25 de março de 1998, ISTOÉ
A juíza carioca da Justiça Militar, Maria Lúcia Karam, 48 anos, esteve em São Paulo para participar da 9ª Conferência Internacional sobre a Redução de Danos Causados pelas Drogas. Tem como credenciais treze anos de atuação em Varas Criminais e da Família no Rio de Janeiro. Defende a total descriminalização do porte, uso e comércio de drogas. Na quinta-feira, 19, falou com ISTOÉ:
ISTOÉ – Por que a senhora defende a descriminalização das drogas?
Maria Lúcia – A proibição do consumo fere o princípio constitucional da liberdade individual. A liberdade individual implica o próprio direito de uma pessoa fazer mal a si mesma.
ISTOÉ – Um adolescente de 13 anos que use drogas sabe o que é autodestrutivo ou não para ele?
Maria Lúcia – Sim.
ISTOÉ – A proibição é o melhor controle?
Maria Lúcia – É um controle perverso. A ilegalidade traz violência e corrupção.
ISTOÉ – Se liberar, como seria a comercialização?
Maria Lúcia – Regulada pelo mercado e sujeita à livre concorrência. A quantidade e os locais de venda é que teriam de ser limitados, e a propaganda, proibida. Isso já deveria acontecer com o álcool e o tabaco. O Ronaldinho anunciando “a número um” não dá, né?
ISTOÉ – A descriminação vale para maconha, cocaína, crack, heroína, etc.?
Maria Lúcia – Todas devem ser liberadas porque o problema não é a droga em si, mas a relação do indivíduo com ela. Pode-se usar drogas recreativamente ou não.
ISTOÉ – A senhora não acha que a questão das drogas extrapola o controle sobre o próprio corpo?
Maria Lúcia – Descontrolar-se faz parte da liberdade. Só que se o descontrole faz alguém buscar as drogas, esse alguém deve ser tratado. Não adianta prender ou internar. Tem de tratar a origem do descontrole.
Um kit básico com seringa descartável, água destilada, hipoclorito de sódio (água sanitária), algodão embebido em água e recipiente para diluição vai ser distribuído a usuários de drogas injetáveis do Estado de São Paulo num programa de prevenção à AIDS. Isso garante material esterilizado, sem o risco de contaminação. A nova lei foi regulamentada no sábado, 14, um dia antes da abertura da conferência da qual Maria Lúcia participou juntamente com 800 especialistas de 50 países. O custo para o Estado de um dependente dentro de um programa de troca de seringas é de US$ 150 por ano. Um doente de AIDS custa entre US$ 12 mil e US$ 25 mil anualmente.
Wilson Roberto Gonzaga da Costa (diplomado pela Universidade de São Paulo) é psiquiatra há duas décadas. Ele acredita que o chá de ayahuasca, popularizado pela seita do Santo Daime, ajuda o dependente a livrar-se das drogas. Costa tomou contato com o chá há 16 anos e desde então o toma regularmente, sempre num contexto ritualístico. Afirma que nesses anos viu muitas pessoas mudarem suas vidas devido ao uso do chá e acredita que ele tem o "poder de cura". Na última semana o Conselho Federal de Medicina ameaçou cassar o registro de Costa caso fossem confirmadas as notícias de que ele estaria usando o Daime para tratar mendigos do centro de São Paulo. "Apenas faço um trabalho social com mendigos do bairro de Santa Cecília. Não se trata de um tratamento", diz ele.
ISTOÉ – O Daime cura dependentes?
Wilson Costa – Cura. Não tenho dúvidas sobre isso. No Peru existe um centro de tratamento de usuários de drogas que utiliza o chá de ayahuasca com essa finalidade.
ISTOÉ – No Brasil o chá só é liberado para uso religioso. O senhor está tratando dependentes com o chá?
Wilson Costa – Eu não estou fazendo um tratamento. O chá não pode ser usado fora de um contexto ritualístico. E eu sou um médico e respeito os princípios éticos da minha profissão.
Fonte: http://www.terra.com.br/istoe/semana/148610f.htm
quarta-feira, 25 de março de 1998
quarta-feira, 25 de fevereiro de 1998
Dos males, o menor
25 de fevereiro de 1998, ISTOÉ
Relatório censurado pela OMS afirma que a maconha é menos prejudicial do que o tabaco e o álcool.
Carla Gullo e Peter Moon
Colaboraram: Rachel Mello (DF), Francisco Alves Filho e Paulo César Teixeira (RJ), Bruno Weis, Ivan Padilla, Luísa Alcalde, Luiza Villaméa, Marta Góes, Norton Godoy, Roberto Comodo, Patrícia Andrade e Rita Moraes (SP).
A Organização Mundial da Saúde (OMS), em Genebra, pediu, em 1992, aos médicos do seu Programa de Abuso de Substâncias (PSA), que elaborassem o mais completo relatório sobre o consumo e os efeitos médicos e psicológicos da maconha. O objetivo era produzir a palavra final sobre o assunto. Para escrevê-lo, encomendaram relatórios a 50 especialistas de todo o mundo, entre eles farmacologistas, psiquiatras, químicos, pneumologistas e cardiologistas. Um documento deveria fazer um raio-x completo da planta Cannabis sativa, o cânhamo, estabelecendo até o último detalhe tudo o que a ciência conhece sobre sua composição química e seu principal princípio ativo, o THC (tetrahidrocanabinol), responsável pela sensação de prazer dos consumidores. Foi feito um minucioso levantamento para cada aspecto dos efeitos da droga sobre o organismo: sua influência sobre o batimento cardíaco e o fluxo sanguíneo, o modo como afeta os pulmões e as vias respiratórias, os sintomas mais agudos experimentados pelos usuários e os efeitos psicológicos decorrentes do uso prolongado. Um dos relatórios, escrito pelos médicos canadenses Robin Room e Susan Bondy, do Instituto de Pesquisa do Vício, de Toronto, estabeleceu comparações entre o consumo de maconha com o do álcool, do tabaco e da heroína. O trabalho ficou pronto em 1995, tinha 15 capítulos e circulou pelas mãos de 50 autoridades da OMS, de diversas agências das Nações Unidas e do Instituto Nacional de Abuso de Drogas (Nida) dos Estados Unidos. Da leitura desses especialistas vieram sugestões para a condensação dos capítulos num relatório final, tarefa que coube aos cinco membros do Programa de Abuso de Substâncias – entre eles, a médica paulista Maristela Monteiro, 37 anos. Em dezembro do ano passado, a OMS finalmente editou seu mais amplo estudo sobre a maconha. É um livro de 49 páginas, intitulado Cannabis: uma perspectiva de saúde e agenda de pesquisas.
Na quarta-feira 18, no entanto, a revista científica britânica NewScientist estampou em sua reportagem de capa a informação de que o capítulo que comparava os efeitos da maconha aos do álcool, tabaco e heroína foi suprimido pela OMS. Segundo a publicação, a decisão de retirar o estudo comparativo havia sido feita por pressão do governo americano e de dirigentes do Programa Internacional de Controle de Drogas da ONU. O motivo: o trabalho informava que fumar maconha causa muito menos mal à saúde do que o cigarro ou o álcool. Temia-se que esse argumento servisse de munição às organizações que defendem a descriminalização da droga. Billy Martin, da Faculdade de Medicina da Virgínia e um dos 50 especialistas envolvidos no trabalho, disse à revista inglesa que os dirigentes da OMS "ficaram malucos" ao ler a pesquisa comparativa entre maconha, álcool e cigarro.
Em nota oficial divulgada na quinta-feira 19, a OMS repudia a reportagem e afirma que a exclusão do texto nada teve a ver com pressão política. "A alegação da NewScientist não tem base nenhuma", afirmou a doutora Maristela Monteiro a ISTOÉ, de seu escritório em Genebra. "Não estamos segurando informação. Não houve pressão dos americanos. O texto não levava a nada, era tendencioso e ia embolar o meio de campo." Os originais, de 41 páginas, dos médicos canadenses Room e Bondy chamavam-se Uma avaliação comparativa das conseqüências psicológicas e de saúde da Cannabis, do álcool, da nicotina e dos opiáceos. Eles acreditavam que seu trabalho seria condensado e incluído no livro da OMS, mas não foram sequer avisados da supressão. "Ninguém me comunicou nada quando resolveram tirar a nossa contribuição", disse Robin Room a ISTOÉ de seu escritório em Toronto. Formada pela Escola Paulista de Medicina com doutorado em Psicofarmacologia, Maristela está há quatro anos na OMS. Ela assegura que as conclusões dos canadenses foram excluídas a partir de uma decisão científica e forneceu a ISTOÉ dois trechos do material cortado para exemplificar o que diz. Na página 21, lê-se que, "baseado nos padrões existentes de consumo, a Cannabis impõe muito menos problemas sérios de saúde pública do que os impostos pelo álcool e pelo tabaco nas sociedades ocidentais". O problema, para Maristela, é que mais adiante eles ignoram esta diferença entre os poucos consumidores de maconha e os muitos fumantes e generalizam sua conclusão. Os autores afirmam "existir boas razões para dizer ser improvável que o uso rivalize com os riscos de saúde pública impostos pelo álcool e pelo tabaco, mesmo se tantas pessoas usassem Cannabis quanto as que hoje bebem álcool e fumam tabaco." Esta imprecisão ajudou a OMS a desconsiderar as conclusões da dupla.
