29 de junho de 2003, Carta Capital
O ativista Al Giordano alerta que a política antidrogas brasileira, inspirada nos EUA, é ineficaz e agrava a questão da violência.
Walter Fanganiello Maierovitch
As Nações Unidas elegeram 26 de junho como o dia destinado à conscientização sobre o fenômeno representado pelas drogas proibidas. Nesse dia, cada Estado membro da Organização das Nações Unidas (ONU) refletiria sobre suas realizações nos campos do tratamento aos usuários e nas ações voltadas às reduções da demanda e da oferta de drogas.
Uma retrospectiva serve para demonstrar o insucesso da ONU nesse campo. Em junho de 1998, a Organização promoveu uma conturbada Assembléia Especial, com o objetivo de promover uma estratégia baseada no slogan A Drug Free World – We Can Do It (Um Mundo Livre das Drogas, Nós Podemos Construir). Até agora, a lavagem do dinheiro da droga, nos sistemas bancário e financeiro internacionais, subiu, no ano passado, de US$ 100 bilhões para US$ 400 bilhões. Evidentemente, esse fortalecimento da economia aumenta a oferta.
Passados cinco anos da referida Assembléia, seus resultados foram analisados em Viena, no período de 14 a 17 de abril passado. Resultado: a ONU fracassou ao tentar impor aos países uma única linha política, que foi inspirada no modelo norte-americano. Como conseqüência, o estabelecido nas Convenções foi deixado de lado por diversos países. Eles resolveram buscar o seu próprio caminho e obtiveram melhores resultados quando se livraram da influência norte-americana.
No momento, os especialistas procuram apontar saídas para as Nações Unidas. E as tendências reformista, moderada e conservadora promovem debates intensos e procuram difundir suas idéias. No Brasil, há pouco mais de um mês, surgiu uma representação da Narco News (www.narconews.com/pt.html), de posições abertamente antiproibicionistas, e que conta com 3 milhões de visitantes/mês.
CartaCapital, em razão dessa novidade no Brasil, entrevistou o diretor-responsável pela Narco News, o ativista Al Giordano, que é norte-americano.
CartaCapital: O que é a Narco News?
Al Giordano: A Narco News é mundial. Comecei esse projeto no ano 2000, sou jornalista desde os anos 80, tendo trabalhado no Washington Post, no American Journal Review. Durante anos trabalhei no Boston Times, que já ganhou o Prêmio Pulitzer. Atualmente, moro no México. Fiquei um ano nas comunidades de Chiapas, nas comunidades indígenas de lá, que são as bases de apoio dos zapatistas. Lá pensei e escrevi muito.
CartaCapital: Qual é a posição da Narco News?
Al Giordano: A Narco News tem uma posição fortemente antiprotecionista, estamos a favor da legalização e regulação das drogas para tirar a parte criminal disso, como aconteceu com o álcool no meu próprio país. Os Estados Unidos, em 1933, voltaram a legalizar as bebidas alcoólicas e acabaram com as máfias das bebidas.
CartaCapital: O que o senhor acha da política brasileira de drogas e da lei brasileira de criminalização ao portador de drogas para uso próprio?
Al Giordano: Primeiro, o problema com a política brasileira das drogas é que nós, os gringos, retiramos o direito democrático dos brasileiros para decidi-la. É uma política impulsionada por Washington. Minha posição é muito simples e pró-democracia, ou seja, a decisão deve ser brasileira e para os brasileiros. Os brasileiros precisam formular uma política que sirva aos seus interesses. Eu, Alberto Giordano, nascido em Nova York, não vou decidir essa política. Mas minha equipe e eu vamos dar informações, mostrar experiências e denunciar interesses. Temos 26 jornalistas de toda a América. No Brasil, a brasileira Adriana Veloso cuida da Narco News.
CartaCapital: Como foi o encontro que a Narco News realizou, em abril, no México?
Al Giordano: Foi o primeiro encontro em favor da legalização das drogas de toda a América Latina, com gente da Colômbia, Bolívia, Venezuela, Argentina, do Peru e, é claro, do Brasil. Também muitos do México, dos Estados Unidos, do Canadá e da Europa, mas o primeiro encontro de maioria latino-americana. Desse encontro produziu-se algum documento que está na íntegra na Narco News.
CartaCapital: O que o senhor achou das declarações do secretário e ex-governador Garotinho no sentido de jogar a culpa da violência e da escalada do crime organizado no usuário de drogas?
