segunda-feira, 3 de maio de 2004

O Marcelo e o Dudu

3 de maio de 2004, ÉPOCA

Maitê Proença

Quer dizer que o Dudu, 50 homicídios nas costas, recebe indulto de Natal pra visitar a mulher e os filhinhos, enquanto meu colega Marcelo Anthony vira pauta de programas televisivos de quinta categoria, onde débeis mentais discutem se ele, acusado de comprar maconha, será má influência para o filho recém-adotado.

Em primeiro lugar, se existe uma lei para separar usuários de drogas de seus filhos, como é que a "Justiça" dá um mole desses pro Dudu, traficante de tóxico em quantidades industriais, que ainda por cima mata, queima e esfola sem piedade, em quantidades igualmente industriais? Dudu fugiu e está por aí fazendo um estardalhaço bélico pelos morros da cidade, sendo péssima influência, não só para os dele, como para todos os nossos filhos confinados pelo medo.

E o Marcelo, vocês conhecem? Eu conheço. O rapaz leva a vida mais careta que o gerente do meu banco. Concordo que marcou uma touca, e no pior momento possível, mas, quanto ao menino que ele e a Mônica adotaram, e que foi assunto nas rádios e programas de auditório de nível térreo por vários dias, a conversa é muitíssimo diferente. Esta criança chegou a eles nervosa, hiperativa e, aos 8 meses, não sabia sequer sentar. Com aulas de natação, orientação especializada, carinhos e quilos de amor, Francisco estava andando dois meses depois. Eu vi a transformação! Hoje, com 1 ano e meio, o que se percebe é uma criança adaptada, calma e feliz. Esse menino foi pinçado do abandono, pelo amor e pela dedicação dos pais com que a sorte lhe presenteou.

Então quem são essas criaturas com seus programas de futrica pra deliberar sobre a habilidade de um pai trabalhador, idôneo e amoroso em criar seu filho? O que é que essa gente entende da vida, e com que categoria moral vem fazer julgamentos de valor, essas pessoas que saíram do anonimato outro dia Deus sabe como? Marcelo cometeu um deslize, se é que ele estava mesmo comprando maconha (por enquanto o que houve foi uma acusação), e foi preso por falta de sorte, porque se gostasse de chope estaria num boteco bebendo com os amigos e ninguém ia enfiá-lo numa penitenciária por isso. Aliás, está cheio de pai de família que enche a lata de droga legalizada no almoço de domingo, sai dirigindo doidão com os filhos no banco de trás e fica tudo por isso mesmo.

Não faço aqui um manifesto a favor dos maconheiros do Brasil. Acho até que, nesse momento, o usuário de droga ilegal deveria interromper seu uso até as coisas mudarem. Oitenta por cento dos consumidores usam droga de forma recreativa e, não tendo o vício, podem, se quiserem, não enfiar o pó malhado no corpo. Desnorteie sua caretice intrínseca, companheiro, tomando um Lexotan ou uma cachaça e, na hora da lucidez, use a cachola pra discutir a legalização da maconha, por exemplo. Queiram ou não queiram os mal informados, a maconha é uma droga leve, e por isso seria um bom ponto de partida para a experiência de transformação social que se mostra necessária. Você que não gosta dessas coisas, pense um pouco. As pessoas consomem drogas desde o início dos tempos, todo continente tem uma erva, uma bebida ou uma planta que altera a consciência e afasta as tensões dia a dia. Sempre houve e haverá quem faça uso, e a proibição não impede que isso aconteça. É verdade que as drogas que mais destroem são justamente as legalizadas, e que 50% das mortes violentas ou acidentais no Brasil envolvem uso de álcool. Outro dado surpreendente é que a maior aflição das indústrias tabagísticas não é com processos por doenças relacionadas ao fumo, mas com o contrabando de cigarros importados ilegalmente, mostrando que o problema do tráfico também não se interrompe necessariamente com a legalidade. A questão é complexa e exige uma discussão ampla, sem os preconceitos de praxe. Minha humilde opinião, no entanto, é que as leis que hoje proíbem deveriam restringir-se a impor limites e controlar a venda, para que o acesso não seja facilitado a crianças, adolescentes e pessoas com quadros confirmados de dependência, como ocorre agora na era do fascínio pelo proibido. São R$ 40 milhões movimentados semanalmente com o comércio de entorpecentes, só na Favela da Rocinha! Toneladas de maconha estão incluídas aí, dando lucro pra traficante fazer guerra na cidade! O bebum paga imposto, o fumante de cigarro e a dona de casa também. Eu e você pagamos. Nós construímos as escolas, os hospitais e suamos a camisa por uma paz social que não vem nunca. Talvez tenha chegado a hora de botar essa gente do morro e do asfalto, os que vendem e os que usam, pra contribuir também.

Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT721856-2813,00.html

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