"Não há contradições nem ausência de base científica em nosso trabalho como alega Maristela Monteiro. Tanto que em julho o Instituto de Pesquisa do Vício e a OMS vão publicar o mesmo trabalho concluindo que a Cannabis provoca danos muito menores do que o cigarro ou a bebida", rebate Room. Mas, além de uma discussão sobre a maconha e os programas de saúde pública, o que efetivamente existe no estudo dos canadenses? Uma das polêmicas conclusões, por exemplo, afirma que, nas sociedades mais desenvolvidas, a maconha parece ter pouca influência no aumento da violência, ao contrário do álcool. Também assegura que, apesar das evidências de que o uso de maconha durante a gravidez acarrete perda de peso nos recém-nascidos, os dados à disposição estão muito longe de ser conclusivos. A Cannabis saiu-se melhor que o álcool e o cigarro em cinco dos sete testes comparativos de danos em longo prazo à saúde. O relatório diz que o consumo pesado de fumo, maconha e bebida pode levar à dependência, mas que somente o álcool causa a chamada síndrome de abstinência. E enquanto o consumo freqüente de bebida alcoólica leva à cirrose, severos danos cerebrais e um grande aumento dos riscos de acidente e suicídio, o texto conclui que são fracas as provas de que o uso crônico de maconha produza alterações no raciocínio, na memória e na capacidade de aprendizado. "Baseado em que se pode comparar o fumo de um cigarro de maconha com o consumo de um drinque? Não existe evidência nenhuma para isso", contesta Maristela. Segundo ela, o trabalho censurado chegava a afirmar que o viciado em heroína pode morrer de overdose, mas que a maconha nunca matou ninguém. "É dizer o óbvio. Gostaria de saber: o que é uma overdose de maconha?"
Para quem acompanha o debate, esta seria a segunda vez que a OMS manipula esse tipo de informação. "Em 1997, esconderam a conclusão de que não há relação entre o consumo de maconha e o câncer", acusa o deputado federal Fernando Gabeira (PV-RJ). "Se isso não for esclarecido, vai ficar exposta à contradição: como uma substância que é menos nociva que o álcool e o tabaco pode ter um tratamento jurídico mais rigoroso?" Oded Grajew, presidente da Fundação Abrinq para os Direitos da Criança concorda com Gabeira. "Nesse estudo ninguém está dizendo que a maconha faz bem, mas que faz menos mal que os outros", diz. "O que importa é que a bebida e o cigarro têm empresas constituídas, são aceitas porque fazem prevalecer seus interesses, ditam as regras."
Antes da publicação da OMS, o principal e mais longo estudo sobre a droga era do pneumologista Donald Tashkin, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, que nos últimos 15 anos acompanhou 130 usuários, comparando-os com grupos de pessoas que só fumam tabaco, fumam tabaco e maconha ou nenhum dos dois. Seus resultados parecem confirmar o estudo da OMS. A primeira constatação de sua pesquisa é de que tanto o cigarro quanto a maconha provocam danos semelhantes nas células do aparelho respiratório. Enquanto tabagistas fumam 20 ou mais cigarros ao dia, dificilmente um usuário de maconha fuma mais de quatro baseados no mesmo período. Apesar disso, tossem e pigarreiam tanto quanto os tabagistas. Nos dois grupos, um em cada cinco usuários tem bronquite. A razão é que os baseados não têm filtro e seus usuários tragam muito mais profundamente, mantendo a fumaça nos pulmões por um tempo até quatro vezes mais longo que os tabagistas. "Isso resulta num acúmulo 40% maior de alcatrão nos alvéolos pulmonares", diz o médico americano.
Tashkin fez uma descoberta intrigante. Apesar de provocar danos às células, a maconha não afeta a capacidade respiratória nem provoca enfisema, mesmo entre os mais compulsivos usuários. A prática clínica endossa os estudos que apontam a droga como um mal menor. O sanitarista Fábio Mesquita, membro do Conselho Estadual de Entorpecentes do Estado de São Paulo, afirma que os efeitos nocivos da Cannabis são inferiores aos das drogas legais. "O cigarro é responsável por problemas como câncer de pulmão, de garganta, de boca, acidentes vasculares e infarto", afirma Mesquita. "Os problemas que a maconha causa são poucos. Um deles é indireto. A falta de percepção do tempo e do espaço pode eventualmente causar acidente de carro." A NewScientist relata, por exemplo, que a polícia inglesa constatou que um de cada dez motoristas responsáveis por acidentes de trânsito havia testado positivo em relação à maconha. O problema é que a maioria também havia bebido e em nenhum momento é possível garantir que o fato de o teste ser positivo implique dizer que o motorista estava sob efeito da droga. Isso pelo fato de o teste identificar traços de maconha mesmo muito tempo depois de o efeito dela ter passado.
No Brasil, Mesquita e um grupo de especialistas estão tentando colocar a maconha novamente na lista de drogas legais. Ela tornou-se ilegal a partir de 1938 e a todo o momento cria-se uma polêmica em torno de sua descriminalização. "A maconha não pode mais ser vista como um demônio. A verdade é que todas as drogas podem fazer mal. Tudo depende de como e quanto se usa", conclui Mesquita. Algumas pessoas, a despeito do que se imagina, podem até se tornar dependentes da maconha. "Muita gente usa e não fica dependente. Mas alguns pacientes têm até que ser internados para se livrar da droga", conta o psiquiatra Arthur Guerra de Andrade, do Grupo de Estudos de Álcool e Drogas do Hospital das Clínicas de São Paulo. Foi o caso do estudante Marcelo Mendes, 22 anos. "Comecei a fumar aos 19 anos. Não trabalhava nem estudava e tinha o tempo todo para a droga", conta ele. Essa disponibilidade o levou a consumir vários cigarros por dia, o que acentuou sua apatia e o ajudou a ficar longe dos estudos. "Eu tinha tanto THC no corpo que nem barato eu sentia mais." Para piorar a situação, Marcelo foi pego pela polícia com 25 gramas de maconha no bolso. Fichado, ele finalmente pediu ajuda aos pais, que resolveram interná-lo. "Fiquei três semanas lá. Eu era o único na clínica dependente de maconha. Mas estava precisando", diz. Marcelo está há um mês sem fumar e retomou os estudos. Como ele, muitos usuários da Cannabis se tornam apáticos, o que para alguns médicos é um dos pontos críticos da droga. "Ela tira o tesão pela vida. Quem fuma muito fica sem motivação para nada. É o efeito Scarlett O’Hara, de …E o vento levou. Fica tudo para amanhã", compara o psiquiatra mineiro Arnaldo Madruga, especialista no tratamento de dependentes químicos.
O uso crônico da droga pode, em princípio, causar outros tipos de problemas. As folhas da maconha contêm uma cera que possui substâncias irritantes e cancerígenas (como acontece com o tabaco). "Usada em excesso, a planta causaria câncer de pulmão. Mas não há provas disso", diz o psicofarmacologista Elisaldo Carlini, membro do Painel de Perícia da OMS. Outro efeito da Cannabis: ela altera as taxas do hormônio testosterona e provoca uma diminuição no número de espermatozóides. "O homem se torna infértil, mas o problema se reverte com a suspensão da droga", afirma Carlini. Por fim, a maconha interfere na memória de curto prazo. O usuário tem dificuldades em fixar informações novas e recentes.
Apesar de os danos para a saúde não serem tão gritantes, a maconha costuma ser malvista pela sociedade por se acreditar que seria o primeiro degrau na escalada para drogas mais pesadas, como o crack e a cocaína. Muitos especialistas, entretanto, não estão de acordo com essa teoria. "A experiência é um fator individual. A primeira droga que se experimenta não tem nada a ver com aquela que eventualmente a pessoa vai usar", afirma Carlini. Um estudo liderado pelos psiquiatras Dartiu Xavier da Silveira e Eliseu Labigalini, do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo, mostrou que muitas vezes a maconha pode ajudar a fazer o caminho contrário. Ou seja, ser um meio para sair da dependência de drogas pesadas. "Começamos a observar pacientes que conseguiam ficar abstêmios de crack e cocaína quando passavam a fumar maconha. Isso diminuía consideravelmente as recaídas, muito comuns no dependente químico", conta Silveira. Os psiquiatras passaram a estudar 20 pacientes e comprovaram a tese: 70% dos usuários de crack e cocaína pararam com essas drogas depois de usar maconha e todos, em seguida, abandonaram a Cannabis. Seria o chamado efeito trampolim ao contrário. "É um novo recurso terapêutico. Não é nenhum sacrilégio se colocar uma droga para sair de outra, mais pesada. Nos países desenvolvidos, como a França, isso já é comum", afirma Silveira.
O uso medicinal da erva é conhecido há milênios. O primeiro registro na história foi encontrado num livro chinês de farmacologia, de 2730 a.C. Era prescrita como remédio eficaz contra "debilidade feminina, reumatismo e apatia e também para cicatrizar feridas, infecções na pele e problemas no sistema nervoso". As sementes, em infusão, eram usadas para combater vermes. O óleo era indicado contra caspa e o suco das folhas aplicado contra picadas de aranhas e escorpiões. No século passado, a Europa adotou alguns efeitos terapêuticos da erva e ela passou a fazer parte da farmacologia inglesa. Com a ilegalidade, entretanto, o uso medicinal ficou esquecido, só vindo a ser recuperado em 1960. Hoje, medicamentos à base de THC são usados em alguns países para amenizar náuseas e vômitos de pacientes com câncer submetidos à quimioterapia. "Também ajudam a diminuir esses sintomas em pacientes com AIDS, além de melhorar seu apetite", afirma Elisaldo Carlini. Nos casos de glaucoma (problema de pressão alta nos olhos que pode acarretar em perda da visão), um colírio à base de THC é capaz de controlar o problema. O debate gerado pela censura ao trabalho dos médicos canadenses deve levar a OMS a aprofundar os estudos em torno da maconha. Mas já se pode extrair uma conclusão. Os trabalhos preliminares e a experiência médica têm revelado que é possível obter benefícios farmacológicos de uma droga que, até há bem pouco tempo, era vista exclusivamente como um problema social ou de polícia.
Verdades e mentiras
VERDADES:
● Reprimir não reduz o consumo. Legalizado em 1976, na Holanda, o consumo cresceu de 3% para 12% em 1991. Nos Estados Unidos, a repressão aumentou e o consumo subiu muito mais. Chegou a 50% dos alunos de segundo grau.
● Maconha pode causar câncer de pulmão. Alguns estudos sustentam que a maconha mais do que a nicotina pode iniciar alterações cancerígenas em células do pulmão.
● Não prejudica o feto. Não há nenhuma comprovação de que o consumo materno de maconha faça mal ao feto, segundo a OMS.
● Não atrapalha a performance de esportistas. Atletas como jogadores de futebol que fumam até três cigarros de maconha por dia não apresentam nenhuma diferença de capacidade respiratória em relação aos que não fumam.
