quarta-feira, 15 de setembro de 1999

Um coquetel de drogas contra a impopularidade

15 de setembro de 1999, Folha de S. Paulo

Fernando Gabeira

O Brasil volta a discutir o problema da produção e consumo ilegais de droga. Os jornais só falam nisso e, paradoxalmente, não falam nisso. Suspeitos surgem de todos os lados a partir do trabalho da CPI do Narcotráfico. O estudante de medicina que fuzilou espectadores do filme Clube da Luta consumia cocaína. Esquemas mirabolantes, nomes romanescos como o de Fernandinho Beira Mar, tudo contribui para que a atenção nacional se concentre no tema.

Centenas de mensagens chegam ao Congresso aplaudindo os bravos deputados da CPI que, de fato, procuram realizar um trabalho honesto, dentro de suas convicções que são as da maioria do povo brasileiro: desmantelar o tráfico de drogas.

Todos conhecem minha posição minoritária nesse particular. Mesmo respeitando as convicções das milhões de famílias brasileiras preocupadas com o tema, não posso trair minha consciência e deixar de colocar as questões que precisam ser colocadas, sobretudo a um governo que, carente de popularidade em outras áreas, mergulha de corpo e alma na temática das drogas - drogas que não têm contra-indicação nem efeitos colaterais -, quando se trata de buscar a simpatia imediata do povo.

Acho que já tenho uma certa moral para falar assim do governo. Foi esse mesmo governo que nos pediu, a mim e a proibicionistas respeitáveis, como o Dr. Elias Murad, que realizássemos um debate nacional sobre o tema. Constituímos uma comissão especial, aprovamos uma nova política nacional da drogas na Câmara, tudo isso com o beneplácito do governo, e meses depois vimos esse mesmo governo dar um passo atrás e bloquear a aprovação do projeto no Senado.

O que aconteceu nesse meio tempo, além da saída do ministro Nélson Jobim, que era de certa forma mais interessado no tema do que seus sucessores? Foi criada uma Secretaria Nacional para tratar do assunto e também foram ampliados os laços com os norte-americanos que colocam esta questão como uma das mais importantes em nossa agenda bilateral.

Surgiram novas campanhas, algumas equivocadas como a do slogan “Sou careta mas sou feliz”, e o Presidente da República agora aparece pedindo uma cruzada nacional contra o tráfico de drogas. O general Alberto Cardoso pede que o povo ocupe as praças, como se não tivéssemos ocupado várias praças para denunciar a temática da violência.

O presidente Fernando Henrique chega a pedir, num jornal carioca, a prisão dos usuários, recuando da posição anterior.

Talvez tenhamos uns cinco ou seis milhões de usuários no Brasil e, como nossas cadeias estão vazias, a idéia é bastante prática.

Vou apontar apenas uma grande contradição dessa chamada política de drogas porque, se falar de todas, precisaria do espaço de um livro. Os médicos que tratam do alcoolismo no Brasil têm denunciado, sem nenhuma repercussão na mídia, que o país têm perdido parte do seu produto nacional bruto com os gastos desse hábito. Acidentes, ausência no trabalho, doenças crônicas, tudo isso nos faz gastar fortunas anuais, muito mais do que recolhemos em impostos.

No entanto, ao analisar a fusão da Brahma e da Antártica, o Cade tem de cumprir a lei e a lei pede que a fusão represente facilidade para consumidor e mais eficácia na produção, para que a nova grande empresa seja criada. Ora, essas duas condições vão aumentar o consumo e, portanto, aumentar nossos dissabores físicos e econômicos.

Assim é o Brasil. De um lado, a droga ilegal que você faz uma imensa encenação para combatê-la, às vezes demagogicamente, dando a ilusão de que acabará com ela.

De outro lado, a droga legal, considerada abstratamente uma mercadoria como as outras e entregue, como as outras, às leis cegas do mercado.

O presidente, o general e juiz que cuidam do tema são três pessoas inteligentes. Mas a ênfase que dão ao consumo ilegal de drogas é, na verdade, o resultado de uma dupla pressão: o enfoque norte americano e a busca da popularidade. Aos poucos vão cedendo à velha tática de criar um grande inimigo. No passado era o comunismo, agora são as drogas.

Assim como a luta contra o comunismo, de certa forma, legitimou o retrocesso democrático, vejo a sociedade brasileira tentada a mergulhar de novo em ilusões totalitárias.

Exemplos: um dirigente do governo afirmou outro dia que os direitos civis deveriam ser restringidos para facilitar o combate às drogas. Uma lei do Congresso reintroduziu, por fora da Constituição, a pena de morte. Ela autoriza a derrubada de todo avião que não acatar a ordem de aterrissar. Isto certamente mataria o piloto e todos os passageiros. Sem julgamento, é claro. Um deputado, Edson Andrino, aliás uma pessoa séria e bem intencionada, apresenta um projeto para que sejam feitos testes de drogas em alunos de escola.

Uma escola norte-americana pede aos pais que não permitam bebidas alcoólicas em festas em suas casas.

Enfim há todo um caldo de cultura demagógico que, combinando boas intenções e ambição política, pode trazer de novo alguns anos de chumbo. Se estiver equivocado, darei a mão à palmatória. Se o tráfico de drogas sobreviver aos espasmos repressivos, espero que a maioria pelo menos ouça meus argumentos para uma saída alternativa.

Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idSubArea=74&idArea=1&idArtigo=170

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