sábado, 1 de maio de 2004

Legalizar as drogas

Maio de 2004, Caros Amigos nº 86

José Arbex Jr.
Jornalista.

Os chamados entorpecentes são um problema de saúde pública, não de polícia. A ilegalidade das drogas só serve para proteger a lavagem de dinheiro.

“A diferença entre a droga ilegal e a legal é que uma é ilegal”, disse o ministro Nilmário Miranda (Secretaria Especial de Direitos Humanos), em Porto Alegre, no dia 22 [de abril], ao defender a descriminalização do consumo de drogas no país. “Ninguém cogita colocar na cadeia o consumidor de álcool, mas a bebida também provoca a violência e crimes, tanto ou mais que as drogas ilegais. Como o consumo de álcool e de tabaco é tratado como caso de saúde pública, entendo que o consumo de drogas ilegais também deve ser tratado da mesma maneira, não como crime”, disse o ministro. A declaração não causou grandes repercussões, mas aponta o único caminho efetivo de combate às drogas.

O senso comum, reforçado pela mídia, diz que o narcotráfico é uma “questão de polícia”. Não é. O narcotráfico movimenta por ano, no mundo, algo em torno de 500 bilhões de dólares, quantia equivalente ao produto interno bruto (PIB) brasileiro. Esse dinheiro não está na Rocinha, mas em circulação nos meios financeiros internacionais, incluindo os bancos e as bolsas de valores. As regras de sigilo bancário e a tradição de segredo que cerca os negócios financeiros são o caldo de cultura para o florescimento dos vínculos entre as máfias e os bancos. Obviamente, é muito raro que essas instituições permitam o “vazamento” de dados estabelecendo sua conexão com o crime organizado.

Bancos envolvidos

Uma dessas ocasiões aconteceu em abril de 1991, quando o banqueiro saudita Gaith Pharaon, à época um dos quinze homens mais ricos do mundo, declarou, em Buenos Aires, que todos os grandes bancos lavam narcodólares, incluindo instituições como o First Bank of Boston e o Crédit Suisse. Pharaon se ressentia do fato de que apenas o seu Bank of Credit and Commerce International (que seria o estopim de um grande escândalo financeiro, em 1992) fosse citado com freqüência por suas vinculações com o tráfico. Pharaon era também dono de uma cadeia de supermercados na França, acionista da rede mundial do Club Mediterranée e da rede de hotéis Hyatt.

As organizações criminais se ajustaram ao processo de globalização da economia neoliberal, o qual implica um fluxo livre de capitais através de sistemas informatizados. As organizações criminosas atuais articulam vínculos internacionais com capacidade de influir nos rumos da política financeira de um país. Nos locais em que atuam, formam “Estados dentro de Estados”, como na Colômbia e na Rússia, e agora, evidentemente, no Brasil. Criam grupos que reconhecem apenas suas próprias leis, fortemente municiados com armas de tecnologia avançada e dinheiro suficiente para corromper juízes, políticos (eventualmente, até presidentes), além de comprar jornais, emissoras de rádio e televisão.

A evidência mais dramática do alcance das “novas máfias”, até agora, foi dada nos anos 80, pela Operação Mãos Limpas, na Itália, durante a qual a investigação levada a cabo pelo Poder Judiciário prendeu ou indiciou altas personalidades, incluindo magistrados, ministros de Estado, senadores e boa parte da cúpula política, em particular honrados senhores da Democracia Cristã. Coube ao principal expoente da operação, o juiz Giovanni Falcone, propor a realização de reuniões internacionais contra o crime organizado, no quadro da ONU. A idéia, proposta por Falcone pouco antes de seu assassinato, em maio de 1992, decorreu da percepção de que nenhum país poderia, isoladamente, combater o poder avassalador do crime organizado.

No Brasil, é impossível calcular com exatidão o impacto financeiro e político do dinheiro “sujo”. Uma das razões para isso foi explicitada, no início dos anos 90, durante o escândalo Collor-PC Farias: as autoridades não tinham, à época, o menor controle sobre a movimentação bancária. Essa situação foi agravada pelas leis aprovadas no início de 1992 pelo presidente Collor, permitindo que capitais estrangeiros – incluindo, obviamente, os narcodólares – comprassem títulos e ações nas bolsas de valores do país. Depois disso, houve um início de processo de “moralização” do sistema, principalmente no setor do Fisco, mas que não conseguiu impedir a prática de megafraudes, como a do Banestado, responsável pela exportação ilegal de bilhões de dólares. E mais: as comissões parlamentares de inquérito (CPIs) sobre narcotráfico e sistema financeiro nunca chegaram às últimas conseqüências. Foram convenientemente interrompidas, quando os seus caminhos implicaram até a patente de coronel da Polícia Militar.