MENTIRAS:
● Maconha vicia mais do que cigarro e álcool. 90% das pessoas que usam maconha na juventude param de fumar por volta dos 30 anos. Quem experimenta cigarro e álcool continua a consumi-los por muito tempo ou por toda a vida.
● Destrói a atenção, a memória e a capacidade de aprender. As pesquisas mais recentes negam o clichê do maconheiro sonhador e distraído. Fumar ou não produz diferenças mínimas.
● É mais fácil parar de beber do que parar de fumar maconha. A abstinência de Cannabis pode gerar na pior das hipóteses insônia, ansiedade e sintomas semelhantes aos de um resfriado.
● Não existe maconha de laboratório mais forte e viciante. Pacientes que procuram centros de desintoxicação permitem observar que isso está de fato acontecendo.
Ratinho britânico
João Caminoto (de Londres).
O debate sobre a descriminalização da Cannabis volta e meia agita a agenda política da maioria dos países europeus. Na Grã-Bretanha, o tema vem recebendo um grande destaque desde setembro do ano passado, quando o The Independent on Sunday, a edição dominical de um dos jornais mais respeitados da ilha, decidiu iniciar uma campanha agressiva pela liberalização do consumo da droga. Num artigo ilustrado com uma enorme foto da folha de Cannabis, a editora-chefe do jornal fez uma apaixonada defesa da causa. "Eu enrolei o meu primeiro baseado num dia calorento do verão de 1968, quando estava no Hyde Park. Tinha apenas 17 anos", disse Rose Boycott, que atualmente também comanda o diário The Independent.
"A ironia é que uma das drogas mais perigosas do mundo, que é responsável pelo maior número de crimes, pelo maior número de horas perdidas no trabalho, pela maioria das rupturas familiares, que causa violência, desilusões, pode ser facilmente encontrada em qualquer supermercado ou lojinha da esquina. Se o álcool é um tigre, a maconha é um simples ratinho", escreveu Rose, que informou aos leitores ser uma ex-alcoólatra e que há muito tempo não fumava um baseado. "Será que não está na hora de encararmos os fatos e acabar com essa hipocrisia?"
Desde a publicação do famoso editorial, o jornal londrino passou a liderar a campanha pela descriminalização que antes era tocada apenas por algumas organizações sem grande expressão. Em dezembro passado, o jornal promoveu um seminário sobre Cannabis reunindo políticos, deputados, médicos, líderes religiosos e usuários da droga de diversas partes do mundo. Para reforçar a sua campanha, patrocinou uma pesquisa para saber o que os britânicos achavam do assunto. Cerca de 80% do público disse que a legislação deveria ser modificada. Quase a metade dos entrevistados defendeu a liberação da droga para uso médico e 35% quer a descriminalização para "uso recreativo". Outros jornais britânicos, ancorados na iniciativa do concorrente, começaram a abordar com mais freqüência o assunto.
A questão agora é saber se o estudo revelado para a revista New Scientist vai servir para reforçar a campanha pela descriminalização na Grã-Bretanha e em outros países. "Tomara que sim", disse a ISTOÉ o antropólogo Anthony Henman, um anglo-brasileiro que se dedica ao tema e que atualmente está realizando uma pesquisa sobre drogados em Nova York. Henman defende a legalização do consumo. "Está mais do que provado que proibições não são os instrumentos apropriados para se lidar com o assunto."
Arqueologia da repressão
Lu Gomes
A história registra períodos nos quais a Cannabis foi reprimida. O Santo Ofício baniu o consumo da maconha e outras ervas medicinais no século XII. Qualquer pessoa usando a Cannabis passou a ser perseguida por "bruxaria", entre elas santa Joana D’Arc, acusada em 1430 de usar uma variedade de ervas, incluindo a maconha, para "ouvir vozes". Mas nenhuma repressão teve a abrangência geográfica como a movida contra essa planta pela civilização contemporânea. Na década de 30, um desconhecido médico de Sergipe, Alexandre Ferreira, relacionou a maconha à prostituição, atribuindo à erva "a motivação para o comércio intersexual, pois sob seus efeitos as prostitutas se entregam ao deboche com furor e, sem fregueses ou parceiros, são capazes de praticar o amor lésbico, para satisfazer as exigências da droga".
Mas a ciência não foi a grande responsável pela repressão à maconha, a qual acabou incluída na Carta das Nações Unidas. Os EUA, país com maior poder de persuasão quando da criação da ONU, tiveram papel fundamental.
Até os anos 20, a marijuana era consumida pelas camadas mais pobres da população, especialmente os negros e latinos. Não representava problema social. Na década de 20, no entanto, a cadeia de jornais de William Randolph Hearst começou uma campanha para criminalizar o uso da maconha. Tornaram-se comuns as manchetes de acidentes de carros nos quais era encontrado um cigarro de maconha. Hearst também usou a droga para pintar um quadro mostrando os mexicanos como preguiçosos maconheiros. Tudo porque o governo mexicano lhe havia confiscado uma propriedade. As publicações do magnata também afirmavam que os negros que violentavam brancas o faziam sob o efeito da Cannabis. Reportagens retratavam negros e chicanos como bestas enlouquecidas sob a influência da maconha, que tocavam uma "música satânica" (jazz).
Isso levou o Departamento do Tesouro americano a instituir um proibitivo "imposto da marijuana" em 1938 e o Congresso começou as audiências para passar uma lei proibindo o consumo. Em 1948, membros do comitê do Congresso que examinava as atividades comunistas nos EUA alegaram que a maconha deixava seus usuários pacíficos – e pacifistas! –, e que os soviéticos poderiam usar a erva para tirar a vontade de lutar dos americanos, tornando o país uma nação de zumbis. Logo, quase todos os países do mundo adotaram legislação repressiva à Cannabis. Finalmente, por iniciativa dos EUA, da Venezuela, do Brasil e de Gana, a maconha entrou na Carta de Princípios da ONU como um inimigo a ser combatido e debelado e seu consumo vedado nos países signatários e membros da organização.
Baseado na moda
Milton Abrucio Jr.
Parte de uma pesquisa mundial da Organização das Nações Unidas (ONU), dados coletados pelo sociólogo Guaracy Mingardi, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, ajuda a rever mitos sobre o consumo e tráfico de drogas na maior cidade do País. Mostram que, em tempos de pavor com entorpecentes pesados como o crack e a heroína, a droga do momento voltou a ser a maconha. Apesar de mais barata que a cocaína, a maconha lidera o ranking de apreensões nos bairros de classe média alta como Pinheiros. Ali houve, no segundo semestre de 1996, um número duas vezes maior (20) de apreensões de maconha, com relação às de cocaína (nove). O quadro se repete nas regiões do Jardim Paulista e Ibirapuera. Já em um bairro popular como o Jaçanã, a relação é inversa – houve 17 casos em que foi encontrada cocaína, contra nove de maconha. "Isso acontece porque o consumo de drogas é muito influenciado pela moda. A maconha volta com tudo entre os jovens abastados, depois dos exageros com a cocaína e casos esporádicos de viciados em crack e heroína", diz Mingardi.
A disseminação da maconha entre adolescentes é confirmada por uma pesquisa da Escola Paulista de Medicina. Entre 15 mil estudantes, 7,6% deles admitem ter experimentado maconha, percentual menor apenas do que os solventes como a cola de sapateiro (13,8%) e bem à frente da cocaína (2%) e da categoria na qual se encaixa o crack (0,7%). Embora o crack já ameace tomar da cocaína o segundo lugar no ranking de apreensões, o problema é bastante regionalizado. Em apenas uma das oito regiões em que a polícia se divide na cidade, o crack supera a maconha e a cocaína. É a região do centro velho, onde fica a chamada "cracolândia", onde foram feitas 164 das 360 ações nas quais a polícia encontrou crack. Ali, a droga é consumida nas ruas, principalmente por menores. "É estranho a polícia não deter um fenômeno tão localizado", questiona Mingardi.
Fonte: http://www.terra.com.br/istoe/ciencia/148238.chtm
Relatório censurado pela OMS afirma que a maconha é menos prejudicial do que o tabaco e o álcool.
Carla Gullo e Peter Moon
Colaboraram: Rachel Mello (DF), Francisco Alves Filho e Paulo César Teixeira (RJ), Bruno Weis, Ivan Padilla, Luísa Alcalde, Luiza Villaméa, Marta Góes, Norton Godoy, Roberto Comodo, Patrícia Andrade e Rita Moraes (SP).
A Organização Mundial da Saúde (OMS), em Genebra, pediu, em 1992, aos médicos do seu Programa de Abuso de Substâncias (PSA), que elaborassem o mais completo relatório sobre o consumo e os efeitos médicos e psicológicos da maconha. O objetivo era produzir a palavra final sobre o assunto. Para escrevê-lo, encomendaram relatórios a 50 especialistas de todo o mundo, entre eles farmacologistas, psiquiatras, químicos, pneumologistas e cardiologistas. Um documento deveria fazer um raio-x completo da planta Cannabis sativa, o cânhamo, estabelecendo até o último detalhe tudo o que a ciência conhece sobre sua composição química e seu principal princípio ativo, o THC (tetrahidrocanabinol), responsável pela sensação de prazer dos consumidores. Foi feito um minucioso levantamento para cada aspecto dos efeitos da droga sobre o organismo: sua influência sobre o batimento cardíaco e o fluxo sanguíneo, o modo como afeta os pulmões e as vias respiratórias, os sintomas mais agudos experimentados pelos usuários e os efeitos psicológicos decorrentes do uso prolongado. Um dos relatórios, escrito pelos médicos canadenses Robin Room e Susan Bondy, do Instituto de Pesquisa do Vício, de Toronto, estabeleceu comparações entre o consumo de maconha com o do álcool, do tabaco e da heroína. O trabalho ficou pronto em 1995, tinha 15 capítulos e circulou pelas mãos de 50 autoridades da OMS, de diversas agências das Nações Unidas e do Instituto Nacional de Abuso de Drogas (Nida) dos Estados Unidos. Da leitura desses especialistas vieram sugestões para a condensação dos capítulos num relatório final, tarefa que coube aos cinco membros do Programa de Abuso de Substâncias – entre eles, a médica paulista Maristela Monteiro, 37 anos. Em dezembro do ano passado, a OMS finalmente editou seu mais amplo estudo sobre a maconha. É um livro de 49 páginas, intitulado Cannabis: uma perspectiva de saúde e agenda de pesquisas.
