sábado, 1 de agosto de 1998
Quando a maconha cura
Está provado. Os efeitos medicinais da maconha beneficiam pacientes de câncer, AIDS, glaucoma e esclerose múltipla. Mas os médicos do mundo inteiro se vêem num dilema crucial. Como receitar um remédio que é proibido?
Rosângela Petta
Desde logo, é importante deixar bem claro: o uso de drogas como maconha e outras substâncias alucinógenas ou psicotrópicas, sem orientação médica, é perigoso. O vício das drogas prejudica os jovens e constitui um problema social. A forma de resolvê-lo é uma discussão em aberto, mas não é o tema principal da reportagem que você vai ler a seguir. Aqui, você será informado sobre os efeitos medicinais da maconha, entenderá por que os médicos desenvolvem cada vez mais pesquisas nessa área, e por que, muitos deles, concluíram pela recomendação do uso terapêutico dessa droga.
A comunidade científica começou a estudar a maconha a sério em 1964. Nesse ano, o pesquisador Raphael Mechoulan, da Universidade de Tel Aviv, em Israel, extraiu da erva natural uma substância chamada delta-9-tetraidrocanabinol. Era o THC, o principal responsável pelos efeitos da Cannabis sativa (nome científico da planta de maconha). Como também aprendeu a sintetizar o THC, Mechoulan viabilizou, pela primeira vez, o estudo sistemático de suas ações no corpo humano.
Há muito tempo se ouvia falar nas virtudes terapêuticas da erva. Na verdade, a sua história é quase tão antiga quanto a civilização: há seis mil anos, aparecem no mais antigo texto medicinal conhecido, o Pen Ts’oo Ching, chinês, sugestões de uso da planta. Ela era indicada para problemas como asma, cólicas menstruais e inflamações da pele. E assim foi até recentemente, afirma o bioquímico John Morgan, da Universidade da Cidade de Nova York. “Nos Estados Unidos, a asma, a dor e o estresse foram combatidos com chás e outros preparados de maconha (mas não cigarros) comercializados por grandes empresas, como Parke Davis, Eli Lilly e Squibb.” O negócio acabou em 1937, quando a erva foi proibida nos EUA por lei federal.
Após a descoberta de Mechoulen, a indústria voltou a se empenhar e, logo no início dos anos 70, surgiram os primeiros remédios à base de THC sintético, cujo uso é autorizado, em casos especiais, na Europa e nos Estados Unidos. Dois deles são fabricados atualmente: o canadense Nabilone e o estadunidense Marinol. Em forma de cápsulas, eles ocuparam um mercado em crescimento: o dos pacientes de câncer e de AIDS. É verdade que o THC também é benéfico em outros casos. Mas foi a gravidade dessas duas doenças que justificou a atenção dada à maconha como recurso terapêutico. A Cannabis não cura o câncer ou a AIDS. O que ela faz com eficiência é aliviar o sofrimento decorrente dessas doenças.
A partir de 1975, os médicos perceberam que o THC ajudava a superar crises de náusea e vômitos provocadas pela quimioterapia, tratamento que busca controlar os tumores cancerígenos. O mal-estar que decorre da quimioterapia pode se tornar intolerável se não for controlado e há pacientes que não conseguem dar continuidade ao tratamento. Por isso, o uso da maconha pode ser decisivo. Daí que na mais abrangente pesquisa estadunidense, feita pela Universidade Harvard em 1991, 70% dos cancerologistas perguntados responderam que recomendariam o uso da erva natural se esta fosse legalizada. Quase metade (40%) disse que a aconselhava, mesmo sendo ilegal. Nesse mesmo ano, a Organização Mundial de Saúde reconheceu a maconha natural como medicamento.