Descriminalização

Dado esse quadro geral, um dos caminhos mais óbvios para o controle do narcotráfico é aquele apontado por Nilmário Miranda: a descriminalização das drogas, ponto de vista defendido até por intelectuais conservadores, como o economista Milton Friedman, da Escola de Chicago. A sua eventual legalização, numa etapa mais avançada, implicaria a sua taxação pelo governo, com uma arrecadação extra que poderia construir hospitais, escolas e centros de reabilitação; permitiria o controle dos laboratórios, que teriam de garantir a pureza de seu produto; e possibilitaria a sindicalização de camponeses que, muitas vezes, são obrigados a trabalhar em condições de escravidão. Mais ainda: a legalização cortaria uma das fontes de renda da rede de policiais e políticos que vivem de propinas e extorsão.

Mas a legalização, ou mesmo a descriminalização, não interessa à Casa Branca. Da boca para fora, Washington é o “inimigo número 1” das drogas; no mundo real, a CIA (serviço secreto) patrocina e promove o narcotráfico, além de usar os narcodólares para armar, treinar e financiar grupos terroristas. Esse esquema permitiu à CIA, nos anos 80, organizar a Al Qaeda de Osama bin Laden, quando interessava que fundamentalistas muçulmanos combatessem o Exército Vermelho no Afeganistão. Esse mesmo esquema armou o Exército de Libertação do Kosovo (ELK), nos anos 90, quando Bill Clinton atacou a Sérvia, tradicional aliada da Rússia na Europa Central. Em seu recente livro Guerra e Globalização – antes e depois de 11 de Setembro de 2001 (editora Expressão Popular), o professor canadense Michel Chossudovsky produz abundância de evidências sobre isso tudo.

A “guerra ao narcotráfico” também permite aos Estados Unidos enviarem as suas tropas à Amazônia, em vasta operação militar de reconhecimento e ocupação da maior área de reserva biológica e mineral do planeta. A “guerra suja” armada pela Casa Branca na Colômbia e no Equador, conhecida como Plano Colômbia (agora, Iniciativa Andina), promove o deslocamento de nações indígenas de áreas que são de interesse das transnacionais; na Colômbia, causa uma imensa tragédia social: cerca de 2 milhões de camponeses expulsos de seus lares pela violência abarrotam as periferias das cidades. No Brasil, a “guerra ao tráfico” possibilita ao FBI e à DEA (agência de combate às drogas) a criação de mecanismos de controle da Polícia Federal e dos serviços de informação brasileiros, como demonstra, exaustivamente, o jornalista Bob Fernandes, na série de denúncias feitas na Carta Capital.

Direito de opção

Descartada a via da legalização das drogas, só resta a do controle policial e repressão. Mas cada nova medida repressiva tomada pelo Estado apenas gera novas respostas do lado das máfias, ou através de atos violentos, ou com novos “investimentos” em subornos e corrupção, ou ainda mediante a adoção de novas tecnologias (os grupos mafiosos são tão sofisticados, que já criaram a maconha transgênica, capaz de exalar um odor que engana os cães rastreadores da polícia). No meio disso tudo, perplexo e angustiado, está o cidadão comum. A Rocinha é um resultado desse processo.

A alternativa é dar aos cidadãos o direito de decidir livremente sobre o uso ou não das drogas. O Estado tem obrigação de oferecer todos os meios ao seu alcance para esclarecer os cidadãos sobre as eventuais conseqüências do consumo de narcóticos, bem como oferecer meios médicos, sociais e psicológicos, se necessário, para recuperar pacientes vitimados por qualquer espécie de droga – incluindo o tabaco e o álcool. A defesa do direito individual de opção, combinada com a exigência de que o Estado cumpra com suas obrigações democráticas, remete à questão maior colocada pelo exercício da cidadania.

Fonte: http://carosamigos.terra.com.br/da_revista/edicoes/ed86/jose_arbexjr.asp

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