Na quarta-feira 18, no entanto, a revista científica britânica NewScientist estampou em sua reportagem de capa a informação de que o capítulo que comparava os efeitos da maconha aos do álcool, tabaco e heroína foi suprimido pela OMS. Segundo a publicação, a decisão de retirar o estudo comparativo havia sido feita por pressão do governo americano e de dirigentes do Programa Internacional de Controle de Drogas da ONU. O motivo: o trabalho informava que fumar maconha causa muito menos mal à saúde do que o cigarro ou o álcool. Temia-se que esse argumento servisse de munição às organizações que defendem a descriminalização da droga. Billy Martin, da Faculdade de Medicina da Virgínia e um dos 50 especialistas envolvidos no trabalho, disse à revista inglesa que os dirigentes da OMS "ficaram malucos" ao ler a pesquisa comparativa entre maconha, álcool e cigarro.
Em nota oficial divulgada na quinta-feira 19, a OMS repudia a reportagem e afirma que a exclusão do texto nada teve a ver com pressão política. "A alegação da NewScientist não tem base nenhuma", afirmou a doutora Maristela Monteiro a ISTOÉ, de seu escritório em Genebra. "Não estamos segurando informação. Não houve pressão dos americanos. O texto não levava a nada, era tendencioso e ia embolar o meio de campo." Os originais, de 41 páginas, dos médicos canadenses Room e Bondy chamavam-se Uma avaliação comparativa das conseqüências psicológicas e de saúde da Cannabis, do álcool, da nicotina e dos opiáceos. Eles acreditavam que seu trabalho seria condensado e incluído no livro da OMS, mas não foram sequer avisados da supressão. "Ninguém me comunicou nada quando resolveram tirar a nossa contribuição", disse Robin Room a ISTOÉ de seu escritório em Toronto. Formada pela Escola Paulista de Medicina com doutorado em Psicofarmacologia, Maristela está há quatro anos na OMS. Ela assegura que as conclusões dos canadenses foram excluídas a partir de uma decisão científica e forneceu a ISTOÉ dois trechos do material cortado para exemplificar o que diz. Na página 21, lê-se que, "baseado nos padrões existentes de consumo, a Cannabis impõe muito menos problemas sérios de saúde pública do que os impostos pelo álcool e pelo tabaco nas sociedades ocidentais". O problema, para Maristela, é que mais adiante eles ignoram esta diferença entre os poucos consumidores de maconha e os muitos fumantes e generalizam sua conclusão. Os autores afirmam "existir boas razões para dizer ser improvável que o uso rivalize com os riscos de saúde pública impostos pelo álcool e pelo tabaco, mesmo se tantas pessoas usassem Cannabis quanto as que hoje bebem álcool e fumam tabaco." Esta imprecisão ajudou a OMS a desconsiderar as conclusões da dupla.
"Não há contradições nem ausência de base científica em nosso trabalho como alega Maristela Monteiro. Tanto que em julho o Instituto de Pesquisa do Vício e a OMS vão publicar o mesmo trabalho concluindo que a Cannabis provoca danos muito menores do que o cigarro ou a bebida", rebate Room. Mas, além de uma discussão sobre a maconha e os programas de saúde pública, o que efetivamente existe no estudo dos canadenses? Uma das polêmicas conclusões, por exemplo, afirma que, nas sociedades mais desenvolvidas, a maconha parece ter pouca influência no aumento da violência, ao contrário do álcool. Também assegura que, apesar das evidências de que o uso de maconha durante a gravidez acarrete perda de peso nos recém-nascidos, os dados à disposição estão muito longe de ser conclusivos. A Cannabis saiu-se melhor que o álcool e o cigarro em cinco dos sete testes comparativos de danos em longo prazo à saúde. O relatório diz que o consumo pesado de fumo, maconha e bebida pode levar à dependência, mas que somente o álcool causa a chamada síndrome de abstinência. E enquanto o consumo freqüente de bebida alcoólica leva à cirrose, severos danos cerebrais e um grande aumento dos riscos de acidente e suicídio, o texto conclui que são fracas as provas de que o uso crônico de maconha produza alterações no raciocínio, na memória e na capacidade de aprendizado. "Baseado em que se pode comparar o fumo de um cigarro de maconha com o consumo de um drinque? Não existe evidência nenhuma para isso", contesta Maristela. Segundo ela, o trabalho censurado chegava a afirmar que o viciado em heroína pode morrer de overdose, mas que a maconha nunca matou ninguém. "É dizer o óbvio. Gostaria de saber: o que é uma overdose de maconha?"
Para quem acompanha o debate, esta seria a segunda vez que a OMS manipula esse tipo de informação. "Em 1997, esconderam a conclusão de que não há relação entre o consumo de maconha e o câncer", acusa o deputado federal Fernando Gabeira (PV-RJ). "Se isso não for esclarecido, vai ficar exposta à contradição: como uma substância que é menos nociva que o álcool e o tabaco pode ter um tratamento jurídico mais rigoroso?" Oded Grajew, presidente da Fundação Abrinq para os Direitos da Criança concorda com Gabeira. "Nesse estudo ninguém está dizendo que a maconha faz bem, mas que faz menos mal que os outros", diz. "O que importa é que a bebida e o cigarro têm empresas constituídas, são aceitas porque fazem prevalecer seus interesses, ditam as regras."
Antes da publicação da OMS, o principal e mais longo estudo sobre a droga era do pneumologista Donald Tashkin, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, que nos últimos 15 anos acompanhou 130 usuários, comparando-os com grupos de pessoas que só fumam tabaco, fumam tabaco e maconha ou nenhum dos dois. Seus resultados parecem confirmar o estudo da OMS. A primeira constatação de sua pesquisa é de que tanto o cigarro quanto a maconha provocam danos semelhantes nas células do aparelho respiratório. Enquanto tabagistas fumam 20 ou mais cigarros ao dia, dificilmente um usuário de maconha fuma mais de quatro baseados no mesmo período. Apesar disso, tossem e pigarreiam tanto quanto os tabagistas. Nos dois grupos, um em cada cinco usuários tem bronquite. A razão é que os baseados não têm filtro e seus usuários tragam muito mais profundamente, mantendo a fumaça nos pulmões por um tempo até quatro vezes mais longo que os tabagistas. "Isso resulta num acúmulo 40% maior de alcatrão nos alvéolos pulmonares", diz o médico americano.
Tashkin fez uma descoberta intrigante. Apesar de provocar danos às células, a maconha não afeta a capacidade respiratória nem provoca enfisema, mesmo entre os mais compulsivos usuários. A prática clínica endossa os estudos que apontam a droga como um mal menor. O sanitarista Fábio Mesquita, membro do Conselho Estadual de Entorpecentes do Estado de São Paulo, afirma que os efeitos nocivos da Cannabis são inferiores aos das drogas legais. "O cigarro é responsável por problemas como câncer de pulmão, de garganta, de boca, acidentes vasculares e infarto", afirma Mesquita. "Os problemas que a maconha causa são poucos. Um deles é indireto. A falta de percepção do tempo e do espaço pode eventualmente causar acidente de carro." A NewScientist relata, por exemplo, que a polícia inglesa constatou que um de cada dez motoristas responsáveis por acidentes de trânsito havia testado positivo em relação à maconha. O problema é que a maioria também havia bebido e em nenhum momento é possível garantir que o fato de o teste ser positivo implique dizer que o motorista estava sob efeito da droga. Isso pelo fato de o teste identificar traços de maconha mesmo muito tempo depois de o efeito dela ter passado.
No Brasil, Mesquita e um grupo de especialistas estão tentando colocar a maconha novamente na lista de drogas legais. Ela tornou-se ilegal a partir de 1938 e a todo o momento cria-se uma polêmica em torno de sua descriminalização. "A maconha não pode mais ser vista como um demônio. A verdade é que todas as drogas podem fazer mal. Tudo depende de como e quanto se usa", conclui Mesquita. Algumas pessoas, a despeito do que se imagina, podem até se tornar dependentes da maconha. "Muita gente usa e não fica dependente. Mas alguns pacientes têm até que ser internados para se livrar da droga", conta o psiquiatra Arthur Guerra de Andrade, do Grupo de Estudos de Álcool e Drogas do Hospital das Clínicas de São Paulo. Foi o caso do estudante Marcelo Mendes, 22 anos. "Comecei a fumar aos 19 anos. Não trabalhava nem estudava e tinha o tempo todo para a droga", conta ele. Essa disponibilidade o levou a consumir vários cigarros por dia, o que acentuou sua apatia e o ajudou a ficar longe dos estudos. "Eu tinha tanto THC no corpo que nem barato eu sentia mais." Para piorar a situação, Marcelo foi pego pela polícia com 25 gramas de maconha no bolso. Fichado, ele finalmente pediu ajuda aos pais, que resolveram interná-lo. "Fiquei três semanas lá. Eu era o único na clínica dependente de maconha. Mas estava precisando", diz. Marcelo está há um mês sem fumar e retomou os estudos. Como ele, muitos usuários da Cannabis se tornam apáticos, o que para alguns médicos é um dos pontos críticos da droga. "Ela tira o tesão pela vida. Quem fuma muito fica sem motivação para nada. É o efeito Scarlett O’Hara, de …E o vento levou. Fica tudo para amanhã", compara o psiquiatra mineiro Arnaldo Madruga, especialista no tratamento de dependentes químicos.
O uso crônico da droga pode, em princípio, causar outros tipos de problemas. As folhas da maconha contêm uma cera que possui substâncias irritantes e cancerígenas (como acontece com o tabaco). "Usada em excesso, a planta causaria câncer de pulmão. Mas não há provas disso", diz o psicofarmacologista Elisaldo Carlini, membro do Painel de Perícia da OMS. Outro efeito da Cannabis: ela altera as taxas do hormônio testosterona e provoca uma diminuição no número de espermatozóides. "O homem se torna infértil, mas o problema se reverte com a suspensão da droga", afirma Carlini. Por fim, a maconha interfere na memória de curto prazo. O usuário tem dificuldades em fixar informações novas e recentes.