No caso da AIDS, o efeito mais importante é o de estimular o apetite. Pacientes de AIDS perdem em média 4 quilos por mês e podem morrer de desnutrição. O desejo de comer vem com a ajuda do THC. Alguns recorrem às cápsulas e outros aos cigarros, que continuam proibidos na maioria dos países. E a ilegalidade da maconha natural - para fumar - é um problema, porque grande número de médicos acha que ela é bem mais eficiente que a sua irmã artificial. Claro, isso não significa que ela seja indispensável. Mesmo porque há outros medicamentos disponíveis. Um exemplo, no caso do câncer, é a substância Odonsetron, muito receitada. Em comparação, o Marinol tem eficiência apenas moderada, diz o oncologista brasileiro Sérgio Simon. Outro problema é que nem todos toleram os efeitos não-medicinais do THC. São comuns os acessos de riso, moleza no corpo ou boca seca. Com tudo isso, quem resumiu bem a questão foi o professor de farmacologia Roberto Frussa Filho, da Universidade Federal Paulista/Escola Paulista de Medicina. “A maconha funciona”, disse ele à SUPER. “O que precisamos é avaliar se e quando vale a pena usá-la. Acho que pode se tornar uma opção para quem não aceita o tratamento convencional”.
No decorrer dos anos 90 o estudo científico da maconha avançou muito, apesar de vários contratempos importantes. O maior deles foi criado pelo governo estadunidense na tentativa de dar mais força à campanha antidroga. Em 1992, por exemplo, os EUA cortaram um importante programa federal de pesquisas sobre o valor terapêutico da planta, tirando recursos valiosos dos cientistas. Também suspenderam as autorizações especiais para que alguns pacientes usassem cigarros, complicando o desenvolvimento das terapias. As autorizações, até certo ponto, contornavam o problema da ilegalidade. Que são muitos, como lembra o brasileiro André Vilela Lomar, infectologista do Hospital Albert Einstein, de São Paulo. Ele explica a situação em que estão os pacientes de AIDS que aceitam bem o cigarro de maconha como estimulante de apetite: “Apesar disso, não recomendo. Justamente porque a maconha é ilícita, não se pode ter controle sobre a sua procedência, saber se está misturada a um mato ou se contém algum fungo”. No Brasil, a questão da legalidade atinge até o Marinol (comercializado nos Estados Unidos desde 1985), que utiliza o THC sintético. De acordo com o farmacologista Elisaldo Carlini, secretário nacional da Vigilância Sanitária, está sendo avaliada pelo Ministério da Saúde a possibilidade de liberar o uso do remédio. Carlini fez o anúncio há cerca de três meses.
Mesmo com todos os obstáculos, esta década trouxe muitas novidades sobre a Cannabis. A mais sensacional foi a descoberta dos locais em que ela age, no cérebro. Isso é importante porque a planta contém cerca de sessenta substâncias, chamadas coletivamente de canabinóides. Elas são as responsáveis pelos efeitos da planta no corpo mas não se sabia exatamente como cada uma delas atua no organismo. Então, em 1991, descobriu-se que as células do cérebro têm uma substância, ainda sem nome, cuja função é reagir quimicamente com os canabinóides. Ou seja, é por meio dela que os canabinóides afetam o cérebro e, a partir daí, o resto do organismo. Substâncias desse tipo são denominadas “receptores” pelos cientistas. A receptora dos canabinóides foi identificada em 1991 por duas equipes de cientistas nos Estados Unidos, uma da Universidade de Saint Louis e outra do Instituto Nacional de Saúde. Desde então, uma busca cuidadosa revelou quais são as regiões do cérebro mais ricas em receptores. O mapa dos receptores já revelou pistas interessantes. Ele mostra que os compostos da planta atuam em regiões cerebrais relacionadas com a memória, com os sentidos, com a capacidade de aprender e com os movimentos do corpo, inclusive a sensação de equilíbrio. E a maconha realmente afeta a memória, os sentidos, o aprendizado e o equilíbrio.
