8 de setembro de 1999, ISTOÉ
As autoridades começam a tratar o problema das drogas mais como questão de saúde do que como caso de polícia.
Bruno Weis e Clarisse Meireles
Há sinais de fumaça no ar. Um incêndio está queimando antigas formas de olhar um velho problema: o uso de drogas. Um dos sinais de mudança foi dado quando o ministro da Justiça, o advogado José Carlos Dias, declarou-se, há duas semanas, favorável à descriminalização da maconha. Outro sintoma de transformação apareceu quando o ator Maurício Mattar, namorado da vice-rainha dos baixinhos, Angélica, ousou arranhar sua imagem saudável de galã, mencionando dependência de cocaína. Obteve compreensão do público e o apoio da bem-comportada Angélica, que pôs de lado rixas temporárias para reatar com o rapaz em apuros. Outro artista, Gabriel Vilella, um dos mais consagrados diretores teatrais do País, expôs também sua batalha contra a dependência. As declarações do ministro, do galã e do diretor mostraram que já é possível um discurso sobre droga que não seja o da condenação sumária. Manifestar uma opinião tolerante, ainda que sobre casos específicos, ou revelar envolvimento já não contêm o risco imediato de maldição. É evidente que o assunto está rompendo a casca do tabu. E isso abre caminho para muitos progressos. "No Brasil, os usuários de maconha deveriam ter tratamento educacional, e não ser mandados para a prisão", disse o ministro da Justiça, que admira legislações como a holandesa e a suíça, que permitem o uso e a venda de pequenas quantidades de drogas consideradas leves.
O Brasil ainda não é a Holanda, mas uma nova atitude está empurrando o tema para fora do território paralisante da moral e da repressão. "A questão das drogas é muito mais um problema de saúde pública do que de polícia. É como na AIDS: a prevenção e a educação são cruciais para se enfrentar o problema", afirma o ministro José Serra, da Saúde. "Nos EUA a política repressora adotada há quase duas décadas não acabou com o problema das drogas." No Brasil, a julgar pelo consumo, a repressão também é um fracasso. O Ministério da Justiça registrou, em 1997, 49.775 ocorrências policiais de tráfico ou consumo. Esse número subiu em 1998 para 53.569 ocorrências. Segundo a última pesquisa do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas (Cebrid), de 1997, 25% dos estudantes de primeiro e segundo graus das escolas públicas de dez capitais já provaram, pelo menos uma vez, alguma substância ilícita. A maconha e a cocaína, na comparação com a pesquisa de 1993, se tornaram mais populares. O Ministério da Saúde informa que as internações por uso de droga dobraram de 1997 para 1998. Nos Estados Unidos, a postura de tolerância zero – que aumentou dez vezes o número de presos por droga entre 1980 e 1996 – conseguiu baixar o consumo, mas o combate provocou tantas injustiças que se tornou um trauma social e está sendo posto em xeque. A recente polêmica em torno das experiências juvenis do candidato republicano George W. Bush com cocaína revela a desigualdade: negros e latinos respondem a esse tipo de questão na cadeia.
No Brasil, os pobres são ainda mais desprotegidos diante da repressão. "Um filho de fazendeiro flagrado com 700 gramas de maconha é considerado usuário ao alegar que é para seu uso pessoal. Se um moleque é pego com duas trouxinhas na favela, já entra como traficante", compara o deputado estadual Hélio Luz (PT-RJ). O fracasso dessa política e a conseqüente expansão do consumo expõem a população, sobretudo os jovens, ao risco da dependência. "Drogas como cocaína e crack não apenas lesam seriamente a saúde do usuário como podem alterar seus valores", diz Arthur Guerra, psiquiatra e coordenador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Droga (GREA), do Hospital das Clínicas de São Paulo, que atende 500 casos por mês.
Mal menor
A devastação provocada pela cocaína e pelo crack – consumido por 27% das crianças de rua de São Paulo, segundo a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social – está dando novos rumos à política de prevenção. Ela se sustenta na diferenciação dos danos de cada substância. "Algumas drogas são mais maléficas do que as outras", avalia o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Marco Vinicio Petrelluzzi. "O crack tem um potencial muito grande de levar a pessoa para o crime. Pode ser mais chique apreender cocaína, mas é mais eficiente prender traficante de crack. Assim, obrigo o traficante a trabalhar com uma droga menos nociva", afirma. "Já roubei dinheiro do meu pai para comprar cocaína. Se não tivesse dinheiro, teria me prostituído", diz L., 21 anos, internada há cinco meses em uma clínica de desintoxicação em Londrina (PR).
