradas simplesmente venenosas. O decreto-lei 891 de 1938 é o primeiro modelo legislativo em consonância com o modelo internacional. No artigo 33, condena quem facilitar, instigar por atos ou palavras o uso ou emprego de qualquer substância entorpecente e prevê pena de um a cinco anos de prisão celular. É com o código penal de 40 e o popular artigo 281 que o Brasil ingressa na guerra contra as drogas. Um erro de lógica e filosofia, já que mover guerra contra entorpecentes é como combater um fantasma.
Anabela Paiva - Mas não é uma simples força de expressão?
Alexandre Dumans - Mas as expressões têm sua força, que se consolidam na prática. Se o indivíduo é apanhado comprando um baseado e diz "Não é para mim, é para fulano!", isso faz a diferença entre cadeia e liberdade, entre o simples pagamento de uma multa e uma pena mínima de três anos, sem direito à progressão de regime. Uma pessoa condenada por homicídio simples a uma pena de 18 anos só vai cumprir três anos. Na concepção legalista dessa lei boçal, o avião praticou um crime mais grave do que um homicídio, que tem direito a progressão de regime. O bem jurídico maior, que é a vida, passou a ser menor que a saúde pública, que em tese é o bem tutelado pela lei do tráfico de drogas. Ainda assim, a lógica do direito penal era seguida, até o advento do decreto lei 385 de 68, que passou a punir o usuário.
Anabela Paiva - E o que mudou?
Alexandre Dumans - A prostituta não pode ser punida, pois ela não pratica crime nenhum pelo fato de ser prostituta. A exploração da prostituição é que se constitui crime. O suicídio não constitui crime. Se você tentar se matar e não morrer, não vai ser punida. Mas a instigação ao suicídio é punida. Essa sempre foi a lógica do código penal. Esta lei passou a incriminar a vítima do ato, que seria o usuário. É uma lei fascista. Por que se imiscuir na vida alheia? Se querem proteger a saúde pública, cuidem da água, da qualidade do ar, das moléstias. Qual é a diferença entre fumar maconha e escalar uma montanha? Ambos os comportamentos apresentam riscos, mas só devem preocupar seguradoras e mães, não o Estado democrático. Que ambiente hipócrita é esse?
Anabela Paiva - E como foi impedida a progressão de pena?
Alexandre Dumans - O artigo 5, inciso 43 da Constituição Federal lista como crimes inafiançáveis e impedidos de receber anistia a prática de tortura, o tráfico e os crimes classificados como hediondos. Isso é uma besteirada que foi incluída na Constituição quando seria matéria a ser tratada no Código Penal. Vicente Cernichiaro, que foi ministro do Superior Tribunal de Justiça e hoje é um famoso advogado (como acontece com todos os ministros e magistrados; quando acabam a suas profissões, já preparados, aí sim estão habilitados a exercer a advocacia), nenhuma Constituição anterior especificou delitos que impedissem seus agentes de receber benefícios da anistia.
Anabela Paiva - E que circunstâncias políticas motivaram esse acirramento?
Alexandre Dumans - Ele se deu por conta da perda do inimigo externo pelas superpotências, a transposição do clima de guerra para este campo. Nos filmes, o papel que antes cabia aos agentes soviéticos hoje é dos traficantes colombianos. Nos anos 80, o consumidor era visto como cliente, agora é visto como comparsa. Entretanto, isso está mudando.
Anabela Paiva - Como?
Alexandre Dumans - Afora países que já promoveram a completa descriminalização do uso, a exemplo da Holanda, da Dinamarca e de outros, em nações com a Alemanha e a França, o uso de drogas, embora ainda seja crime, vem sendo tolerado pelas autoridades. A Bélgica recentemente apresentou uma proposta de só punir o usuário quando ele se tornar "problemático"; a Espanha há muito não processa usuário de qualquer espécie de droga, desde que se aplique reservadamente. Portugal em meados deste ano descriminalizou o uso de drogas, impondo ao usuário o pagamento de multa ou prestação de serviço comunitário, mas nunca a prisão. No Canadá, a Polícia Montada admite o porte de pequena quantidade de drogas. E na Inglaterra, o líder do Partido Conservador Britânico, Peter Lylley, propôs a concessão de licença para venda de maconha em lojas especializadas. Soube que já está sendo implantada lá a primeira cofee-shop no estilo das que funcionam em Amsterdã. Sem falar na nova lei brasileira.