Na prática, porém, ainda há muito que conhecer. Os próprios efeitos da maconha ainda são incertos e podem ser contraditórios, como explica o farmacologista Isaltino Marcelo Conceição, do Instituto Butantã. “O THC é um depressor, mas quando a maconha é consumida em grupo costuma trazer euforia”. De acordo com o farmacologista Frussa Filho, é difícil comprovar os efeitos porque os estudos clínicos - nos quais se acompanha de perto o comportamento de um usuário - ainda são muito poucos. Também atrapalha o fato de a maconha ser usada, freqüentemente, em combinação com o álcool e com o tabaco. Por último, o entrave que parece ser o dilema decisivo atualmente: o da ilegalidade da droga.
Como separar a maconha que pode curar daquela que está misturada às mazelas sociais do vício e do tráfico? Quando for possível dar uma resposta a essa questão, vai ficar mais fácil conhecer melhor as suas virtudes e os seus defeitos. A Cannabis está conquistando uma fatia dos negócios convencionais. Plantada em fazendas especiais, autorizadas pelo governo de alguns países, ela se transformou em uma fonte surpreendente de matérias-primas, com as quais se produzem desde cosméticos até papel, roupas e alimentos. Um bom exemplo desses produtos vai estar nos seus próprios pés em breve. Depois de um ano de testes, a Adidas está lançando, em todo o mundo, um novo modelo de tênis para passeio. Trata-se do Chronic, que, na gíria americana, significa fumante de maconha. Feito de cânhamo, a fibra que se encontra no caule e nos galhos mais robustos da planta de maconha, o Chronic tem um ínfimo teor de THC. “Estamos vendendo um conceito ecológico”, diz Marta Maddalena, gerente de produto da Adidas do Brasil, que vai importar o calçado. “Essa fibra não passa por processos químicos, não danifica o meio ambiente e tem uma cara rústica. É como arroz integral.”
A idéia, sem dúvida, é boa. O mundo inteiro anda atrás de materiais alternativos. Em 1993, a Inglaterra colheu sua primeira safra de Cannabis inteiramente legal, plantada em 30 locais do país. As fazendas são subsidiadas pelo Fundo Agrícola da Comunidade Européia. Foram 7500 toneladas de cânhamo, aproveitadas, entre outras coisas, na produção de papel. Resultado: desde os tradicionais saquinhos de chá e até formulários da justiça britânica são hoje produzidos a partir do arbusto. A França também pediu e obteve apoio da Comunidade Européia baseando-se em argumentos econômicos e ecológicos para fazer papel. Afinal, a Cannabis rende quatro vezes mais do que o eucalipto, com a vantagem de ter menos lignina, substância nociva ao meio ambiente. Itália e Espanha também estão processando fibras para fazer papel do mesmo jeito. Com muito mais motivo, os europeus passaram para os tecidos, cuja afinidade com o cânhamo vem de muitos séculos. No Egito dos faraós, ele era usado em cordas e velas de embarcações. No mundo moderno, ele está virando os hemp jeans (em inglês, hemp significa cânhamo). A fibra está sendo aproveitada ainda em pranchas de esquiar na neve, as snowboards. Na Suíça, a idéia foi transformar as folhas em xampus e cremes faciais. Tanto na Europa como nos Estados Unidos, se utilizam as sementes para obter prateleiras inteiras de supermercado: detergentes, fertilizantes, diversos óleos, molhos comestíveis e queijo vegetal.
Fonte: Superinteressante nº 8, agosto de 1995.
quarta-feira, 1 de abril de 1998
A Veja da maconha
Abril de 1998, Trip nº 49
Sucesso editorial, a revista High Times, que se dedica à "Cannabis culture", merece uma tese. Em entrevista exclusiva, seus editores Steven Hager e Peter Gorman falam como se impõem no mercado de publicações americano, defendendo o uso consciente da erva e denunciando a politicagem que envolve sua legalização.
