28 de julho de 2001, O Globo
Zuenir Ventura
A primeira e última vez que experimentei maconha foi em 1968, quando era moda provar de tudo a que não se tinha direito: LSD, haxixe, cocaína e, alguns, até heroína. Fumei e traguei - e amarrei um tremendo bode, como se dizia então. Nunca mais. Em compensação, conheço pessoas daquela época que continuam fumando até hoje numa boa - homens normais, do establishment, com emprego, família. Jamais o fumo os impediu de estudar, trabalhar, ter grana e sucesso.
O mesmo eu poderia afirmar em relação à bebida. Muitos companheiros de adolescência, com os quais tomei em Friburgo o meu primeiro porre de Cuba-Libre, continuam bebendo moderadamente, como eu: uma cervejinha no fim de semana, um uisquinho, um vinho. Já outros viraram alcoólatras e morreram de cirrose.
Tudo isso para dizer que há muita confusão entre uso e dependência, entre curtição e submissão, entre recreação e vício. Nem sempre é a droga que cria a dependência, mas é o candidato a ela que vai buscar sujeição em qualquer vício: alcoolismo, jogo, cigarro etc. Da mesma maneira que o inveterado jogador é capaz de jogar até palitinhos de fósforo, se não houver outra possibilidade, o dependente de drogas vai cheirar cola se não encontrar cocaína e o viciado em cigarro vai catar guimba no chão para dar uma tragada.
A dependência química da droga é hoje considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como doença. Portanto, não adianta colocar a ênfase no sintoma. É preciso tratar da enfermidade, curar o doente, atacar a infecção para fazer baixar a febre. Não é o antitérmico que vai resolver, mas o antibiótico. "Ser dependente de droga não é ter o desejo de usar droga", já disse sabiamente o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira Filho, "é não ter a possibilidade de não usá-las".
O problema é que a sociedade quer combater um inimigo sobre o qual sabe muito pouco - não sabe nem se é inimigo mesmo e como ele age. Desconhece os seus efeitos no organismo, ignora se (ou até que ponto) faz mal e costuma omitir o fato de que as drogas dão prazer. As campanhas insistem nos efeitos nocivos, dizem que elas são perigosas, que matam, mas esquecem que, antes de matar, elas constituem um barato maior do que o medo da morte, para quem está mergulhado na angústia ou no desespero.
A visão que o senso comum tem do problema, impregnada de moralismo e preconceito, foi importada dos Estados Unidos, cuja política de repressão e proibição, de "combate", de "guerra", criou a ilusão de que se pode acabar com as drogas a tiro.
O resultado dessa estratégia é que a repressão não impediu que a maconha tivesse se tornado um dos hábitos de consumo mais difundidos entre a juventude. Sem hipocrisia, é preciso admitir que se trata de uma transgressão que virou norma: nas praias, nos shows, nos festivais, só para citar os lugares públicos.
O que ocorreu no show do Planet Hemp é apenas mais um exemplo dessa política de equívocos. A lei, ou seja, a sociedade, obriga que o pobre do juiz aja. Aí ele vai e tenta impedir que milhares de jovens assistam a um espetáculo que os submeteria a uma apologia das drogas, como se eles fossem lá para aprender a fumar e não porque já fumam.
Outra confusão corrente é a de que todas as drogas são iguais, têm a mesma toxicologia e apresentam o mesmo risco letal, quando já há estudos mostrando que o álcool é das drogas mais lesivas e a maconha, a menos agressiva. No livro "Hemp - O uso medicinal e nutricional da maconha", de Chris Conrad, um trabalho sério que a Editora Record acaba de lançar, o autor cita uma respeitada revista científica para garantir que a maconha não é perigosa para a saúde e que mais cedo ou mais tarde todo mundo vai se render a essa evidência. "A Cannabis, em si, não é um risco para a sociedade", ele escreveu, "mas incorporá-la cada vez mais à clandestinidade pode bem o ser".
Há países experimentando soluções que substituam a repressão pela descriminalização ou pela legalização controlada das drogas. Talvez seja cedo para avaliar os resultados. Uma das dificuldades é que esse projeto tem que ser universal para funcionar. Não adianta liberar numa cidade ou num país, se o vizinho não faz o mesmo e a distribuição continua entregue ao tráfico.
Não sei o que fazer - aliás, eu, o governo e a sociedade. Só quem parece saber mesmo são os traficantes. O país não conseguiu criar para as drogas um programa exemplar como o que desenvolveu contra a AIDS. É um dos mais complicados desafios desse confuso mundo moderno. A única certeza é que a política que aí está é um desastre. Não sei se há outra à mão melhor, mas pior certamente não haverá.
Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idArea=1&idSubArea=79
sábado, 28 de julho de 2001
quarta-feira, 4 de julho de 2001
Blair faz teste para liberar maconha
4 de julho de 2001, O Globo (1º Caderno)
Cassia Maria Rodrigues
Correspondente de O Globo em Londres.