Apesar de os danos para a saúde não serem tão gritantes, a maconha costuma ser malvista pela sociedade por se acreditar que seria o primeiro degrau na escalada para drogas mais pesadas, como o crack e a cocaína. Muitos especialistas, entretanto, não estão de acordo com essa teoria. "A experiência é um fator individual. A primeira droga que se experimenta não tem nada a ver com aquela que eventualmente a pessoa vai usar", afirma Carlini. Um estudo liderado pelos psiquiatras Dartiu Xavier da Silveira e Eliseu Labigalini, do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo, mostrou que muitas vezes a maconha pode ajudar a fazer o caminho contrário. Ou seja, ser um meio para sair da dependência de drogas pesadas. "Começamos a observar pacientes que conseguiam ficar abstêmios de crack e cocaína quando passavam a fumar maconha. Isso diminuía consideravelmente as recaídas, muito comuns no dependente químico", conta Silveira. Os psiquiatras passaram a estudar 20 pacientes e comprovaram a tese: 70% dos usuários de crack e cocaína pararam com essas drogas depois de usar maconha e todos, em seguida, abandonaram a Cannabis. Seria o chamado efeito trampolim ao contrário. "É um novo recurso terapêutico. Não é nenhum sacrilégio se colocar uma droga para sair de outra, mais pesada. Nos países desenvolvidos, como a França, isso já é comum", afirma Silveira.
O uso medicinal da erva é conhecido há milênios. O primeiro registro na história foi encontrado num livro chinês de farmacologia, de 2730 a.C. Era prescrita como remédio eficaz contra "debilidade feminina, reumatismo e apatia e também para cicatrizar feridas, infecções na pele e problemas no sistema nervoso". As sementes, em infusão, eram usadas para combater vermes. O óleo era indicado contra caspa e o suco das folhas aplicado contra picadas de aranhas e escorpiões. No século passado, a Europa adotou alguns efeitos terapêuticos da erva e ela passou a fazer parte da farmacologia inglesa. Com a ilegalidade, entretanto, o uso medicinal ficou esquecido, só vindo a ser recuperado em 1960. Hoje, medicamentos à base de THC são usados em alguns países para amenizar náuseas e vômitos de pacientes com câncer submetidos à quimioterapia. "Também ajudam a diminuir esses sintomas em pacientes com AIDS, além de melhorar seu apetite", afirma Elisaldo Carlini. Nos casos de glaucoma (problema de pressão alta nos olhos que pode acarretar em perda da visão), um colírio à base de THC é capaz de controlar o problema. O debate gerado pela censura ao trabalho dos médicos canadenses deve levar a OMS a aprofundar os estudos em torno da maconha. Mas já se pode extrair uma conclusão. Os trabalhos preliminares e a experiência médica têm revelado que é possível obter benefícios farmacológicos de uma droga que, até há bem pouco tempo, era vista exclusivamente como um problema social ou de polícia.
Verdades e mentiras
VERDADES:
● Reprimir não reduz o consumo. Legalizado em 1976, na Holanda, o consumo cresceu de 3% para 12% em 1991. Nos Estados Unidos, a repressão aumentou e o consumo subiu muito mais. Chegou a 50% dos alunos de segundo grau.
● Maconha pode causar câncer de pulmão. Alguns estudos sustentam que a maconha mais do que a nicotina pode iniciar alterações cancerígenas em células do pulmão.
● Não prejudica o feto. Não há nenhuma comprovação de que o consumo materno de maconha faça mal ao feto, segundo a OMS.
● Não atrapalha a performance de esportistas. Atletas como jogadores de futebol que fumam até três cigarros de maconha por dia não apresentam nenhuma diferença de capacidade respiratória em relação aos que não fumam.
MENTIRAS:
● Maconha vicia mais do que cigarro e álcool. 90% das pessoas que usam maconha na juventude param de fumar por volta dos 30 anos. Quem experimenta cigarro e álcool continua a consumi-los por muito tempo ou por toda a vida.
● Destrói a atenção, a memória e a capacidade de aprender. As pesquisas mais recentes negam o clichê do maconheiro sonhador e distraído. Fumar ou não produz diferenças mínimas.
● É mais fácil parar de beber do que parar de fumar maconha. A abstinência de Cannabis pode gerar na pior das hipóteses insônia, ansiedade e sintomas semelhantes aos de um resfriado.
● Não existe maconha de laboratório mais forte e viciante. Pacientes que procuram centros de desintoxicação permitem observar que isso está de fato acontecendo.
Ratinho britânico
João Caminoto (de Londres).
O debate sobre a descriminalização da Cannabis volta e meia agita a agenda política da maioria dos países europeus. Na Grã-Bretanha, o tema vem recebendo um grande destaque desde setembro do ano passado, quando o The Independent on Sunday, a edição dominical de um dos jornais mais respeitados da ilha, decidiu iniciar uma campanha agressiva pela liberalização do consumo da droga. Num artigo ilustrado com uma enorme foto da folha de Cannabis, a editora-chefe do jornal fez uma apaixonada defesa da causa. "Eu enrolei o meu primeiro baseado num dia calorento do verão de 1968, quando estava no Hyde Park. Tinha apenas 17 anos", disse Rose Boycott, que atualmente também comanda o diário The Independent.
"A ironia é que uma das drogas mais perigosas do mundo, que é responsável pelo maior número de crimes, pelo maior número de horas perdidas no trabalho, pela maioria das rupturas familiares, que causa violência, desilusões, pode ser facilmente encontrada em qualquer supermercado ou lojinha da esquina. Se o álcool é um tigre, a maconha é um simples ratinho", escreveu Rose, que informou aos leitores ser uma ex-alcoólatra e que há muito tempo não fumava um baseado. "Será que não está na hora de encararmos os fatos e acabar com essa hipocrisia?"
Desde a publicação do famoso editorial, o jornal londrino passou a liderar a campanha pela descriminalização que antes era tocada apenas por algumas organizações sem grande expressão. Em dezembro passado, o jornal promoveu um seminário sobre Cannabis reunindo políticos, deputados, médicos, líderes religiosos e usuários da droga de diversas partes do mundo. Para reforçar a sua campanha, patrocinou uma pesquisa para saber o que os britânicos achavam do assunto. Cerca de 80% do público disse que a legislação deveria ser modificada. Quase a metade dos entrevistados defendeu a liberação da droga para uso médico e 35% quer a descriminalização para "uso recreativo". Outros jornais britânicos, ancorados na iniciativa do concorrente, começaram a abordar com mais freqüência o assunto.
A questão agora é saber se o estudo revelado para a revista New Scientist vai servir para reforçar a campanha pela descriminalização na Grã-Bretanha e em outros países. "Tomara que sim", disse a ISTOÉ o antropólogo Anthony Henman, um anglo-brasileiro que se dedica ao tema e que atualmente está realizando uma pesquisa sobre drogados em Nova York. Henman defende a legalização do consumo. "Está mais do que provado que proibições não são os instrumentos apropriados para se lidar com o assunto."
Arqueologia da repressão
Lu Gomes
A história registra períodos nos quais a Cannabis foi reprimida. O Santo Ofício baniu o consumo da maconha e outras ervas medicinais no século XII. Qualquer pessoa usando a Cannabis passou a ser perseguida por "bruxaria", entre elas santa Joana D’Arc, acusada em 1430 de usar uma variedade de ervas, incluindo a maconha, para "ouvir vozes". Mas nenhuma repressão teve a abrangência geográfica como a movida contra essa planta pela civilização contemporânea. Na década de 30, um desconhecido médico de Sergipe, Alexandre Ferreira, relacionou a maconha à prostituição, atribuindo à erva "a motivação para o comércio intersexual, pois sob seus efeitos as prostitutas se entregam ao deboche com furor e, sem fregueses ou parceiros, são capazes de praticar o amor lésbico, para satisfazer as exigências da droga".
Mas a ciência não foi a grande responsável pela repressão à maconha, a qual acabou incluída na Carta das Nações Unidas. Os EUA, país com maior poder de persuasão quando da criação da ONU, tiveram papel fundamental.
Até os anos 20, a marijuana era consumida pelas camadas mais pobres da população, especialmente os negros e latinos. Não representava problema social. Na década de 20, no entanto, a cadeia de jornais de William Randolph Hearst começou uma campanha para criminalizar o uso da maconha. Tornaram-se comuns as manchetes de acidentes de carros nos quais era encontrado um cigarro de maconha. Hearst também usou a droga para pintar um quadro mostrando os mexicanos como preguiçosos maconheiros. Tudo porque o governo mexicano lhe havia confiscado uma propriedade. As publicações do magnata também afirmavam que os negros que violentavam brancas o faziam sob o efeito da Cannabis. Reportagens retratavam negros e chicanos como bestas enlouquecidas sob a influência da maconha, que tocavam uma "música satânica" (jazz).
Isso levou o Departamento do Tesouro americano a instituir um proibitivo "imposto da marijuana" em 1938 e o Congresso começou as audiências para passar uma lei proibindo o consumo. Em 1948, membros do comitê do Congresso que examinava as atividades comunistas nos EUA alegaram que a maconha deixava seus usuários pacíficos – e pacifistas! –, e que os soviéticos poderiam usar a erva para tirar a vontade de lutar dos americanos, tornando o país uma nação de zumbis. Logo, quase todos os países do mundo adotaram legislação repressiva à Cannabis. Finalmente, por iniciativa dos EUA, da Venezuela, do Brasil e de Gana, a maconha entrou na Carta de Princípios da ONU como um inimigo a ser combatido e debelado e seu consumo vedado nos países signatários e membros da organização.
Baseado na moda
Milton Abrucio Jr.