Pessoas como L., que têm acesso a uma ajuda profissional, são tratadas hoje com uma combinação de psicoterapia e medicação. Trabalha-se assim nas 12 unidades da clínica de desintoxicação Vila Serena, espalhadas pelo País, com cerca de 120 dependentes. "É preciso entender os motivos de cada um e mudar sua percepção de que o mundo é uma droga", explica John Burns, o diretor da clínica. Para ele, o maior desafio da recuperação está em devolver o dependente ao convívio social. Por isso, acredita que os tratamentos que não isolam o dependente são mais eficientes. O compositor Lobão, que foi preso por porte de cocaína e hoje é abstêmio, recorda: "Nunca cheirei tanto quanto na época que saí da cadeia." Numa clínica as chances de recuperação giram em torno de 35%. Programas de empresas que tratam sem tirar do trabalho elevam as chances para 60%. Walter Fanganiello Maierovitch, secretário nacional antidrogas, tem uma contribuição nesse sentido. "Temos um plano para tratar os dependentes em suas casas. Os profissionais de saúde não sabem lidar com a dependência, mas vamos acabar com isso", garante Maierovitch.
A maioria das famílias também é mal informada. O psiquiatra Arthur Guerra relata: "Tem mãe que liga desesperada por ter achado um baseado na calça do filho e tem mãe que demora anos para perceber a dependência de um menino que está pedindo socorro." Para ele, tanto o exagero quanto a omissão são prejudiciais. "Nem sempre um baseado é caso de consulta médica." O aumento da informação circulante tem reduzido o pânico diante da maconha, uma substância que, embora ilícita, não ameaça a vida. "A única possibilidade de você morrer de overdose de maconha é cair um pacote de 20 quilos na sua cabeça", ironiza o deputado federal Fernando Gabeira (PV-RJ). Felizmente, em algumas famílias, drogas é assunto na mesa de jantar. Foi assim que o escritor Dau Bastos, autor do recém-lançado O fino da erva, conduziu o assunto com o filho, João, 20 anos, estudante de Letras. Sempre conversei com meu filho e, se eu o pegasse fumando um baseado, pediria para ele se informar."
Confiança
Os registros do Grupo de Apoio e Proteção à Escola (GAPE), da Polícia Civil de São Paulo, mostram que, no ano passado, 41 estudantes de todos os níveis sociais envolveram-se com drogas. Só nos primeiros seis meses deste ano, 35 casos foram identificados. Muitos pais e professores pedem mais policiamento, mas amadureceu entre os educadores a defesa da relação de confiança entre o adulto e o adolescente, como a melhor proteção. O laboratório toxicológico Maxilab, em São Paulo, lançou um programa de prevenção que inclui testes de urina, sangue e cabelo sem aviso prévio. A reação foi negativa. "Entre ser flagrado e evitar a escola, o jovem escolheria o mais fácil. Ele se afastaria e aí teria perdido um canal de ajuda", diz a pedagoga Mirza Macedo, do colégio Augusto Laranja. "Ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo", diz o secretário Maierovitch. "Queremos um plano que não provoque rejeição e para isso vamos ouvir a sociedade."
Os brasileiros querem discutir. Num debate promovido no Teatro Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, na segunda-feira 23, com o título de "A Cannabis e seus usos", os participantes defenderam mudanças na legislação. Por não determinar a quantidade de droga que distingue o consumidor do vendedor, a lei expõe um usuário ao risco de ser condenado a até 15 anos de detenção, pena máxima para tráfico. Por isso, o advogado Alexandre Dumas comemora duas decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça. A primeira, de abril deste ano, beneficiou um réu condenado a quatro anos de prisão por tráfico de drogas. A pena foi convertida em trabalhos comunitários. "É uma decisão libertária, pois os condenados a menos de quatro anos muitas vezes são usuários e não traficantes", diz Dumas. A jurisprudência põe em dia um atraso legal que distorce a realidade.
Outro avanço na mentalidade brasileira é a noção de que o perigo não mora apenas nas substâncias proibidas. No Brasil, o álcool é responsável por mais de 90% das internações hospitalares por dependência, além de aparecer em 70% dos laudos cadavéricos das mortes violentas. Hoje se vê melhor que o consumo de drogas é um dos sintomas de uma doença social mais profunda. "O consumo da sociedade atual tem uma função psicótica. Shopping e cartão de crédito também são drogas", denuncia Lobão. O psicanalista francês Charles Melman, que fez uma palestra no Rio, há duas semanas, sobre o adolescente e as drogas, comenta a atração que elas exercem: "As drogas permitem uma suspensão temporária da existência. É como se houvesse um meio de apagar as luzes por um breve momento. É como se as drogas fossem um medicamento da existência, pois sabemos que a existência é, em geral, difícil e conflituosa." Diante da angústia, muitos indivíduos se drogam. Diante da droga, muitas sociedades preferem elegê-la como bode expiatório a pôr o dedo em seus verdadeiros problemas. Isso está mudando.
Colaboraram: Mário Simas Filho e Rita Moraes (SP) e Eduardo Hollanda (DF)
O método de descartes
Três livros sobre maconha foram lançados recentemente no País. O mais inusitado deles é Descartes e a maconha (editora Pazulin), escrito pelo filósofo francês Frédéric Pagès, que realizou uma pesquisa sobre o que fez o famoso filósofo francês durante os 21 anos em que morou nos Países Baixos, no século XVII. Na Holanda, Pagès visitou a casa de Descartes, hoje um museu, garimpou a correspondência do filósofo e estudou sua história. Tudo isso para sugerir que boa parte do brilhante pensamento cartesiano, inclusive sua consagrada obra O discurso do método, foi burilada sob o efeito inspirador do haxixe. Ou seja, como milhares de franceses fazem hoje em dia, Descartes foi para a Holanda fumar maconha.