Anabela Paiva - A lei pode estar mudando mas existem outros tipos de punições. Recentemente, a apresentadora Soninha foi demitida pela TV Cultura por admitir à revista Época que usa drogas. Ela poderia ter buscado algum recurso legal?
Alexandre Dumans - Tenho certeza de que caberiam todos os recursos. Se a lei trabalhista presta para alguma coisa - e eu acho que não presta, pois a Justiça Trabalhista consome mais dinheiro do que as indenizações que paga - , com certeza ela tem todos os direitos trabalhistas. Quando ela colocou em pauta um assunto como esses ela não fez nenhuma apologia. Se usarmos essa lógica burra, quando alguém sugerir que seria bom para o país a pena de morte, estaria havendo apologia do crime de homicídio.
Anabela Paiva - Mas o chefe dela poderia alegar que ela admitiu ter fumado, e que isso seria um crime.
Alexandre Dumans - Mas ela admitiu o mesmo que o presidente brasileiro e o ex-presidente americano, Bill Clinton, admitiram. Quem ele deseja lá, anjos? Ou prefere a hipocrisia que certamente alimentou a decisão de demiti-la? Isso não é uma televisão, é um beco. Meu senso de Justiça diz que esse cavalheiro deveria ser punido, pois demonstrou preconceito. A Soninha tentou abrir um debate franco - e não existe nada mais profícuo.
Anabela Paiva - Comprar drogas não significa ser cúmplice do tráfico, que comete crimes terríveis para preservar seus mercados? Isso não é uma questão moral?
Alexandre Dumans - O tráfico envolve uma rede de crimes por ser um mercado ilegal. Haverá uma criminalidade circunstancial. Mas como o mercado é muito grande, o consumo é muito grande, esses traficantes de drogas dos morros se encaram como comerciantes e não como bandidos. Alguns deles têm a ética de nunca ter roubado - dizem frases como "Nunca roubei ninguém, meu negócio é vender sacolé". Por isso a pessoa que compra é freguês e não cúmplice. Se o uso fosse mais caseiro e escondido a cumplicidade seria maior, pois o indivíduo para obter a droga teria de teria ter acesso a informação.
Anabela Paiva - O senhor é a favor da liberação de todas as drogas ou só da maconha?
Alexandre Dumans - Minha posição é solitária, é a da autodeterminação dos homens. Acho que tudo deve ser liberado. Ou vamos proibir o uso de todas as drogas, incluindo o álcool, ou liberamos. Por que serei obrigado a me drogar com álcool? A quem interessa esta proibição, se não a policiais corruptos, traficantes de drogas e fabricantes de bebidas, cigarros e outras drogas legais? Minha geração passou anos fumando maconha e brincando de esconder com os PMs. Esses PMs poderiam estar procurando bandidos truculentos, ferrabrases de verdade condenados por homicídio, estupradores de criancinhas. Existem cerca de 100 mil mandados de prisão a pessoas já condenadas. Em vez disso, estão procurando os maconheiros para pegar o arrego!
Anabela Paiva - O senhor fuma maconha?
Alexandre Dumans - Eu nunca fumei maconha.
Anabela Paiva - O senhor acabou de falar da sua geração...
Alexandre Dumans - Minha geração, não eu. Eu nunca vi maconha.
Anabela Paiva - O que é isso?
Alexandre Dumans - Essas respostas parecem mentira, não é? Por quê?
Anabela Paiva - Porque todo mundo vê...
Alexandre Dumans - Se todo mundo vê, por que é proibido?
Anabela Paiva - O senhor já foi advogado de traficantes. Vai ao morro conversar com eles. Então já viu.
Alexandre Dumans - Ah, quando a maconha aparecia eu saía correndo, porque sabia que era proibido pela lei... Veja como essas respostas são cretinas. Mas são respostas juridicamente corretas. Cliente não quer advogado maconheiro. Eu me lembro que eu fui uma vez a um médico. Era muito jovem e fumava maconha - na mesma época que o Fernando Henrique fumou. Fui ao médico e ele mostrou para mim que fumava também, abriu uma caixinha e me deu um cigarro. Eu nunca mais voltei. Era maconheiro e preconceituoso.
Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idArea=1&idSubArea=109
Anabela Paiva
no.com.br (http://www.no.com.br/).
De traficante do morro da Mangueira a cantor apanhado com um grama de cocaína, o advogado Alexandre Dumans já defendeu todos os tipos de acusados do crime de usar ou vender drogas. "São mais de mil casos", contabiliza Dumans, fumando sem parar cigarros da droga legal embalada pela Souza Cruz. O cilindro de papel e tabaco é um dos seus argumentos na defesa da sua causa favorita: a liberação do uso de drogas. Ou todas as drogas são legais, ou todas são ilegais, incluindo o álcool, raciocina.
É com a lógica afiada em 26 anos de advocacia criminal que o advogado carioca de 50 anos impressiona os alunos de mestrado de Criminologia, Direito Penal e Processo Penal da Universidade Cândido Mendes, onde ensina a origem, contradições e pontos fracos das leis referentes ao uso e tráfico de drogas no Brasil e no mundo. Uma racionalidade que a lei brasileira, que pune o usuário, desafia. "Vamos então punir também o suicida", compara. Dumans comemora a entrada em vigor de uma lei que poderá representar o fim da prisão do usuário e está certo de que o mundo caminha para a liberação das drogas. Mas reconhece que nem só com leis a sociedade pune os transgressores, como mostrou o caso recente da demissão da apresentadora Soninha (19/11/2001). Em tom irônico, diz que nunca viu maconha - depois, admite ter fumado, mas só na época em que o presidente Fernando Henrique também dava seus tapinhas. "Cliente não quer advogado maconheiro."
Anabela Paiva - Afinal, descriminalizaram o uso da maconha ou não?
Alexandre Dumans - Não. O uso continua a ser crime. O artigo 16 da lei 6368 está em vigor. O que acontece é que uma lei federal, que prevê um tratamento processual menos draconiano, vai passar a vigorar e poderá ter repercussão em outros estados, como o Rio.
Anabela Paiva - Explique melhor.
Alexandre Dumans - A lei 9099 criou juizados especiais cíveis e criminais para julgar crimes de pequeno potencial ofensivo. Os autores de delitos deste tipo têm direito a um tratamento mais benevolente. Não há flagrante e ninguém é preso. É feito apenas um termo dos fatos que ocorreram e existe uma negociação que estabelece uma pena alternativa - como a prestação de serviços comunitários ou o pagamento de cestas básicas a uma determinada instituição. Neste caso, o infrator não deixa de ser primário. A lei previa que só poderiam ser julgados nestes juizados delitos cuja pena máxima não ultrapassasse um ano, como ameaça ou violação de correspondência. E o delito de uso de drogas tem pena que vai de seis meses de detenção a dois anos.
Anabela Paiva - Ou seja, não se enquadrava nesta lei mais leniente.
Alexandre Dumans - Pois é, mas vai entrar em vigor em janeiro de 2002 a lei 10259, que dispõe sobre a instituição dos juizados especiais no âmbito da justiça federal. Esta lei aumentou o prazo da pena para dois anos - ou seja, alcançou o delito de uso. Neste caso, como o delito de uso de drogas passou a ser de pequeno potencial ofensivo, acaba a prisão em flagrante e o indivíduo não deixa de ser réu primário. Esta lei, a princípio, seria apenas para delitos julgados na justiça federal. Mas os juízes do Rio de Janeiro estão pensando em aplicar a lei também no âmbito estadual, por analogia. São juízes mais sábios, que sabem que a função da Justiça é conter o poder punitivo do Estado, e não ampliá-lo. A criminalização primária, que é operada pela polícia, vai em massa para o Judiciário. Cabe ao juiz selecionar o que merece punição. Ninguém agüenta mais ver a juventude na cadeia.
Anabela Paiva - A legislação brasileira antidrogas está ultrapassada?