Parte de uma pesquisa mundial da Organização das Nações Unidas (ONU), dados coletados pelo sociólogo Guaracy Mingardi, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, ajuda a rever mitos sobre o consumo e tráfico de drogas na maior cidade do País. Mostram que, em tempos de pavor com entorpecentes pesados como o crack e a heroína, a droga do momento voltou a ser a maconha. Apesar de mais barata que a cocaína, a maconha lidera o ranking de apreensões nos bairros de classe média alta como Pinheiros. Ali houve, no segundo semestre de 1996, um número duas vezes maior (20) de apreensões de maconha, com relação às de cocaína (nove). O quadro se repete nas regiões do Jardim Paulista e Ibirapuera. Já em um bairro popular como o Jaçanã, a relação é inversa – houve 17 casos em que foi encontrada cocaína, contra nove de maconha. "Isso acontece porque o consumo de drogas é muito influenciado pela moda. A maconha volta com tudo entre os jovens abastados, depois dos exageros com a cocaína e casos esporádicos de viciados em crack e heroína", diz Mingardi.
A disseminação da maconha entre adolescentes é confirmada por uma pesquisa da Escola Paulista de Medicina. Entre 15 mil estudantes, 7,6% deles admitem ter experimentado maconha, percentual menor apenas do que os solventes como a cola de sapateiro (13,8%) e bem à frente da cocaína (2%) e da categoria na qual se encaixa o crack (0,7%). Embora o crack já ameace tomar da cocaína o segundo lugar no ranking de apreensões, o problema é bastante regionalizado. Em apenas uma das oito regiões em que a polícia se divide na cidade, o crack supera a maconha e a cocaína. É a região do centro velho, onde fica a chamada "cracolândia", onde foram feitas 164 das 360 ações nas quais a polícia encontrou crack. Ali, a droga é consumida nas ruas, principalmente por menores. "É estranho a polícia não deter um fenômeno tão localizado", questiona Mingardi.
Fonte: http://www.terra.com.br/istoe/ciencia/148238.chtm
quarta-feira, 12 de novembro de 1997
“Droga não é o demônio”
12 de novembro de 1997, ISTOÉ
Consultor da OMS, Anthony Henman diz que as autoridades devem tolerar a maconha para concentrar esforços nos viciados em heroína e cocaína.
Eliane Trindade
O antropólogo Anthony Henman, 47 anos, é uma autoridade mundial em drogas. Foi consultor do assunto junto à Organização Mundial da Saúde (OMS), às Nações Unidas e à Comissão Européia. Filho de ingleses, nascido em São Paulo, Henman esteve no Brasil há três semanas a convite do Ministério da Saúde e do Conselho Federal de Entorpecentes para participar de um seminário em Brasília sobre políticas de "redução de danos". Surgido nos anos 80, para tentar barrar o avanço da AIDS entre consumidores de drogas, o conceito vai pela linha "dos males o menor", que acabou permitindo o surgimento de programas de distribuição de seringas para usuários de drogas injetáveis e até de heroína para viciados crônicos. Henman acompanhou experiências na Inglaterra e na Suíça. Atualmente é consultor de um projeto de troca de seringas no Estado de Nova York. Com vasta experiência, esse ex-professor de antropologia da Unicamp, formado pela Universidade de Cambridge, admite que, como toda a sua geração, já fumou maconha. Suas posições se assemelham mais às músicas da banda Planet Hemp do que ao discurso oficial. Ele também compra polêmicas como o uso da folha de coca no tratamento de dependentes de cocaína e crack. "Dessa forma haveria um consumo de cocaína muito menos danoso. Mas o que impera é a visão americana de que a única saída é a abstinência, o tudo ou nada", diz. Antes de enveredar pela problemática médica e urbana do uso das drogas, Henman pesquisou regiões produtoras de cocaína na Colômbia e estudou o consumo da folha de coca pelos índios. No Brasil, fez interessantes descobertas sobre a história do consumo da maconha. Um dia antes de embarcar para os Estados Unidos, na quarta-feira 29 de outubro, Henman concedeu a seguinte entrevista a ISTOÉ:
ISTOÉ – O senhor poderia citar um exemplo de sucesso na aplicação da política de redução de danos?
Anthony Henman – Em Liverpool, cidade pioneira na distribuição de seringas descartáveis, a taxa de infecção por HIV entre os usuários de drogas injetáveis não ultrapassa 1,6%. Enquanto em Nova York, em certos bairros, o índice é de 60%. Aqui, em cidades como Itajaí (SC), a taxa é de 70%. No Brasil, a reação das autoridades tem sido sempre de que droga é confusão, droga é marginalidade, droga é crime. Com a chegada da AIDS essa mentalidade teve de mudar. De repente, existia uma doença que era uma ameaça tangível. Quando as pessoas viram que existia um risco altíssimo de transmissão do vírus através da seringa, começaram a pensar o impensável. Até então, distribuir seringas seria o equivalente a dar drogas para crianças. Hoje, programas de distribuição e troca de seringas evoluíram bastante na Europa.
ISTOÉ – Existem outros exemplos positivos mais recentes?
Anthony Henman – Na Europa atualmente estima-se um consumo de dez milhões de pastilhas de ecstasy por fim de semana entre Espanha, Itália, França e Inglaterra. É um tipo de uso concentrado, em festas que duram a noite inteira, as raves. Na Holanda, por exemplo, as prefeituras passaram a obrigar os organizadores a realizar as festas em locais mais arejados e a fornecer água de graça. Isso para evitar mortes por desidratação ou colapsos físicos. Sob o efeito do ecstasy as pessoas dançam tanto que podem se desidratar ou sofrer uma inversão térmica no corpo.
ISTOÉ – Isso é redução de danos?
Anthony Henman – Exatamente. É uma política que diz: não vamos conseguir parar essas milhões de pessoas. Mas, pelo menos a gente pode evitar as piores seqüelas sabendo do que se trata e impondo certas normas. Precisamos olhar especificamente quais são as substâncias que estão criando problemas, em que camadas da população, em que faixa etária e em que contexto sociais. Não dá para continuar com o discurso de que droga é obra do demônio.
ISTOÉ – Como fica o papel do Estado, que reprime o uso e de repente começa a oferecer seringas?
Anthony Henman – Existe uma contradição, entre uma ideologia de controle total, de proibição – "vamos eliminar essas coisas da face do planeta" – e outra lógica que diz: "essa coisas existem, elas produzem um certo tipo de problema, para certos tipos de pessoas e a gente tem que concentrar recursos, uma vez que está custando muito caro". O governo norte americano gasta US$ 15 bilhões por ano, numa política que não tem dado resultado nenhum, centrada na repressão, na proibição.
ISTOÉ – Pode-se pensar em redução de danos no uso de cocaína e do crack que representam riscos bem maiores?
Anthony Henman – Há um médico boliviano em La Paz que tem tratado com folha de coca dependentes de crack, dizendo: "Vamos substituir a forma mais concentrada, por uma forma mais branda." É a mesma droga, mas entra no sangue com menos rapidez. Então, serve para uma desintoxicação progressiva.
ISTOÉ – Seria um antídoto contra a cocaína?
Anthony Henman – É uma forma muito mais moderada de consumir esse mesmo alcalóide. Numa carreira de cocaína ou numa pedra de crack deve haver por volta de 50 miligramas da droga. É mais ou menos a mesma quantidade de cocaína que existe numa boa mascada de folha. A diferença é que quando você fuma um pouco de crack, isso entra na corrente sanguínea em 30 segundos, e quando você está mascando entra de um a dois miligramas por minuto, durante pelo menos uma hora.
ISTOÉ – A folha de coca ajudaria a tratar viciados e a mantê-los em tratamento?
Anthony Henman – Por se tratar de cocaína essas experiências não foram feitas porque predomina a visão americana do problema de que a única alternativa é a abstinência imediata. É o tudo ou nada.
ISTOÉ – A abstinência seria prejudicial aos programas de recuperação de drogados?
Anthony Henman – A abstinência total só funciona para quem de fato quer parar, o que é uma minoria. O que se vê são viciados que passam dezenas de vezes por processos de desintoxicação, voltam ao vício e isso vira um processo repetitivo. Estão sempre alternando entre o tudo e o nada, o tudo sendo consumido por quem quiser na rua e o nada sendo o modelo da abstinência.
ISTOÉ – Colocar a folha de coca como intermediária poderia reduzir o consumo?
Anthony Henman – Acho que poderia levar a um tipo de consumo de cocaína muito menos problemático. Para isso, teria que se admitir o consumo da folha de coca ou de algum produto que reproduz a sua farmacologia. Seria ainda um consumo de cocaína, mas levado a um padrão mais estável, que não faz nenhum mal ao organismo. Seria uma forma de admitir que essa planta existe, que essa substância existe e para certas pessoas pode ter utilidade. É justamente a atual lógica de tentar coibir que está levando o consumo de cocaína para formas cada vez mais danosas.
ISTOÉ – O crack é um exemplo dessa evolução negativa?
Anthony Henman – Sem dúvida é uma evolução perversa do mercado. O crack é uma espécie de McDonald’s da cocaína. É a forma de você vender em pequenas quantidades repetidas vezes e rápido. Não existe mais aquela história de 20 anos atrás, quando o traficante ficava testando o produto para ver se estava bom. Para vender um grama, perdia meia hora. Hoje em dia o negócio é muito mais rápido.
ISTOÉ – Quais os entraves legais ao uso da folha da coca para tratamento de viciados?
Anthony Henman – No Peru e na Bolívia existem pequenas experiências e não enfrentam problemas pelo fato cultural de o uso, em tribos, ser aceito. Eu sei que existem centros na Suíça e Holanda interessados nisso, mas enfrentam enormes dificuldades para enquadrar um projeto desse tipo dentro da legislação internacional antidrogas. A convenção única das Nações Unidas foi feita para dificultar ao máximo o comércio internacional desses produtos e especialmente de suas formas mais primitivas e vegetais. A maconha e a coca sofrem controles ainda maiores do que o ópio, já que a heroína pode ter uso médico.
ISTOÉ – É boa ou má a experiência do consumo de folha de coca nas comunidades indígenas?
