28 de abril de 2004, ISTOÉ Online nº 1803
Há quem defenda a legalização e há quem diga que comprar um baseado alimenta a violência do crime organizado. Afinal, qual é a responsabilidade de quem usa drogas?
Liana Melo e Ricardo Miranda
Colaboraram: Lia Bock, Madi Rodrigues e Francisco Alves Filho.
Aos 19 anos, fumou o primeiro baseado. Um ano depois, subia o morro para comprar uma trouxinha. Hoje, Hilda, como pediu para ser identificada, publicitária bem-sucedida, 41 anos, casada, se define como usuária recreativa e se abastece sem sair de casa, usando um teledrogas. Vinte anos mais novo, o estudante Daniel Edde não conhece Hilda, mas freqüentam a mesma praia: o Arpoador, um dos mais bonitos cartões-postais do Rio de Janeiro. Daniel nunca experimentou drogas, mas vive cercado por usuários. “A droga está em todo lugar e quem usa está alimentando a violência do tráfico”, discursa ele, esquentando uma polêmica que cresceu nos últimos dias. “Quem alimenta a violência é o Estado, que mantém a droga na ilegalidade”, opina Hilda. A campanha que responsabiliza os usuários pelo financiamento do arsenal dos traficantes ganhou fôlego com a guerra dos bandidos pelos pontos-de-venda de drogas na favela da Rocinha. O ator Marcello Antony entrou como coadjuvante neste bate-boca, ao ser flagrado em Porto Alegre comprando maconha turbinada. Na UTI de uma clínica em Buenos Aires, o ex-craque argentino Diego Maradona está internado com suspeita de overdose. “Temos que acabar com a hipocrisia e tirar nossas máscaras. Os pequenos usuários sustentam o tráfico”, acusa o ator Felipe Camargo, ex-dependente. A polêmica está longe do fim.
“Não acredito em campanhas na tevê, em passeatas com camisetas brancas, em abraços simbólicos, isso tudo é bobagem. Acredito em lei, cana dura”, impacienta-se o cineasta Arnaldo Jabor, que em sua última coluna no jornal O Globo, intitulada “O crime no Rio vive do nariz dos otários”, diz que a violência começa e acaba “no nariz das classes dominantes”. Oito em cada dez compradores de drogas, segundo estatísticas oficiais, são usuários eventuais ou recreativos, cada vez mais jovens, meninos e meninas entre 11 e 12 anos que começam a experimentar. Os demais são dependentes químicos, inimputáveis e passíveis de tratamento. Chefe da Secretaria Nacional Antidrogas do governo Lula, o general da reserva Paulo Roberto Yog acredita em campanhas. A política nacional antidrogas, diz ele, recomenda que o usuário seja conscientizado de que, ao usar entorpecentes, contribui com os cofres do crime organizado. “Mas conscientizar não é responsabilizar”, ressalva. Por isso, o governo está capacitando professores da rede pública e membros das comissões de prevenção de acidentes de trabalho para lidar com usuários nas escolas e empresas.
Campanhas desse tipo não são consenso. Ex-secretário nacional de Segurança Pública, o coronel da reserva da PM paulista José Vicente da Silva Filho critica a estratégia. “As campanhas passam mais culpa do que responsabilidade. E a repressão é de uma penúria de estarrecer. Como pode entrar tanta droga e arma neste País?”, pergunta. A argumentação é parecida com a do ex-secretário nacional Antidrogas e presidente do Instituto Giovanni Falcone de Ciências Criminais, juiz Walter Fanganiello Maierovitch. Ele acha surrado o conceito de que o usuário é responsável porque sem ele não haveria oferta da droga. “Essa argumentação é de um cinismo grotesco. Eu poderia dizer, por outro lado, que sem oferta também não haveria demanda. Então, o que é melhor: combater o tráfico ou o usuário?”
O advogado carioca Alexandre Dumans concorda com Maierovitch: “Não há nada mais parecido com a inquisição medieval”, afirma. Na sua opinião, culpar os usuários pela violência é uma espécie de “embuste retórico”. Inoperante para combater o comércio de entorpecentes, diz ele, o poder público atira no culpado que consegue enxergar. Como o usuário é o elo mais fraco, nada mais cômodo do que responsabilizá-lo. “O usuário é tratado como o médico e o monstro”, argumenta o advogado Roberto Busato, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Em seu dia de monstro, Marcello Antony foi flagrado no sábado 17 comprando 100 gramas de maconha misturada com produtos químicos na porta de um hotel em Porto Alegre. Passou seis horas detido, mas foi solto pelo juiz Mauro Borba, que o enquadrou por porte de droga. “O usuário não é um inocente, ele financia a violência do tráfico”, acredita o magistrado. O porte é definido levando-se em conta as circunstâncias da prisão, e não apenas a quantidade apreendida. A condenação varia de seis meses a dois anos, sendo normalmente convertida em penas alternativas. Em breve, o porte deixará até de ser caso de polícia. Um projeto de lei aprovado na Câmara e tramitando no Senado, com o apoio do governo federal, limita a condenação dos usuários a penas alternativas. “Na prática muda pouco; hoje já não existem usuários presos no Brasil”, relata o juiz Flávio Dino, coordenador do Juizado Especial Federal em Brasília e diretor da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe). Se a responsabilidade jurídica é pacífica, pondera Dino, a grande questão é aferir a responsabilidade social de quem consome drogas.