LONDRES. Lambeth, distrito de Brixton, no sul de Londres, nunca atraiu turistas. Pelo contrário, sua fama de bairro violento costuma afugentá-los. Com uma já polêmica iniciativa do governo Tony Blair, em vigor desde ontem, provavelmente em pouco tempo o bairro será invadido por levas de turistas interessados em outro tipo de viagem.
É o que profetizam os setores mais conservadores da sociedade inglesa, depois da decisão do primeiro-ministro de abolir a prisão em Lambeth para quem for flagrado fumando maconha.
Habitado, em sua maioria, por imigrantes africanos e jamaicanos, o bairro serve de cenário para o projeto experimental - com a validade de seis meses - do governo Blair. Se for bem sucedido, ele será estendido a outras localidades inglesas com as mesmas características de Lambeth.
O governo alega ser um despropósito desperdiçar o tempo da Scotland Yard, a polícia metropolitana de Londres, e rios de dinheiro com a tramitação na Justiça dos processos envolvendo os portadores da droga que, alegam as autoridades, não representam real perigo para a sociedade. A burocracia com o flagrante e a prisão de usuários de maconha dura, em média, dez horas. Agora, o policial gastará apenas dez minutos com o flagrante. Em vez de o usuário ser preso, a maconha será apreendida.
Quem for apanhado fumando maconha em Lambeth escapará da prisão, e não da advertência formal. Mas isso não basta para a oposição conservadora. A nova legislação em vigor, segundo Ann Widdecombe, ministra do Interior do gabinete paralelo conservador, representa, de fato, um grande passo na direção da descriminalização da droga.
Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idArea=1&idSubArea=78
Cassia Maria Rodrigues
Correspondente de O Globo em Londres.
LONDRES. Lambeth, distrito de Brixton, no sul de Londres, nunca atraiu turistas. Pelo contrário, sua fama de bairro violento costuma afugentá-los. Com uma já polêmica iniciativa do governo Tony Blair, em vigor desde ontem, provavelmente em pouco tempo o bairro será invadido por levas de turistas interessados em outro tipo de viagem.
É o que profetizam os setores mais conservadores da sociedade inglesa, depois da decisão do primeiro-ministro de abolir a prisão em Lambeth para quem for flagrado fumando maconha.
Habitado, em sua maioria, por imigrantes africanos e jamaicanos, o bairro serve de cenário para o projeto experimental - com a validade de seis meses - do governo Blair. Se for bem sucedido, ele será estendido a outras localidades inglesas com as mesmas características de Lambeth.
O governo alega ser um despropósito desperdiçar o tempo da Scotland Yard, a polícia metropolitana de Londres, e rios de dinheiro com a tramitação na Justiça dos processos envolvendo os portadores da droga que, alegam as autoridades, não representam real perigo para a sociedade. A burocracia com o flagrante e a prisão de usuários de maconha dura, em média, dez horas. Agora, o policial gastará apenas dez minutos com o flagrante. Em vez de o usuário ser preso, a maconha será apreendida.
Quem for apanhado fumando maconha em Lambeth escapará da prisão, e não da advertência formal. Mas isso não basta para a oposição conservadora. A nova legislação em vigor, segundo Ann Widdecombe, ministra do Interior do gabinete paralelo conservador, representa, de fato, um grande passo na direção da descriminalização da droga.
Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idArea=1&idSubArea=78
sexta-feira, 22 de junho de 2001
No caminho certo
22 de junho de 2001, Correio Braziliense
Marina Oliveira
Os brasileiros chegaram a um consenso importante sobre o uso de drogas. A cadeia não é lugar para dependente. A idéia parece estar de acordo com o senso comum vigente, mas demorou dez anos para ter a possibilidade de virar lei, tamanha a resistência encontrada na sociedade.
O projeto de lei do deputado Elias Murad (PSDB-MG), apresentado pela primeira vez à Câmara em 1991, deverá ser aprovado pelo Senado até o final deste mês, com as bênçãos dos partidos governistas e da oposição.
O texto da agora quase lei contém inúmeros remendos feitos ao longo da última década para satisfazer os diferentes discursos antidrogas do país. A nova legislação virá substituir a chamada Lei dos Tóxicos, de 1976.
Hoje, a Justiça faz a diferença entre o usuário e o traficante com base na quantidade de entorpecentes apreendida. As punições reservadas, no entanto, tratam os dois como infratores, ainda que mereçam punição distinta.