Alexandre Dumans - Ela não está ultrapassada apenas, ela é uma lei cuja origem é espúria, é uma lei servil. Esta lei aparece após 1961, quando se realizou a Convenção Única de Estupefacientes, ratificada por cem países mas basicamente liderada pelos Estados Unidos. A partir dessa convenção, os EUA começam a caracterizar o tráfico de drogas como o inimigo externo que viria a substituir o comunismo. A droga era o inimigo interno da nação e os inimigos externos, o Oriente e a América Latina, como produtores da droga. Em 73, uma comissão de congressistas estadunidenses envolvidos na discussão das drogas fez uma visita à América Latina. Esse grupo foi dividido em quatro grupos: prevenção, tratamento, reabilitação e fiscalização e repressão. Curiosamente, esta é a divisão da nossa lei 6368. Foi um arremedo das idéias desta comissão. Qual foi o produto desta lei ao longo deste tempo? Promover o filicídio, a morte dos nossos filhos, anteriormente só cumprido pela guerra. A falta de parâmetros na lei para separar uso e tráfico, o despreparo da polícia e a confusão do Judiciário levou para os cárceres mulitas que faziam tráfico para subsistência e aqueles que compravam e dividiam entre os amigos. Isso quando se sabe que o tráfico de drogas é feito por grandes grupos internacionais. Hoje, mais de 50% da população carcerária está presa pela imputação de tráfico.
Anabela Paiva - Mas o tráfico emprega essas pessoas para outros crimes graves, assassinatos, seqüestros...
Alexandre Dumans - Mas não os prendem por assassinato e seqüestro, prendem pelo tráfico. Prendem o avião, o pobretão que vai comprar para outro para poder comprar a sua droga ou alguma outra coisa. No entanto, segundo reportagem da caretíssima revista Time, baseada numa agência de monitoramento do uso de drogas na Europa, 45 milhões de europeus fumam maconha. Quando 45 milhões de pessoas violam a lei, as pessoas estão erradas ou é a lei que está errada?
Anabela Paiva - Como o consumo de drogas se tornou crime no Brasil, se até o início do século, havia casas de ópio espalhadas pelo Rio e vendia-se cocaína em farmácia?
Alexandre Dumans - Nas Ordenações Filipinas, a lei penal que funcionava nos tempos coloniais, já se dizia: que ninguém tenha em casa rosalgar, nem o venda, nem outro material venenoso. Era a droga da época. Pena: perda da fazenda e degredo para a África. O código penal do Império, publicado em 1830, nada falava. Já na República, o código de 1890 consagra o chamado delito do boticário. Era delito praticado pelo boticário expor para venda ou ministrar substâncias venenosas sem legítima autorização e sem as formalidades previstas nos regulamentos sanitários. Até aí, as substâncias eram consideradas simplesmente venenosas. O decreto-lei 891 de 1938 é o primeiro modelo legislativo em consonância com o modelo internacional. No artigo 33, condena quem facilitar, instigar por atos ou palavras o uso ou emprego de qualquer substância entorpecente e prevê pena de um a cinco anos de prisão celular. É com o código penal de 40 e o popular artigo 281 que o Brasil ingressa na guerra contra as drogas. Um erro de lógica e filosofia, já que mover guerra contra entorpecentes é como combater um fantasma.
Anabela Paiva - Mas não é uma simples força de expressão?
Alexandre Dumans - Mas as expressões têm sua força, que se consolidam na prática. Se o indivíduo é apanhado comprando um baseado e diz "Não é para mim, é para fulano!", isso faz a diferença entre cadeia e liberdade, entre o simples pagamento de uma multa e uma pena mínima de três anos, sem direito à progressão de regime. Uma pessoa condenada por homicídio simples a uma pena de 18 anos só vai cumprir três anos. Na concepção legalista dessa lei boçal, o avião praticou um crime mais grave do que um homicídio, que tem direito a progressão de regime. O bem jurídico maior, que é a vida, passou a ser menor que a saúde pública, que em tese é o bem tutelado pela lei do tráfico de drogas. Ainda assim, a lógica do direito penal era seguida, até o advento do decreto lei 385 de 68, que passou a punir o usuário.
Anabela Paiva - E o que mudou?
Alexandre Dumans - A prostituta não pode ser punida, pois ela não pratica crime nenhum pelo fato de ser prostituta. A exploração da prostituição é que se constitui crime. O suicídio não constitui crime. Se você tentar se matar e não morrer, não vai ser punida. Mas a instigação ao suicídio é punida. Essa sempre foi a lógica do código penal. Esta lei passou a incriminar a vítima do ato, que seria o usuário. É uma lei fascista. Por que se imiscuir na vida alheia? Se querem proteger a saúde pública, cuidem da água, da qualidade do ar, das moléstias. Qual é a diferença entre fumar maconha e escalar uma montanha? Ambos os comportamentos apresentam riscos, mas só devem preocupar seguradoras e mães, não o Estado democrático. Que ambiente hipócrita é esse?
