12 de março de 2003, Folha de S. Paulo (Tendências e Debates)
Arnaldo Malheiros Filho
Arnaldo Malheiros Filho, 52, advogado criminalista, é professor de Direito Penal Econômico da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo.
O editorial "Além da violência" (Folha, pág. A2, 2/3), pesando prós e contras da criminalização do uso e comércio de drogas, veicula uma afirmação irrespondível: É impossível tentar equacionar o problema da violência urbana no Brasil sem tratar do tráfico de entorpecentes, tanto quanto é impossível cogitar deste sem considerar sua descriminalização.
É ingênuo imaginar que os Estados Unidos não aprenderam nada com a experiência da Lei Seca dos anos 1930. Motivada por idéias religiosas e moralistas, a proibição das bebidas alcoólicas não reduziu significativamente seu consumo e, como efeito colateral, levou o crime organizado, com todo o poder paralelo gerado por sua capacidade intimidatória, para dentro das grandes cidades estadunidenses. Se trouxe um aumento sensível do poder de interferência do Estado na vida íntima das pessoas, foi a um preço muito alto em termos de criminalidade urbana, tanto que a proibição acabou revogada.
Ela veio a ressurgir décadas mais tarde, com a proibição das drogas. Assim como a do álcool, ela não conseguiu - e não conseguirá - reduzir o consumo de tóxicos dentro dos Estados Unidos, mas permite a seu governo excelentes condições para se afirmar como polícia do mundo, ditando leis e alterações constitucionais a outras soberanias, elaborando "listas negras", ensinando seus satélites a "redefinir" o papel de suas próprias Forças Armadas e até, se e quando acharem conveniente, fazer intervenções militares. Tudo isso com a vantagem de que o preço agora é pago pelos países pobres de sua periferia, como, entre outros, o Brasil e a Colômbia.
A tática principia por "vender" um conceito irreal, qual seja, o de que o tráfico de entorpecentes é o pior e o mais grave de todos os crimes. Isso não é verdade! Os crimes são graves quando a vítima não está de acordo com o criminoso: eu não quero morrer, mas alguém me mata; eu não quero pagar resgate para rever um ente querido, mas vejo-me forçado a tanto. Quando alguém quer vender para outro que quer comprar, isso os estadunidenses chamam "business"; se a mercadoria for ilícita, será um crime, mas não o mais grave deles.
A partir da imposição desse conceito vem a de que sejam feitas leis duríssimas para o tráfico, não raro mais severas do que as que punem aqueles crimes com os quais a vítima não concorda. Em seguida - suprema humilhação - os países periféricos são levados a alterar suas Constituições. Assim, o Brasil, que se orgulhava de ter sempre afirmado seu direito de julgar e punir aqui mesmo os brasileiros que cometessem crime no Exterior, abriu uma exceção na Constituição de 1988 para dizer que "nenhum brasileiro será extraditado, salvo em caso de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes", só para atender a pressões estadunidenses.
Comecei a pensar nessa questão ao ler uma matéria da revista "The Economist", que nem o governo estadunidense nem ninguém em perfeito juízo acusará de libertina ou defensora da criminalidade. A proposta parte da mesma premissa que inspirou a Folha: liberar para forçar a desvalorização e dar ao vendedor de drogas o mesmo poder do dono do botequim da esquina.
Revelando sua seriedade, a Folha se preocupa com o possível aumento de consumo decorrente da queda das barreiras à compra, e nisso se assemelha à grande maioria dos pais de adolescentes a quem já manifestei minha opinião. Sua primeira reação é perguntar se não "ficaria muito fácil" a aquisição de drogas. A eles sempre respondo: Mais do que é hoje? É ilusório acreditar que nossos rapazes e moças têm algum tipo de dificuldade para adquirir drogas. Ao contrário, os que não querem precisam alardear que são "caretas", para não sofrerem o assédio da oferta.
Não estou, porém, propondo a liberação já. O assunto é sério e merece muita reflexão e estudo, sem paixão nem preconceitos. É hora de nos perguntarmos a quem - além, obviamente, dos traficantes - serve a atual legislação. E como o Brasil aceitou criminalizar o tráfico na Constituição, essa alteração depende de todo o ritual para sua emenda. E mais, na interligação do mundo globalizado, acho que o Brasil cometeria verdadeiro suicídio político se, sozinho, alterasse sua legislação.
Creio que, enquanto os centros de pensamento, como as universidades, dão início a esse debate, caberia ao governo brasileiro iniciar consultas aos países em situação semelhante, particularmente os da América Latina, mas sem esquecer outros flagelados, em busca de uma proposta comum à comunidade internacional.
Enquanto caminha esse processo necessariamente lento, cabe-nos enfrentar a violência urbana com soluções paliativas e arriscadas, continuando a lutar uma guerra que de antemão sabemos perdida. De fato, a pujança de um mercado comprador rico, como é o estadunidense, incentiva toda a cadeia produtiva, garantindo-lhe astronômicos lucros que financiarão a violência urbana com mais recursos do que o Estado dispõe para custear a segurança pública.
Até que se chegue a uma conclusão, temos de aplicar rigorosamente nossas severas leis de entorpecentes, dando conta disso ao mundo, talvez afixando nos aeroportos internacionais uma placa onde se leia "Brazil strictly enforces the American anti-drug policy".
Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idSubArea=168&idArea=1&idArtigo=349
quarta-feira, 12 de março de 2003
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