Anthony Henman – Os índios usam folhas de coca há muito tempo. E percebe-se que ela funciona como um estimulante eficaz, que de fato traz muito menos danos do que a cocaína refinada. Você pode mascar folha de coca todo dia, a vida inteira, e isso não te fazer mal. Ele é um estimulante, mais ou menos no mesmo nível de dois cafezinhos diários. Não dá nenhuma fissura. Não entendo porque as sociedades ocidentais, em especial o Brasil, não levam em conta essa experiência de milhões de pessoas durante milhares de anos com relação a essa planta. Eles encontraram uma forma de conviver com ela que me parece sadia.
ISTOÉ – No Brasil há registro do uso da folha de coca?
Anthony Henman – Existe uma pequena área onde estive há uns 15 anos, no alto Rio Negro, na fronteira com a Colômbia. Lá, alguns grupos indígenas usam o que eles chamam de ipadu. A coca amazônica é preparada no Brasil de outra forma. O ipadu é um arbusto que dá umas folhas grandes. Elas são torradas e pulverizadas. Faz-se uma mistura com as cinzas. É uma coisa semi-elaborada.
ISTOÉ – Quando a Cannabis chegou ao Brasil?
Anthony Henman – O Brasil é o país das Américas que tem a tradição mais longa de uso de maconha. No Caribe, nos EUA e no México, a droga surge só no fim do século XIX. Enquanto no Brasil já existem boas indicações de que o consumo da maconha era relativamente comum a partir da segunda metade do século XVIII. Em 1930, no Rio de Janeiro, o uso era tão comum que houve uma portaria da prefeitura proibindo o "pito do pango" em estabelecimentos públicos.
ISTOÉ – O uso era restrito aos marginais e malandros?
Anthony Henman – Tem uma história de que Carlota Joaquina tinha um escravo que preparava todos os remédios para ela, e dizem que a rainha usava pelo menos a maconha em forma de infusão. Provavelmente não fumava, mas isso não se sabe com certeza.
ISTOÉ – Quando é que a droga tornou-se um fenômeno urbano no Brasil?
Anthony Henman – Um artigo de um médico baiano, publicado em 1915, trata do uso da maconha e fala dos problemas do abuso. O artigo refere-se à droga consumida por estivadores e trabalhadores braçais no cais do porto de Salvador.
ISTOÉ – Quando chegou à classe média?
Anthony Henman – Provavelmente só nos anos 50. Mas, nos anos 30, aparece em letras de samba. Tem uma música do Wilson Batista que se chama "Chico Brito" que diz assim: "Chico Brito fez do baralho seu maior esporte, é valente no morro, diz que ele fuma uma erva do norte". Isso é uma música de 1932, vem de um meio malandro carioca, sambista, que não é exatamente classe média, mas que já está chegando perto.
ISTOÉ – No que o seu discurso a favor da liberação das drogas difere das letras do Planet Hemp e do Gabriel, o Pensador?
Anthony Henman – Se um estudioso diz numa revista científica que a maconha não faz tanto mal assim, passa. Mas se você falar no palco "Olha, eu já puxei fumo e não caiu meu cabelo e tal", fica chocante. O que os músicos fazem é vir com um contra-discurso – "Olha, aquilo que estão dizendo, não é verdade". Mas eu não considero que seja uma apologia. É simplesmente uma tentativa de ir contra o domínio de um discurso proibicionista que é anticientífico, que tem pouca base nas realidades históricas e culturais de nossa época.
ISTOÉ – Por que este discurso persiste?
Anthony Henman – É um traço autoritário, não só dos regimes militares, mas até dos democráticos, repetir que essa planta é ruim, que ela produz um vício terrível e um estrago enorme ao organismo. Só que hoje existem mais de duas gerações que têm experiência com a maconha. Tem gente com 60 anos que conviveu com maconha a vida inteira. Sabem que esse discurso oficial sobre o malefício inevitável associado à droga, não é verdade. Quer dizer, algumas pessoas podem ter algumas reações problemáticas com a maconha, mas a grande maioria dos usuários é do tipo ocasional e consegue controlar o seu consumo.
ISTOÉ – O senhor então é defensor do "liberou geral"?
Anthony Henman – A gente quer encontrar outras soluções para cada tipo de produto. Então não é assim "liberar geral", qualquer coisa vale. Mas é olhar que tipo de consumo existe, qual está efetivamente criando problemas. Existe, por exemplo, um consumo massivo de maconha que não está criando grandes problemas. Não vejo porque isso não deva ser comercializado. Bastaria um certo controle. Já produtos químicos podem entrar num tipo de controle que existe para medicamentos. O usuário poderia então ir à farmácia buscar um produto puro e numa dose adequada. Assim não haveria overdose acidental, que é a maior causa de mortalidade por uso de opiáceos. É ridículo as pessoas estarem morrendo por acidente. Mas não significa que qualquer barzinho da esquina deva vender cocaína. Eu tenho participado muito dessas discussões. Fui até secretário executivo da Liga Internacional Antiproibicionista, que foi bancada pelo grupo verde dentro do Parlamento Europeu.
ISTOÉ – O Estado dessa forma não estaria abrindo caminho para a tragédia individual dos viciados?
Anthony Henman – Quando se fala em guerra contra drogas entra-se na contramão da história ética ocidental. É uma contradição. A nossa foi sempre a ética da alta responsabilidade, em que as pessoas são responsáveis por seus atos. Essa é a tendência há mais de 900 anos. De repente, nessa questão das drogas, por uma série de razões, a classe médica, depois o Estado e por fim a polícia passaram a ditar o que faz bem e o que faz mal às pessoas. Assim, tiraram do cidadão a própria responsabilidade. Tanto é que se criou o mito de que todos os usuários são irresponsáveis, de que não sabem o que fazem. É importante o músico dizer: "Você consumidor é responsável pelos seus atos". Então, se cair no vício, é o único responsável por isso. Não adianta pôr a culpa no traficante. Foi você que escolheu. E, se quiser sair, também não será o Estado, nem o médico que vão te salvar. A única pessoa que vai te salvar é você mesmo. Para conseguir, tem que haver vontade de parar.
Fonte: ISTOÉ nº 1467 (12 de novembro de 1997)
Consultor da OMS, Anthony Henman diz que as autoridades devem tolerar a maconha para concentrar esforços nos viciados em heroína e cocaína.
Eliane Trindade
O antropólogo Anthony Henman, 47 anos, é uma autoridade mundial em drogas. Foi consultor do assunto junto à Organização Mundial da Saúde (OMS), às Nações Unidas e à Comissão Européia. Filho de ingleses, nascido em São Paulo, Henman esteve no Brasil há três semanas a convite do Ministério da Saúde e do Conselho Federal de Entorpecentes para participar de um seminário em Brasília sobre políticas de "redução de danos". Surgido nos anos 80, para tentar barrar o avanço da AIDS entre consumidores de drogas, o conceito vai pela linha "dos males o menor", que acabou permitindo o surgimento de programas de distribuição de seringas para usuários de drogas injetáveis e até de heroína para viciados crônicos. Henman acompanhou experiências na Inglaterra e na Suíça. Atualmente é consultor de um projeto de troca de seringas no Estado de Nova York. Com vasta experiência, esse ex-professor de antropologia da Unicamp, formado pela Universidade de Cambridge, admite que, como toda a sua geração, já fumou maconha. Suas posições se assemelham mais às músicas da banda Planet Hemp do que ao discurso oficial. Ele também compra polêmicas como o uso da folha de coca no tratamento de dependentes de cocaína e crack. "Dessa forma haveria um consumo de cocaína muito menos danoso. Mas o que impera é a visão americana de que a única saída é a abstinência, o tudo ou nada", diz. Antes de enveredar pela problemática médica e urbana do uso das drogas, Henman pesquisou regiões produtoras de cocaína na Colômbia e estudou o consumo da folha de coca pelos índios. No Brasil, fez interessantes descobertas sobre a história do consumo da maconha. Um dia antes de embarcar para os Estados Unidos, na quarta-feira 29 de outubro, Henman concedeu a seguinte entrevista a ISTOÉ:
ISTOÉ – O senhor poderia citar um exemplo de sucesso na aplicação da política de redução de danos?
Anthony Henman – Em Liverpool, cidade pioneira na distribuição de seringas descartáveis, a taxa de infecção por HIV entre os usuários de drogas injetáveis não ultrapassa 1,6%. Enquanto em Nova York, em certos bairros, o índice é de 60%. Aqui, em cidades como Itajaí (SC), a taxa é de 70%. No Brasil, a reação das autoridades tem sido sempre de que droga é confusão, droga é marginalidade, droga é crime. Com a chegada da AIDS essa mentalidade teve de mudar. De repente, existia uma doença que era uma ameaça tangível. Quando as pessoas viram que existia um risco altíssimo de transmissão do vírus através da seringa, começaram a pensar o impensável. Até então, distribuir seringas seria o equivalente a dar drogas para crianças. Hoje, programas de distribuição e troca de seringas evoluíram bastante na Europa.
ISTOÉ – Existem outros exemplos positivos mais recentes?
Anthony Henman – Na Europa atualmente estima-se um consumo de dez milhões de pastilhas de ecstasy por fim de semana entre Espanha, Itália, França e Inglaterra. É um tipo de uso concentrado, em festas que duram a noite inteira, as raves. Na Holanda, por exemplo, as prefeituras passaram a obrigar os organizadores a realizar as festas em locais mais arejados e a fornecer água de graça. Isso para evitar mortes por desidratação ou colapsos físicos. Sob o efeito do ecstasy as pessoas dançam tanto que podem se desidratar ou sofrer uma inversão térmica no corpo.
ISTOÉ – Isso é redução de danos?
Anthony Henman – Exatamente. É uma política que diz: não vamos conseguir parar essas milhões de pessoas. Mas, pelo menos a gente pode evitar as piores seqüelas sabendo do que se trata e impondo certas normas. Precisamos olhar especificamente quais são as substâncias que estão criando problemas, em que camadas da população, em que faixa etária e em que contexto sociais. Não dá para continuar com o discurso de que droga é obra do demônio.
ISTOÉ – Como fica o papel do Estado, que reprime o uso e de repente começa a oferecer seringas?