O grande livro da Cannabis (Jorge Zahar Editor), do americano Rowan Robinson, é uma obra mais documental. Apresenta uma compilação histórica dos usos industriais, medicinais e ambientais do cânhamo – a planta da maconha. O autor ressalta a diversidade de uso da planta – matéria-prima para remédios, tecidos, papel, óleo lubrificante, tinta e material para construção – e conta a popularidade da planta nos Estados Unidos no começo do século. Para se ter uma idéia, George Washington e Thomas Jefferson, os dois primeiros presidentes americanos, eram plantadores de Cannabis. A primeira versão da carta de independência dos Estados Unidos, inclusive, foi escrita em papel de cânhamo. O livro também relata a transformação do cânhamo na maldita marijuana. Devido a um lobby da indústria petroquímica e têxtil, que queria evitar a concorrência com os plantadores de cânhamo, o movimento proibicionista se fortaleceu e conseguiu mudar a legislação americana sobre o cultivo da planta.
Único título brasileiro, O fino da erva (Editora Garamond), do escritor Dau Bastos, é uma espécie de guia para pais, filhos, professores e usuários da maconha. "É importante que se aumente a literatura sobre o assunto para combater a hipocrisia que domina a sociedade. A verdade é que quase todo mundo fuma, mas ninguém assume", afirma o editor Ari Roitman. Intercalando capítulos sobre os efeitos da droga e o universo dos usuários com trechos ficcionais, o livro busca diferenciar a erva das outras drogas e defende sua legalização. "É a única forma de acabar com o tráfico e com a violência decorrente dele", diz o escritor Bastos.
Recair não é o fim
Segundo o psiquiatra americano Alan Marlatt, em vez de encarar uma recaída como o fim do mundo, o paciente deve enxergá-la como um erro que pode ser reparado. Professor de Psicologia Clínica da Universidade de Washington e diretor do Centro de Pesquisas em Comportamento Aditivo, em Seattle, Marlatt veio ao Brasil para participar do 13º Congresso Brasileiro de Alcoolismo e Outras Dependências, realizado em agosto, no Rio de Janeiro, e lançar a edição brasileira de seu livro Redução de danos (Ed. Artmed), em que defende uma abordagem mais humanista e pragmática em relação ao usuário de drogas.
ISTOÉ – O senhor recomenda ver a recaída como um desafio e não como um fracasso. O que quer dizer com isso?
Alan Marlatt – O que devemos aprender é como não repetir o erro. É preciso identificar e evitar as situações de risco, sentimentos desagradáveis que costumam levar às recaídas: estados emocionais negativos, como raiva, ansiedade, depressão, tédio.
ISTOÉ – É necessário mudar de grupo social para deixar as drogas?
Alan Marlatt – Às vezes sim, porque a pressão social produz cerca de 20% das recaídas. As pessoas sentem vontade só pelo fato de ver as outras pessoas usando uma substância. Mas a maioria não precisa de programas para deixar de usar drogas.
ISTOÉ – É verdade que é tão difícil abandonar o tabaco quanto a heroína?
Alan Marlatt – As taxas de recaída são muito parecidas no caso do tabaco, da heroína e também do álcool. Apenas cerca de 15% das pessoas que tentam conseguem se manter abstêmias após 12 meses. O período mais crítico são os três primeiros meses. Há uma média de cinco tentativas até que se consiga parar, e só um quinto das pessoas consegue deixar o vício na primeira tentativa.
ISTOÉ – Mas isso não funciona para quem é dependente.
Alan Marlatt – Não, quem é dependente não sabe moderar. Precisa de programas de desintoxicação. Mas nem todos estão preparados para isso. É o caso do cantor Kurt Cobain. Ele não quis se tratar e não estava pronto para deixar a heroína. Sua mulher e os amigos tentaram levá-lo a um centro de recuperação em Los Angeles, mas ele voltou a Seattle e se matou. Poderia ter recorrido a um programa de redução de danos, com remédios como a metadona.
ISTOÉ – Como são esses programas?
Alan Marlatt – São procedimentos como usar agulhas descartáveis, no caso de drogas injetáveis, ou usar chicletes ou adesivos com nicotina. A abstinência é o objetivo ideal. A redução de danos é uma abordagem pragmática e humanitária. Já que as pessoas usam drogas, o que fazer para reduzir os riscos à sua vida e à sociedade? Nós enfrentamos uma grande resistência da Casa Branca, que tem uma abordagem moralista do assunto – a tal tolerância zero. O governo americano encara isso como uma posição pró-legalização das drogas, o que é falso.
Fonte: ISTOÉ nº 1562 (8 de setembro de 1999)
quarta-feira, 8 de setembro de 1999
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