Steven Hager
Peter Gorman
Vavá Ribeiro e Fábio Massari
A revista norte-americana High Times - bíblia dos maconheiros convictos - foi fundada em 1974 por um visionário (anti)herói da contracultura chamado Gary Goodson, mais conhecido como Tom Forcade, ou Thomas "King" Forcade, ou Reverendo Forcade, para os íntimos. A máxima "live fast die young" caiu como uma luva para o alucinado Forcade. Sua vida foi uma aventura cinematográfica em fast-forward, um grande delírio protopsicodélico, com gigantescas bad trips. Meteu-se com os Sex Pistols e com Woodstock; uniu o "underground" americano através do seu Underground Press Syndicate; liderou os "yuppies", fundou os "zippies" e depois brigou com todo mundo; foi perseguido pela CIA e FBI; provocou a morte de seu melhor amigo numa manobra ilegal espetacular e… se suicidou aos 33 anos.
A história da High Times é pontuada por momentos razoavelmente distintos. O período de 1974 a 1978 representa os momentos mágicos de surgimento e estabelecimento de um canal para a cultura da maconha, agindo como agente catalisador de atitudes contraculturais, que viriam a definir posturas com relação a todo establishment rançoso que se intrometesse no caminho.
Setembro de 1977:
Um patrimônio jornalístico norte-americano. O homem do "gonzo" (matriz do texto praticado por muitos da revista), abre o bico: É o fora-da-lei-mor Dr. Hunter S. Thompson.
Segundo Hager, "a revista perdeu seu foco depois da morte de Tom". No período que vai do finalzinho dos anos 1970 até 1983, a High Times viveu de festas, de atmosfera selvagem, com a cocaína dominando a cena. Foi aí que a revista perdeu público, só recuperado com a eliminação total do pó e com a volta às origens editoriais políticas, com ênfase no aspecto social da cultura da maconha e destaque para o cultivo. "Ao invés de lidar com o traficante, incentivamos o público a plantar sua própria maconha. Isso deu nova vida à revista", ensina Hager.
Novembro de 1980:
Os delírios sonoros do fundador Tom Forcade partem para a briga. O tiozinho doidão da tradição americana, Willie Nelson; o escrotinho doidão da antitradição britânica Johnny Rotten, e o antológico título: "Essa capa não é grande o suficiente para nós dois".
No final dos anos 1980, a High Times impõe novos ritmos às tribos devotas à maconha, instaurando definitivamente o "hemp moviment". De lá para cá, não parou de crescer nos EUA e no mundo, conquistando a cada dia aliados importantes na briga contra uma "situação intolerável", como definem os editores.
Fevereiro de 1989:
Uma das várias capas de outro doutor da família High Times, o Dr. Trips, Jerry Garcia. Numa das chamadas, uma pérola: "Fumamos bananas com David Peel". O David "Casca" é mais um dos heróis "cult" da contracultura americana, que em 68 lançou com a banda Lower East Side o dope classic Have a Marijuana, de onde saiu a música-hino I Like Marijuana. Em 1972, John Lennon produziu um disco de Peel chamado The Pope Smokes Dope (Peel está vivo e continua doidão).
A High Times ultrapassa a barreira dos 20 anos de atividade em plena forma. A idéia de que a revista é puramente panfletária é um estigma que não incomoda mais seus responsáveis, nem seu público. Afinal, as tão faladas cotações do mercado da maconha que a revista apresenta a cada edição, e as deliciosas e proibidas receitas de comida à base da erva não passam de meros coadjuvantes numa estrutura editorial muito mais rica, instigante, perigosa.
Agosto de 1995:
Uma das melhores de todos os tempos. Um alienígena com um baseado. Nos olhos do ET, os campos de erva. "Leve-me ao seu 'dealer'".
Por trás do tratamento de superstar concedido à planta, a High Times joga com lances jornalísticos de fazer inveja, de fortes implicações sociais, políticas e culturais. Do acompanhamento das ações oficiais e ilegais no processo de desenvolvimento das técnicas de plantio, tratamento industrial e uso médico da maconha às mais delirantes incursões filosóficas, religiosas e espirituais, passando por denúncias complexas, High Times acontece.