Diretora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas (Nepad), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Maria Thereza de Aquino está convencida de que os usuários devem ser responsabilizados. “Mas é muito difícil para essa garotada associar o seu baseado com a arma de fogo do bandido”, diz ela. No caso dos adolescentes, que sobem os morros para comprar suas trouxinhas, ela responsabiliza os pais, que deixam vago o lugar da autoridade dentro de casa. A psicóloga Fernanda Maria Amaral concorda que falta pulso aos pais. “Depois de um período de grande repressão, houve uma liberação exagerada”, explica Fernanda, que é coordenadora do Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade Gama Filho, no Rio. “Fumar ou cheirar droga não é sinal de rebeldia, de personalidade. Pai não tem que fumar maconha junto com filho para impedir que fume na rua. Não pode fumar e pronto, tem que ter limite. Pai não pode ter medo de dizer não. Palmadinha não faz mal, tomei palmadas e nunca usei drogas.”
Acostumados a enfrentar diariamente o tráfico, policiais cariocas vêem a questão com um pragmatismo quase inesperado. “O Rio colhe o fruto da sua infância abandonada. Os abastados cresceram sem limites, os pobres sem perspectivas”, concorda a inspetora Marina Magessi, coordenadora de Inteligência da Secretaria de Segurança do Estado do Rio. “Hoje, quem manda no Rio são esses moleques viciados desde criança, sem estrutura familiar, que brincam de guerra. Quem compra deles não entendeu ainda que toda coca cheirada aqui tem sangue no meio”, afirma. Marina reconhece que nem a polícia tem mais a ilusão de eliminar a venda de drogas: “O tráfico existe desde que o mundo é mundo, queremos acabar é com a violência causada por ele.” Segundo a Polícia Civil, 80% dos crimes do Rio, excluindo os passionais, têm raízes no tráfico de drogas.
Lados da guerra
Os anos 60 – época em que fumar maconha era uma transgressão sem conseqüências – seriam bem diferentes com o poderio bélico dos atuais narcotraficantes. “Como numa guerra real, onde há que se decidir de que lado se está, é urgente as pessoas assumirem responsabilidades e pararem de transferir os problemas”, afirma o poeta e escritor Affonso Romano de Santanna. “Na atual situação, o usuário, seja em que escala for, está financiando o tráfico, financiando a compra da bala que o matará ou a alguém de sua família e ajudando a fechar a porta de sua loja”, opina. O poeta e compositor Jorge Mautner cresceu sob a inspiração dos poetas beatniks que pregavam a busca de novas experiências, e segue hoje em outra direção. No CD Eu não peço desculpa, gravado em parceria com Caetano Veloso, incluiu a música Coisa assassina, cuja melodia é assinada pelo ministro da Cultura, Gilberto Gil. “Essa questão das drogas está adquirindo aspecto de guerra civil”, lamenta. A letra da música é clara: “Maldita seja essa coisa assassina / Que se vende em quase toda esquina / E que passa por crença, ideologia, cultura, esporte / E no entanto é só doença, monotonia da loucura, e morte“. Mautner concorda que quem consome drogas deve refletir sobre o destino do dinheiro que ele entrega ao tráfico. “Alguns artistas importantes que usam drogas acham que a solução seria a liberação do uso. Acho que seria um passo muito temeroso.” Cristina Maria Britis, que coordena um programa de prevenção a uso de drogas na PUC, acha que a liberalização do uso de entorpecentes pode acontecer, desde que a sociedade se prepare. “Só assim as pessoas poderão fazer escolhas mais autônomas com relação ao consumo de drogas”, pondera. Coordenadora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, a juíza aposentada Maria Lúcia Karam também acha que a proibição é a mãe de todas as violências. “Quem patrocina a violência é o Estado com sua política proibicionista.”
O compositor e rapper Marcelo D2, que já foi preso várias vezes sob acusação de fazer apologia das drogas, repele a idéia de responsabilizar os usuários. “Isso é uma maneira de tirar a culpa do governo”, enxerga D2, distinguindo o comércio do produto vendido. “Essa campanha é uma ignorância, a violência não tem nada a ver com drogas. Tem a ver com o tráfico de drogas, que é um negócio”. Marcelo D2 é outro que acha ineficazes as mensagens veiculadas na tevê que jogam a culpa na cara do consumidor de drogas. “A primeira vez que vi um desses anúncios, estava fumando e pensei: não vem jogar essa culpa pra cima de mim. Fica parecendo que o usuário é a favor do traficante, mas não é.” Inspirado na liberal Holanda, o artista importou uma sugestão radical para colocar um fim na tríade drogas-tráfico-violência: legalizar as drogas e transferir para o governo a tarefa de controlar o negócio.
O escritor Luiz Carlos Maciel, que viveu a contracultura – movimento de contestação e apologia da ideologia hippie –, acha que a discussão é uma espécie de “demonização neurótica”. Defensor contumaz da liberalização das drogas, o escritor acha que o enorme volume de dinheiro gerado pelo tráfico deveria estar pagando imposto, e não sendo sonegado. “As autoridades são as maiores responsáveis por essa violência porque estão permitindo que uma indústria muito poderosa prospere ilegalmente”, opina. Outra figurinha carimbada em defesa do legalize, o deputado federal sem partido Fernando Gabeira faz coro: “Tudo isso é delirante. Os índices de acidentes de trânsito causados pelo álcool são altíssimos, provocam muitas mortes, mas as campanhas continuam tratando o motorista alcoolizado como vítima, e não como culpado”, compara.
Fonte: http://www.terra.com.br/istoe/1803/brasil/1803_capa_droga_01.htm
quarta-feira, 28 de abril de 2004
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