Anthony Henman – Existe uma contradição, entre uma ideologia de controle total, de proibição – "vamos eliminar essas coisas da face do planeta" – e outra lógica que diz: "essa coisas existem, elas produzem um certo tipo de problema, para certos tipos de pessoas e a gente tem que concentrar recursos, uma vez que está custando muito caro". O governo norte americano gasta US$ 15 bilhões por ano, numa política que não tem dado resultado nenhum, centrada na repressão, na proibição.
ISTOÉ – Pode-se pensar em redução de danos no uso de cocaína e do crack que representam riscos bem maiores?
Anthony Henman – Há um médico boliviano em La Paz que tem tratado com folha de coca dependentes de crack, dizendo: "Vamos substituir a forma mais concentrada, por uma forma mais branda." É a mesma droga, mas entra no sangue com menos rapidez. Então, serve para uma desintoxicação progressiva.
ISTOÉ – Seria um antídoto contra a cocaína?
Anthony Henman – É uma forma muito mais moderada de consumir esse mesmo alcalóide. Numa carreira de cocaína ou numa pedra de crack deve haver por volta de 50 miligramas da droga. É mais ou menos a mesma quantidade de cocaína que existe numa boa mascada de folha. A diferença é que quando você fuma um pouco de crack, isso entra na corrente sanguínea em 30 segundos, e quando você está mascando entra de um a dois miligramas por minuto, durante pelo menos uma hora.
ISTOÉ – A folha de coca ajudaria a tratar viciados e a mantê-los em tratamento?
Anthony Henman – Por se tratar de cocaína essas experiências não foram feitas porque predomina a visão americana do problema de que a única alternativa é a abstinência imediata. É o tudo ou nada.
ISTOÉ – A abstinência seria prejudicial aos programas de recuperação de drogados?
Anthony Henman – A abstinência total só funciona para quem de fato quer parar, o que é uma minoria. O que se vê são viciados que passam dezenas de vezes por processos de desintoxicação, voltam ao vício e isso vira um processo repetitivo. Estão sempre alternando entre o tudo e o nada, o tudo sendo consumido por quem quiser na rua e o nada sendo o modelo da abstinência.
ISTOÉ – Colocar a folha de coca como intermediária poderia reduzir o consumo?
Anthony Henman – Acho que poderia levar a um tipo de consumo de cocaína muito menos problemático. Para isso, teria que se admitir o consumo da folha de coca ou de algum produto que reproduz a sua farmacologia. Seria ainda um consumo de cocaína, mas levado a um padrão mais estável, que não faz nenhum mal ao organismo. Seria uma forma de admitir que essa planta existe, que essa substância existe e para certas pessoas pode ter utilidade. É justamente a atual lógica de tentar coibir que está levando o consumo de cocaína para formas cada vez mais danosas.
ISTOÉ – O crack é um exemplo dessa evolução negativa?
Anthony Henman – Sem dúvida é uma evolução perversa do mercado. O crack é uma espécie de McDonald’s da cocaína. É a forma de você vender em pequenas quantidades repetidas vezes e rápido. Não existe mais aquela história de 20 anos atrás, quando o traficante ficava testando o produto para ver se estava bom. Para vender um grama, perdia meia hora. Hoje em dia o negócio é muito mais rápido.
ISTOÉ – Quais os entraves legais ao uso da folha da coca para tratamento de viciados?
Anthony Henman – No Peru e na Bolívia existem pequenas experiências e não enfrentam problemas pelo fato cultural de o uso, em tribos, ser aceito. Eu sei que existem centros na Suíça e Holanda interessados nisso, mas enfrentam enormes dificuldades para enquadrar um projeto desse tipo dentro da legislação internacional antidrogas. A convenção única das Nações Unidas foi feita para dificultar ao máximo o comércio internacional desses produtos e especialmente de suas formas mais primitivas e vegetais. A maconha e a coca sofrem controles ainda maiores do que o ópio, já que a heroína pode ter uso médico.
ISTOÉ – É boa ou má a experiência do consumo de folha de coca nas comunidades indígenas?
Anthony Henman – Os índios usam folhas de coca há muito tempo. E percebe-se que ela funciona como um estimulante eficaz, que de fato traz muito menos danos do que a cocaína refinada. Você pode mascar folha de coca todo dia, a vida inteira, e isso não te fazer mal. Ele é um estimulante, mais ou menos no mesmo nível de dois cafezinhos diários. Não dá nenhuma fissura. Não entendo porque as sociedades ocidentais, em especial o Brasil, não levam em conta essa experiência de milhões de pessoas durante milhares de anos com relação a essa planta. Eles encontraram uma forma de conviver com ela que me parece sadia.
ISTOÉ – No Brasil há registro do uso da folha de coca?
Anthony Henman – Existe uma pequena área onde estive há uns 15 anos, no alto Rio Negro, na fronteira com a Colômbia. Lá, alguns grupos indígenas usam o que eles chamam de ipadu. A coca amazônica é preparada no Brasil de outra forma. O ipadu é um arbusto que dá umas folhas grandes. Elas são torradas e pulverizadas. Faz-se uma mistura com as cinzas. É uma coisa semi-elaborada.
ISTOÉ – Quando a Cannabis chegou ao Brasil?
Anthony Henman – O Brasil é o país das Américas que tem a tradição mais longa de uso de maconha. No Caribe, nos EUA e no México, a droga surge só no fim do século XIX. Enquanto no Brasil já existem boas indicações de que o consumo da maconha era relativamente comum a partir da segunda metade do século XVIII. Em 1930, no Rio de Janeiro, o uso era tão comum que houve uma portaria da prefeitura proibindo o "pito do pango" em estabelecimentos públicos.
ISTOÉ – O uso era restrito aos marginais e malandros?
Anthony Henman – Tem uma história de que Carlota Joaquina tinha um escravo que preparava todos os remédios para ela, e dizem que a rainha usava pelo menos a maconha em forma de infusão. Provavelmente não fumava, mas isso não se sabe com certeza.
ISTOÉ – Quando é que a droga tornou-se um fenômeno urbano no Brasil?
Anthony Henman – Um artigo de um médico baiano, publicado em 1915, trata do uso da maconha e fala dos problemas do abuso. O artigo refere-se à droga consumida por estivadores e trabalhadores braçais no cais do porto de Salvador.
ISTOÉ – Quando chegou à classe média?
Anthony Henman – Provavelmente só nos anos 50. Mas, nos anos 30, aparece em letras de samba. Tem uma música do Wilson Batista que se chama "Chico Brito" que diz assim: "Chico Brito fez do baralho seu maior esporte, é valente no morro, diz que ele fuma uma erva do norte". Isso é uma música de 1932, vem de um meio malandro carioca, sambista, que não é exatamente classe média, mas que já está chegando perto.
ISTOÉ – No que o seu discurso a favor da liberação das drogas difere das letras do Planet Hemp e do Gabriel, o Pensador?
Anthony Henman – Se um estudioso diz numa revista científica que a maconha não faz tanto mal assim, passa. Mas se você falar no palco "Olha, eu já puxei fumo e não caiu meu cabelo e tal", fica chocante. O que os músicos fazem é vir com um contra-discurso – "Olha, aquilo que estão dizendo, não é verdade". Mas eu não considero que seja uma apologia. É simplesmente uma tentativa de ir contra o domínio de um discurso proibicionista que é anticientífico, que tem pouca base nas realidades históricas e culturais de nossa época.
ISTOÉ – Por que este discurso persiste?
Anthony Henman – É um traço autoritário, não só dos regimes militares, mas até dos democráticos, repetir que essa planta é ruim, que ela produz um vício terrível e um estrago enorme ao organismo. Só que hoje existem mais de duas gerações que têm experiência com a maconha. Tem gente com 60 anos que conviveu com maconha a vida inteira. Sabem que esse discurso oficial sobre o malefício inevitável associado à droga, não é verdade. Quer dizer, algumas pessoas podem ter algumas reações problemáticas com a maconha, mas a grande maioria dos usuários é do tipo ocasional e consegue controlar o seu consumo.
ISTOÉ – O senhor então é defensor do "liberou geral"?
Anthony Henman – A gente quer encontrar outras soluções para cada tipo de produto. Então não é assim "liberar geral", qualquer coisa vale. Mas é olhar que tipo de consumo existe, qual está efetivamente criando problemas. Existe, por exemplo, um consumo massivo de maconha que não está criando grandes problemas. Não vejo porque isso não deva ser comercializado. Bastaria um certo controle. Já produtos químicos podem entrar num tipo de controle que existe para medicamentos. O usuário poderia então ir à farmácia buscar um produto puro e numa dose adequada. Assim não haveria overdose acidental, que é a maior causa de mortalidade por uso de opiáceos. É ridículo as pessoas estarem morrendo por acidente. Mas não significa que qualquer barzinho da esquina deva vender cocaína. Eu tenho participado muito dessas discussões. Fui até secretário executivo da Liga Internacional Antiproibicionista, que foi bancada pelo grupo verde dentro do Parlamento Europeu.
ISTOÉ – O Estado dessa forma não estaria abrindo caminho para a tragédia individual dos viciados?
Anthony Henman – Quando se fala em guerra contra drogas entra-se na contramão da história ética ocidental. É uma contradição. A nossa foi sempre a ética da alta responsabilidade, em que as pessoas são responsáveis por seus atos. Essa é a tendência há mais de 900 anos. De repente, nessa questão das drogas, por uma série de razões, a classe médica, depois o Estado e por fim a polícia passaram a ditar o que faz bem e o que faz mal às pessoas. Assim, tiraram do cidadão a própria responsabilidade. Tanto é que se criou o mito de que todos os usuários são irresponsáveis, de que não sabem o que fazem. É importante o músico dizer: "Você consumidor é responsável pelos seus atos". Então, se cair no vício, é o único responsável por isso. Não adianta pôr a culpa no traficante. Foi você que escolheu. E, se quiser sair, também não será o Estado, nem o médico que vão te salvar. A única pessoa que vai te salvar é você mesmo. Para conseguir, tem que haver vontade de parar.
Fonte: ISTOÉ nº 1467 (12 de novembro de 1997)
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