O homem da Cannabis
Editor da revista mais odiada pelo FBI e CIA - a High Times, especializada na cultura Cannabis -, Steven Hager, 44 anos, é uma das cabeças mais polêmicas da imprensa norte-americana. Ele articula (e imprime) um jornalismo que mescla doses de hedonismo, aventura, verdade e informação, no estilo "doa a quem doer". Híbrido de Lou Reed e Tom Wolfe, Hager é o maior responsável por perpetuar o sucesso editorial da High Times. Em entrevista exclusiva, Hager recrimina a imprensa norte-americana e acusa o governo Clinton de tráfico de drogas.
Trip - Como a High Times entrou em sua vida?
Steven Hager - Um amigo me convidou para ajudar na revista. Depois que Tom morreu, a revista perdeu o foco original, virou um fanzine de festa, com muita cocaína e drogas pesadas. Eu entrei há dez anos para buscar as bases originais. Uma revista política, que defendesse as aspirações e objetivos da cultura Cannabis, incentivando a filosofia de plantio próprio.
Trip - Qual o perfil do leitor da High Times?
Steven Hager - Existem basicamente dois: os velhos hippies Jerry Garcia e a nova geração de rave, ciber punks. Somos muito populares na faixa dos 19, 20 anos.
Trip - Como funciona uma revista nos Estados Unidos, divulgando e incentivando o uso de drogas ilegais?
Steven Hager - O governo não gosta de nós. Já tentaram nos desativar. Mas temos o direito constitucional de imprimir a informação. A liberdade de imprensa na América é protegida e nós não concordamos com a política adotada pelo governo a respeito da Cannabis. Nós acreditamos que é a planta ecologicamente mais eficiente do planeta. Mas o governo não acha isso. Não tem meio termo: ou estamos certos ou eles estão.
Trip - Vocês têm algum interesse no Brasil?
Steven Hager - Yeah, a gente sempre manda um repórter se infiltrar pela América do Sul. Peter Gorman está sempre lá.
Trip - Se vocês tivessem um canal na TV norte-americana, que tipo de programação ou informação vocês passariam?
Steven Hager - Poríamos a verdade sobre a guerra contra as drogas. O governo conspira para vender drogas pesadas e a CIA é envolvida com o tráfico de heroína e cocaína. Ao mesmo tempo, o governo sabe a verdade sobre a Cannabis, que é a melhor medicina para a glaucomia, asma, AIDS, câncer, escleroses, dor de cabeça… Eles sabem disso, mas tentam esconder do povo. Basicamente, a situação é: o governo quer prender, perseguir pessoas doentes, se recusa a aceitar o uso industrial, farmacêutico, religioso e o direito espiritual. Isso tem que mudar.
Trip - Qual seria a principal corporação contra a legalização da maconha?
Steven Hager - Com certeza, a indústria farmacêutica. É um mercado de bilhões de dólares. Medicina e farmacêuticos não deveriam ser fontes industriais voltadas ao lucro. Em outras palavras, elas tiram o dinheiro de pessoas doentes com a finalidade de capitalizar bilhões de dólares. Nós deveríamos cuidar dos doentes, ricos ou pobres. Sendo assim, eles controlam todas as patentes de drogas sintéticas, se opondo a qualquer tipo de medicina natural.
Trip - Qual a linha de jornalismo que a High Times busca?
Steven Hager - Basicamente, o bom, a verdade, algo que acrescente ao povo. Qualquer coisa longe do jabá sobre as celebridades que a maioria das revistas americanas faz. O jornalismo é decadente nos Estados Unidos; 90% do foco é voltado para fofocas sobre estrelas do cinema e etc. Isso não nos interessa enquanto a CIA está matando e mentindo para o povo.
Trip - Quais são os pré-requisitos necessários no currículo para trabalhar na High Times?
Steven Hager - Alguém que saiba escrever honestamente, pesquisar a fundo e juntar as peças para uma história interessante. Não existem muitos jornalistas interessados em trabalhar para a cultura Cannabis porque não existe muita grana, nem futuro. Ninguém fica rico escrevendo sobre a corrupção do governo nos Estados Unidos. Pelo contrário, se você quiser fazer grana como jornalista, você tem que escrever sobre celebridades.