Anabela Paiva - E como foi impedida a progressão de pena?
Alexandre Dumans - O artigo 5, inciso 43 da Constituição Federal lista como crimes inafiançáveis e impedidos de receber anistia a prática de tortura, o tráfico e os crimes classificados como hediondos. Isso é uma besteirada que foi incluída na Constituição quando seria matéria a ser tratada no Código Penal. Vicente Cernichiaro, que foi ministro do Superior Tribunal de Justiça e hoje é um famoso advogado (como acontece com todos os ministros e magistrados; quando acabam a suas profissões, já preparados, aí sim estão habilitados a exercer a advocacia), nenhuma Constituição anterior especificou delitos que impedissem seus agentes de receber benefícios da anistia.
Anabela Paiva - E que circunstâncias políticas motivaram esse acirramento?
Alexandre Dumans - Ele se deu por conta da perda do inimigo externo pelas superpotências, a transposição do clima de guerra para este campo. Nos filmes, o papel que antes cabia aos agentes soviéticos hoje é dos traficantes colombianos. Nos anos 80, o consumidor era visto como cliente, agora é visto como comparsa. Entretanto, isso está mudando.
Anabela Paiva - Como?
Alexandre Dumans - Afora países que já promoveram a completa descriminalização do uso, a exemplo da Holanda, da Dinamarca e de outros, em nações com a Alemanha e a França, o uso de drogas, embora ainda seja crime, vem sendo tolerado pelas autoridades. A Bélgica recentemente apresentou uma proposta de só punir o usuário quando ele se tornar "problemático"; a Espanha há muito não processa usuário de qualquer espécie de droga, desde que se aplique reservadamente. Portugal em meados deste ano descriminalizou o uso de drogas, impondo ao usuário o pagamento de multa ou prestação de serviço comunitário, mas nunca a prisão. No Canadá, a Polícia Montada admite o porte de pequena quantidade de drogas. E na Inglaterra, o líder do Partido Conservador Britânico, Peter Lylley, propôs a concessão de licença para venda de maconha em lojas especializadas. Soube que já está sendo implantada lá a primeira cofee-shop no estilo das que funcionam em Amsterdã. Sem falar na nova lei brasileira.
Anabela Paiva - A lei pode estar mudando mas existem outros tipos de punições. Recentemente, a apresentadora Soninha foi demitida pela TV Cultura por admitir à revista Época que usa drogas. Ela poderia ter buscado algum recurso legal?
Alexandre Dumans - Tenho certeza de que caberiam todos os recursos. Se a lei trabalhista presta para alguma coisa - e eu acho que não presta, pois a Justiça Trabalhista consome mais dinheiro do que as indenizações que paga - , com certeza ela tem todos os direitos trabalhistas. Quando ela colocou em pauta um assunto como esses ela não fez nenhuma apologia. Se usarmos essa lógica burra, quando alguém sugerir que seria bom para o país a pena de morte, estaria havendo apologia do crime de homicídio.
Anabela Paiva - Mas o chefe dela poderia alegar que ela admitiu ter fumado, e que isso seria um crime.
Alexandre Dumans - Mas ela admitiu o mesmo que o presidente brasileiro e o ex-presidente americano, Bill Clinton, admitiram. Quem ele deseja lá, anjos? Ou prefere a hipocrisia que certamente alimentou a decisão de demiti-la? Isso não é uma televisão, é um beco. Meu senso de Justiça diz que esse cavalheiro deveria ser punido, pois demonstrou preconceito. A Soninha tentou abrir um debate franco - e não existe nada mais profícuo.
Anabela Paiva - Comprar drogas não significa ser cúmplice do tráfico, que comete crimes terríveis para preservar seus mercados? Isso não é uma questão moral?
Alexandre Dumans - O tráfico envolve uma rede de crimes por ser um mercado ilegal. Haverá uma criminalidade circunstancial. Mas como o mercado é muito grande, o consumo é muito grande, esses traficantes de drogas dos morros se encaram como comerciantes e não como bandidos. Alguns deles têm a ética de nunca ter roubado - dizem frases como "Nunca roubei ninguém, meu negócio é vender sacolé". Por isso a pessoa que compra é freguês e não cúmplice. Se o uso fosse mais caseiro e escondido a cumplicidade seria maior, pois o indivíduo para obter a droga teria de teria ter acesso a informação.