O projeto de Murad retrata o dependente como uma pessoa que precisa de tratamento médico e assistência psicológica do Estado e também da família. Prevê, inclusive, a internação em regime ambulatorial ou estabelecimento hospitalar como parte da pena para quem for pego com tóxicos. A posição do secretário nacional antidrogas, general Alberto Cardoso, sobre o assunto é emblemática dessa mudança de postura da sociedade. ''Não há dúvida de que a droga dá prazer, mas faz mal. Por isso, não podemos ficar reféns de princípios morais que ainda não foram testados pela prática'', defendeu na abertura do seminário “Drogas, um problema de saúde pública”, promovido ontem pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.
A posição do general tem um aliado inusitado, o deputado federal Fernando Gabeira (PV-RJ), conhecido defensor da liberação da maconha no país. ''O deputado Elias Murad e eu continuamos brigando muito, mas felizmente chegamos ao consenso de que cadeia não é lugar para dependente'', diz Gabeira.
O deputado eleito em grande parte ''por pessoas bem-sucedidas, com o hábito de fumar maconha'' (como ele mesmo diz) também encontrou um aliado impensável nessa discussão: a Igreja Católica. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que este ano escolheu o problema da droga como tema de sua campanha da fraternidade vem tentando trazer os usuários para o tratamento e nunca para a cadeia. ''Temos de promover a dignidade humana e evitar ao máximo a exclusão social e os dependentes químicos estão incluídos nisso'', afirma Luís Antônio Souza, da CNBB.
Isso não significa que as drogas deixaram de ser um tema espinhoso. O próprio projeto de lei de Elias Murad não explica quem irá bancar o tratamento dos usuários. O nome do Sistema Único de Saúde (SUS) responsável por garantir o atendimento à população sequer foi mencionado no texto. A redação também mantém visões preconceituosas sobre os dependentes químicos incluindo entre as penas previstas a internação em hospitais psiquiátricos. Como se consumidores de entorpecentes tivessem distúrbios mentais. O que não diminui a importância de tirar meninos de 18 anos, dependentes químicos da cadeia.
Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idArea=1&idSubArea=77
Marina Oliveira
Os brasileiros chegaram a um consenso importante sobre o uso de drogas. A cadeia não é lugar para dependente. A idéia parece estar de acordo com o senso comum vigente, mas demorou dez anos para ter a possibilidade de virar lei, tamanha a resistência encontrada na sociedade.
O projeto de lei do deputado Elias Murad (PSDB-MG), apresentado pela primeira vez à Câmara em 1991, deverá ser aprovado pelo Senado até o final deste mês, com as bênçãos dos partidos governistas e da oposição.
O texto da agora quase lei contém inúmeros remendos feitos ao longo da última década para satisfazer os diferentes discursos antidrogas do país. A nova legislação virá substituir a chamada Lei dos Tóxicos, de 1976.
Hoje, a Justiça faz a diferença entre o usuário e o traficante com base na quantidade de entorpecentes apreendida. As punições reservadas, no entanto, tratam os dois como infratores, ainda que mereçam punição distinta.
O projeto de Murad retrata o dependente como uma pessoa que precisa de tratamento médico e assistência psicológica do Estado e também da família. Prevê, inclusive, a internação em regime ambulatorial ou estabelecimento hospitalar como parte da pena para quem for pego com tóxicos. A posição do secretário nacional antidrogas, general Alberto Cardoso, sobre o assunto é emblemática dessa mudança de postura da sociedade. ''Não há dúvida de que a droga dá prazer, mas faz mal. Por isso, não podemos ficar reféns de princípios morais que ainda não foram testados pela prática'', defendeu na abertura do seminário “Drogas, um problema de saúde pública”, promovido ontem pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.
A posição do general tem um aliado inusitado, o deputado federal Fernando Gabeira (PV-RJ), conhecido defensor da liberação da maconha no país. ''O deputado Elias Murad e eu continuamos brigando muito, mas felizmente chegamos ao consenso de que cadeia não é lugar para dependente'', diz Gabeira.
O deputado eleito em grande parte ''por pessoas bem-sucedidas, com o hábito de fumar maconha'' (como ele mesmo diz) também encontrou um aliado impensável nessa discussão: a Igreja Católica. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que este ano escolheu o problema da droga como tema de sua campanha da fraternidade vem tentando trazer os usuários para o tratamento e nunca para a cadeia. ''Temos de promover a dignidade humana e evitar ao máximo a exclusão social e os dependentes químicos estão incluídos nisso'', afirma Luís Antônio Souza, da CNBB.
Isso não significa que as drogas deixaram de ser um tema espinhoso. O próprio projeto de lei de Elias Murad não explica quem irá bancar o tratamento dos usuários. O nome do Sistema Único de Saúde (SUS) responsável por garantir o atendimento à população sequer foi mencionado no texto. A redação também mantém visões preconceituosas sobre os dependentes químicos incluindo entre as penas previstas a internação em hospitais psiquiátricos. Como se consumidores de entorpecentes tivessem distúrbios mentais. O que não diminui a importância de tirar meninos de 18 anos, dependentes químicos da cadeia.
Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idArea=1&idSubArea=77
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