Trip - Em uma das capas, no passado, vocês colocaram o ex-presidente Jimmy Carter com uma colher de cocaína no nariz. Vocês acreditavam, na época, na ligação do governo americano com o Cartel de Medellin?
Steven Hager - Não, mas havia pessoas no staff de Jimmy Carter que usavam muita cocaína. Ele, pessoalmente, não usava. Foi uma das melhores capas que a revista já publicou, mas não foi justo com Jimmy Carter.
Trip - Vocês se meteram em encrenca por causa disso?
Steven Hager - O que ocorreu é que Jimmy Carter era a favor da legalização da maconha. Depois do fato, ele mudou de política, o que, na minha opinião, atrapalhou todo o processo de legalização.
Trip - E se Clinton estivesse na capa do próximo número? Qual seria a chamada?
Steven Hager - Clinton é um político incrivelmente corrupto. Se fôssemos falar alguma coisa sobre ele, não seria nada bom. Acho que ele tem conexões com o aeroporto de Arkansas, onde entra cocaína e saem armas. Ele era o governador de Arkansas na época e, certamente, ele sabia o que se passava naquele aeroporto.
Trip - E essa história dele fumar, mas não tragar?
Steven Hager - Acho que ele já fumou muito.
Trip - Como vocês conseguem tantas informações confidenciais sobre atividades ilegais do governo?
Steven Hager – É bem fácil. É só seguir a trilha do dinheiro. Vários livros já foram escritos sobre o envolvimento da CIA com o tráfico de drogas. Uma vez, o tenente-coronel Bough Rytz, astro da guerra do Vietnã, reuniu-se com Cuntah, que era o senhor da Guerra do Ópio, na Birmânia, e gravou um vídeo com Cuntah declarando que Richard Armatage - na época assistente pessoal de George Bush - era seu maior comprador de heroína. Bough Rytz filmou e mostrou o vídeo em frente ao Congresso e, três dias depois, foi preso. Em vez de prenderem Armatage e revelarem ao público toda a trama, eles prenderam o cara que tentou mostrar a verdade. Este é o ponto. O difícil não é descobrir o que acontece, mas sim conseguir justiça.
Trip - Vocês têm diversos contatos e conhecem bem traficantes e conexões. O que impressiona é como vocês não sofrem atentados e pressões políticas do governo!
Steven Hager - Porque, no passado, nunca funcionou. E pior: nos dá publicidade. Quando eles nos prendem, nós berramos e o resto da imprensa se sente ameaçada e nos protege. O que eles tentam é nos ignorar e rezar para nós sumirmos. Mas isso não acontecerá.
Trip - O que você espera para o futuro da situação da Cannabis?
Steven Hager - Gostaria que fosse legalizada, que as pessoas tomassem consciência que gera benefícios econômicos, ecológicos, medicinais e espirituais para todos.
Trip - Qual seria o maior passo a ser dado para a legalização?
Steven Hager - Temos que provar economicamente que o Hemp é a solução e traz lucro. Na hora em que Wall Street vir o dinheiro que se pode lucrar, eles vão querer a legalização.
Trip – Você tem algum conselho para as organizações em prol da legalização no Brasil?
Steven Hager - Continuem a provar que é uma solução inteligente e ecológica. Use com responsabilidade, pois quanto mais você fuma, menos você obtém da planta. Se você fumar o dia todo, não estará se beneficiando. Se você não tem um motivo médico para fumar o tempo todo, não o faça. Nós temos que ensinar as pessoas a usarem a Cannabis de uma maneira inteligente.