Anabela Paiva - O senhor é a favor da liberação de todas as drogas ou só da maconha?
Alexandre Dumans - Minha posição é solitária, é a da autodeterminação dos homens. Acho que tudo deve ser liberado. Ou vamos proibir o uso de todas as drogas, incluindo o álcool, ou liberamos. Por que serei obrigado a me drogar com álcool? A quem interessa esta proibição, se não a policiais corruptos, traficantes de drogas e fabricantes de bebidas, cigarros e outras drogas legais? Minha geração passou anos fumando maconha e brincando de esconder com os PMs. Esses PMs poderiam estar procurando bandidos truculentos, ferrabrases de verdade condenados por homicídio, estupradores de criancinhas. Existem cerca de 100 mil mandados de prisão a pessoas já condenadas. Em vez disso, estão procurando os maconheiros para pegar o arrego!
Anabela Paiva - O senhor fuma maconha?
Alexandre Dumans - Eu nunca fumei maconha.
Anabela Paiva - O senhor acabou de falar da sua geração...
Alexandre Dumans - Minha geração, não eu. Eu nunca vi maconha.
Anabela Paiva - O que é isso?
Alexandre Dumans - Essas respostas parecem mentira, não é? Por quê?
Anabela Paiva - Porque todo mundo vê...
Alexandre Dumans - Se todo mundo vê, por que é proibido?
Anabela Paiva - O senhor já foi advogado de traficantes. Vai ao morro conversar com eles. Então já viu.
Alexandre Dumans - Ah, quando a maconha aparecia eu saía correndo, porque sabia que era proibido pela lei... Veja como essas respostas são cretinas. Mas são respostas juridicamente corretas. Cliente não quer advogado maconheiro. Eu me lembro que eu fui uma vez a um médico. Era muito jovem e fumava maconha - na mesma época que o Fernando Henrique fumou. Fui ao médico e ele mostrou para mim que fumava também, abriu uma caixinha e me deu um cigarro. Eu nunca mais voltei. Era maconheiro e preconceituoso.
Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idArea=1&idSubArea=109
quinta-feira, 29 de novembro de 2001
Pesquisa da maconha é retomada depois de duas décadas
29 de novembro de 2001, The New York Times
Philip J. Hilts
Tradução de George El Khouri Andolfato.
A retomada da pesquisa sobre os usos medicinais da maconha está programada para o início do próximo ano, após duas décadas, com a aprovação por parte do governo de novas experiências para avaliar se fumá-la pode ajudar pacientes com esclerose múltipla ou que sofrem dores nos membros em conseqüência da AIDS.
A nova aprovação, concedida em 28 de novembro pela Drug Enforcement Administration (DEA), a agência americana de combate às drogas, não autoriza aos médicos a prescreverem maconha aos seus pacientes como tratamento; ela apenas autoriza o uso limitado em experiências científicas. Em alguns estados, a lei estadual permite aos médicos prescreverem ou recomendarem a maconha, mas a lei federal proíbe a prática, mesmo nestes estados.
A DEA aprovou duas experiências no final do mês passado, e espera aprovar uma terceira em breve. Autoridades da agência disseram que as aprovações não representam uma mudança de política, já que as experiências para o descobrimento de usos medicinais para a maconha nunca foram proibidas. O que aconteceu, disse Terry Woodworth, vice-diretor de controle, é que os cientistas e órgãos públicos que financiam pesquisas mudaram sua posição em relação ao valor de tais experiências.
Mas Paul Armentano, porta-voz da National Organization for the Reform of Marijuana Laws (NORML, Organização Nacional para Reforma das Leis para Maconha), disse que as aprovações "encerraram duas décadas de proibição federal à pesquisa médica da maconha".
"Ainda não é muita coisa", acrescentou Armentano, "mas é um reconhecimento por parte do governo federal de que não se pode impedir o avanço dos trabalhos".
As experiências com maconha exigem a aprovação de várias agências federais; a aprovação da DEA é a última, a que fornece a licença para os pesquisadores.