Fonte: Revista Trip nº 49 (Abril de 1998)
http://www2.uol.com.br/trip/49/maconha/home.htm
quarta-feira, 25 de março de 1998
Descriminalização, prevenção e cura
A juíza carioca da Justiça Militar, Maria Lúcia Karam, 48 anos, esteve em São Paulo para participar da 9ª Conferência Internacional sobre a Redução de Danos Causados pelas Drogas. Tem como credenciais treze anos de atuação em Varas Criminais e da Família no Rio de Janeiro. Defende a total descriminalização do porte, uso e comércio de drogas. Na quinta-feira, 19, falou com ISTOÉ:
ISTOÉ – Por que a senhora defende a descriminalização das drogas?
Maria Lúcia – A proibição do consumo fere o princípio constitucional da liberdade individual. A liberdade individual implica o próprio direito de uma pessoa fazer mal a si mesma.
ISTOÉ – Um adolescente de 13 anos que use drogas sabe o que é autodestrutivo ou não para ele?
Maria Lúcia – Sim.
ISTOÉ – A proibição é o melhor controle?
Maria Lúcia – É um controle perverso. A ilegalidade traz violência e corrupção.
ISTOÉ – Se liberar, como seria a comercialização?
Maria Lúcia – Regulada pelo mercado e sujeita à livre concorrência. A quantidade e os locais de venda é que teriam de ser limitados, e a propaganda, proibida. Isso já deveria acontecer com o álcool e o tabaco. O Ronaldinho anunciando “a número um” não dá, né?
ISTOÉ – A descriminação vale para maconha, cocaína, crack, heroína, etc.?
Maria Lúcia – Todas devem ser liberadas porque o problema não é a droga em si, mas a relação do indivíduo com ela. Pode-se usar drogas recreativamente ou não.
ISTOÉ – A senhora não acha que a questão das drogas extrapola o controle sobre o próprio corpo?
Maria Lúcia – Descontrolar-se faz parte da liberdade. Só que se o descontrole faz alguém buscar as drogas, esse alguém deve ser tratado. Não adianta prender ou internar. Tem de tratar a origem do descontrole.
Um kit básico com seringa descartável, água destilada, hipoclorito de sódio (água sanitária), algodão embebido em água e recipiente para diluição vai ser distribuído a usuários de drogas injetáveis do Estado de São Paulo num programa de prevenção à AIDS. Isso garante material esterilizado, sem o risco de contaminação. A nova lei foi regulamentada no sábado, 14, um dia antes da abertura da conferência da qual Maria Lúcia participou juntamente com 800 especialistas de 50 países. O custo para o Estado de um dependente dentro de um programa de troca de seringas é de US$ 150 por ano. Um doente de AIDS custa entre US$ 12 mil e US$ 25 mil anualmente.
Wilson Roberto Gonzaga da Costa (diplomado pela Universidade de São Paulo) é psiquiatra há duas décadas. Ele acredita que o chá de ayahuasca, popularizado pela seita do Santo Daime, ajuda o dependente a livrar-se das drogas. Costa tomou contato com o chá há 16 anos e desde então o toma regularmente, sempre num contexto ritualístico. Afirma que nesses anos viu muitas pessoas mudarem suas vidas devido ao uso do chá e acredita que ele tem o "poder de cura". Na última semana o Conselho Federal de Medicina ameaçou cassar o registro de Costa caso fossem confirmadas as notícias de que ele estaria usando o Daime para tratar mendigos do centro de São Paulo. "Apenas faço um trabalho social com mendigos do bairro de Santa Cecília. Não se trata de um tratamento", diz ele.
ISTOÉ – O Daime cura dependentes?
Wilson Costa – Cura. Não tenho dúvidas sobre isso. No Peru existe um centro de tratamento de usuários de drogas que utiliza o chá de ayahuasca com essa finalidade.
ISTOÉ – No Brasil o chá só é liberado para uso religioso. O senhor está tratando dependentes com o chá?
Wilson Costa – Eu não estou fazendo um tratamento. O chá não pode ser usado fora de um contexto ritualístico. E eu sou um médico e respeito os princípios éticos da minha profissão.
Fonte: http://www.terra.com.br/istoe/semana/148610f.htm