As duas experiências que já receberam a aprovação, a terceira que deve recebê-la em breve e outras oito, que no momento estão seguindo os trâmites legais estaduais e federais para aprovação, estão todas programadas para ocorrer na Califórnia e têm sido financiadas pelo Centro para Pesquisa Medicinal de Cannabis da Universidade da Califórnia.
Um dos dois estudos já aprovados tratará de pacientes com esclerose múltipla. Alguns dos pacientes dizem que têm rigidez muscular que não é aliviada eficazmente por outras drogas, e de qualquer forma tais medicamentos possuem efeitos colaterais indesejados. A Drª. Jody Corey-Bloom, que conduzirá o estudo na Universidade da Califórnia em San Diego, cita relatos de que a maconha pode aliviar a dor muscular e a rigidez.
Em outro estudo aprovado, também no campus de San Diego, o Dr. Ronald Ellis tentará determinar se a maconha pode aliviar a dor nas mãos e nos pés, conhecida como neuropatia periférica, que às vezes afeta pacientes com HIV.
O Dr. Donald Abrams também estudará a condição na Universidade da Califórnia em São Francisco, em uma experiência que deverá ser aprovada em breve.
Abrams, que há muito tempo busca realizar estudos com a maconha em pacientes de AIDS, disse que entre os fatores mais importantes que contribuíram para a obtenção da aprovação foram os plebiscitos de cinco anos atrás, nos quais os eleitores da Califórnia e do Arizona transformaram em lei estadual a permissão para doentes utilizarem a maconha no tratamento de suas enfermidades.
Após tais propostas terem sido aprovadas, os comitês científicos governamentais do Instituto de Medicina e dos Institutos Nacionais de Saúde informaram que havia pouca evidência de que a maconha tinha utilidade medicinal, mas que estudos rigorosos seriam válidos.
As futuras experiências compararão os efeitos dos cigarros de maconha com os efeitos de cigarros de placebo (nos quais os ingredientes ativos da maconha serão removidos).
Os cigarros de maconha virão de uma plantação da Universidade do Mississipi com a autorização do Instituto Nacional de Abuso de Drogas, disse Richard Doblin, presidente da Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies (Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos), um grupo que defende a pesquisa de usos medicinais de drogas psicoativas. Ele disse que um problema com a nova pesquisa é o fato da maconha do Mississipi ter uma potência muito baixa, um fator que poderá comprometer os efeitos medicinais.
O Marinol, um medicamento aprovado para venda sob prescrição médica que está disponível há anos, contém um ingrediente ativo da maconha. Mas pesquisadores dizem que as plantas naturais contêm muitos agentes psicoativos que não estão presentes no produto comercial. Além disso, disse Abrams, leva horas para que os efeitos das cápsulas possam ser sentidos, enquanto o fumar da maconha produz efeitos em questão de minutos; logo, a cápsula pode não ser a melhor forma de ministrar o medicamento.
Experiências no uso da maconha como estimulante de apetite e na prevenção da náusea foram realizadas nos Estados Unidos até o início dos anos 80. Depois disso, disse Doblin, posições desaprovadoras do governo federal e em agências de pesquisa levaram os cientistas a acreditar que os financiamentos para estudos medicinais da maconha seriam difíceis de serem obtidos.
Mas após os plebiscitos na Califórnia e no Arizona em 1996, a questão passou a ser se o uso médico poderia ser apoiado por evidências científicas.
Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idArea=1&idSubArea=121
Philip J. Hilts
Tradução de George El Khouri Andolfato.
A retomada da pesquisa sobre os usos medicinais da maconha está programada para o início do próximo ano, após duas décadas, com a aprovação por parte do governo de novas experiências para avaliar se fumá-la pode ajudar pacientes com esclerose múltipla ou que sofrem dores nos membros em conseqüência da AIDS.
A nova aprovação, concedida em 28 de novembro pela Drug Enforcement Administration (DEA), a agência americana de combate às drogas, não autoriza aos médicos a prescreverem maconha aos seus pacientes como tratamento; ela apenas autoriza o uso limitado em experiências científicas. Em alguns estados, a lei estadual permite aos médicos prescreverem ou recomendarem a maconha, mas a lei federal proíbe a prática, mesmo nestes estados.
A DEA aprovou duas experiências no final do mês passado, e espera aprovar uma terceira em breve. Autoridades da agência disseram que as aprovações não representam uma mudança de política, já que as experiências para o descobrimento de usos medicinais para a maconha nunca foram proibidas. O que aconteceu, disse Terry Woodworth, vice-diretor de controle, é que os cientistas e órgãos públicos que financiam pesquisas mudaram sua posição em relação ao valor de tais experiências.
Mas Paul Armentano, porta-voz da National Organization for the Reform of Marijuana Laws (NORML, Organização Nacional para Reforma das Leis para Maconha), disse que as aprovações "encerraram duas décadas de proibição federal à pesquisa médica da maconha".
"Ainda não é muita coisa", acrescentou Armentano, "mas é um reconhecimento por parte do governo federal de que não se pode impedir o avanço dos trabalhos".
As experiências com maconha exigem a aprovação de várias agências federais; a aprovação da DEA é a última, a que fornece a licença para os pesquisadores.
As duas experiências que já receberam a aprovação, a terceira que deve recebê-la em breve e outras oito, que no momento estão seguindo os trâmites legais estaduais e federais para aprovação, estão todas programadas para ocorrer na Califórnia e têm sido financiadas pelo Centro para Pesquisa Medicinal de Cannabis da Universidade da Califórnia.
Um dos dois estudos já aprovados tratará de pacientes com esclerose múltipla. Alguns dos pacientes dizem que têm rigidez muscular que não é aliviada eficazmente por outras drogas, e de qualquer forma tais medicamentos possuem efeitos colaterais indesejados. A Drª. Jody Corey-Bloom, que conduzirá o estudo na Universidade da Califórnia em San Diego, cita relatos de que a maconha pode aliviar a dor muscular e a rigidez.
Em outro estudo aprovado, também no campus de San Diego, o Dr. Ronald Ellis tentará determinar se a maconha pode aliviar a dor nas mãos e nos pés, conhecida como neuropatia periférica, que às vezes afeta pacientes com HIV.
O Dr. Donald Abrams também estudará a condição na Universidade da Califórnia em São Francisco, em uma experiência que deverá ser aprovada em breve.
Abrams, que há muito tempo busca realizar estudos com a maconha em pacientes de AIDS, disse que entre os fatores mais importantes que contribuíram para a obtenção da aprovação foram os plebiscitos de cinco anos atrás, nos quais os eleitores da Califórnia e do Arizona transformaram em lei estadual a permissão para doentes utilizarem a maconha no tratamento de suas enfermidades.
Após tais propostas terem sido aprovadas, os comitês científicos governamentais do Instituto de Medicina e dos Institutos Nacionais de Saúde informaram que havia pouca evidência de que a maconha tinha utilidade medicinal, mas que estudos rigorosos seriam válidos.
As futuras experiências compararão os efeitos dos cigarros de maconha com os efeitos de cigarros de placebo (nos quais os ingredientes ativos da maconha serão removidos).
Os cigarros de maconha virão de uma plantação da Universidade do Mississipi com a autorização do Instituto Nacional de Abuso de Drogas, disse Richard Doblin, presidente da Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies (Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos), um grupo que defende a pesquisa de usos medicinais de drogas psicoativas. Ele disse que um problema com a nova pesquisa é o fato da maconha do Mississipi ter uma potência muito baixa, um fator que poderá comprometer os efeitos medicinais.
O Marinol, um medicamento aprovado para venda sob prescrição médica que está disponível há anos, contém um ingrediente ativo da maconha. Mas pesquisadores dizem que as plantas naturais contêm muitos agentes psicoativos que não estão presentes no produto comercial. Além disso, disse Abrams, leva horas para que os efeitos das cápsulas possam ser sentidos, enquanto o fumar da maconha produz efeitos em questão de minutos; logo, a cápsula pode não ser a melhor forma de ministrar o medicamento.
Experiências no uso da maconha como estimulante de apetite e na prevenção da náusea foram realizadas nos Estados Unidos até o início dos anos 80. Depois disso, disse Doblin, posições desaprovadoras do governo federal e em agências de pesquisa levaram os cientistas a acreditar que os financiamentos para estudos medicinais da maconha seriam difíceis de serem obtidos.
Mas após os plebiscitos na Califórnia e no Arizona em 1996, a questão passou a ser se o uso médico poderia ser apoiado por evidências científicas.
Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idArea=1&idSubArea=121
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