Al Giordano: É um discurso muito fascista. É um discurso como se tivesse um roteirista da embaixada gringa. É o mesmo discurso que fez W. Bush. Logo depois do 11 de setembro, W. Bush usou os anúncios do Superbowl norte-americano, veiculados na televisão nacionalmente, dizendo: “Se você fuma maconha, está apoiando terroristas, seqüestros, violência, caos”. Não sei se Garotinho sabe que está sendo manipulado pela embaixada nesse assunto. Recentemente, o governo gringo informou que vai retirar esses anúncios da televisão. Por quê? Porque suas pesquisas de marketing lhe mostraram que essa campanha tornou as drogas mais populares entre os jovens. Os jovens estão dizendo: “Vou fumar maconha e ser como Bin Laden”. Esse discurso é demagógico, equivocado e mentiroso. Garotinho vai aprender isso de uma maneira muito dura, porque está muito equivocado agora. Ademais, está piorando a situação do Rio de Janeiro com sua tática de guerra total nas favelas e tudo isso. Isso só vai fazer o narcotráfico armar-se mais, comprar mais armas, mais fuzis, para fazer uma defesa mais forte e uma ofensiva mais forte, como vemos agora. Essa política está matando o turismo. As únicas notícias que saem hoje nos Estados Unidos e na Europa sobre o Rio tratam de ônibus queimando e dessa pobrezinha da (universidade) Estácio de Sá, que saiu do coma. Isso está espantando os turistas e o governo é que está fazendo o terror nesse sentido.
CartaCapital: E com relação à outra declaração de Garotinho, no sentido de que ele não poderia, de imediato, atuar em cima dos narcotraficantes, porque os usuários, os dependentes químicos, entrariam em crise de abstinência no Rio de Janeiro?
Al Giordano: Isso faz parte do grande mito sobre o homem e a mulher pobres nas classes média e alta. Foi sempre um discurso classista de que o pobre é naturalmente criminoso. Isso não é o que eu vejo, o que vejo é quem está trabalhando nos restaurantes, quem está limpando as ruas, dirigindo os ônibus e táxis, são trabalhadores, é gente pobre, trabalhadores honestos. Esses não são viciados loucos, são pessoas dignas. Mas o discurso de Garotinho é para demonizar não só o criminoso, mas uma classe que é maioria.
CartaCapital: Por que os governos norte-americanos, desde Nixon para cá, com a exceção de Carter (vamos fazer justiça), investem tanto na proibição? Existe algum interesse econômico, hegemônico, intervencionista, e a droga é usada como fachada?
Al Giordano: Durante os anos 60, durante a época de Nixon, a prioridade era controlar a comunidade negra urbana, em pura rebelião depois do assassinato de Martin Luther King. Apareceram os Panteras Negras e grupos muito radicais em todas as cidades dos Estados Unidos. A guerra da droga era um pretexto para fazer pressão na cidade. Nixon usou uma estratégia (isso está totalmente documentado) das drogas. Usou mal, mas foi brilhante. Fechou a fronteira do México à maconha e a própria CIA foi trazendo ópio do Vietnã, inundando as ruas dos negros com heroína, o que deu início à epidemia de heroína nos Estados Unidos. Com esse pretexto, fizeram a repressão contra um crime que o próprio governo criou e, com isso, conseguiram, é claro, controlar os movimentos sociais. Segundo, alguém em Washington teve uma idéia muito brilhante, mas aplicou mal também. Isso pode ser um pretexto não só para controlar os pobres dos Estados Unidos, mas também para controlar países vizinhos como o México, a América Latina toda, um grande pretexto para invadir.
CartaCapital: E o que mais o senhor verifica nessa radiografia de interesses?
Al Giordano: Já chegamos à terceira fase. Primeira fase: guerra contra as drogas como pretexto de controle social dentro dos Estados Unidos. Segunda fase: guerra contra as drogas como pretexto de controle social em toda a América Latina. Estamos agora na terceira fase. O que aconteceu nela é que o narcotráfico floresceu com a cocaína. Então, o que fazer com tantos bilhões de dólares, o que fazer com tanto dinheiro sem ser apreendido? Começaram a explorar a indústria da lavagem de dinheiro, dos ativos. Esse é o processo em que o ganho de dinheiro ilegal é convertido para parecer como legal, para evitar impostos ou talvez pagar impostos para parecer legal. O Observatório Geopolítico das Drogas da França estima que, dos bilhões de dólares ganhos a cada ano com drogas ilegais, 80% vão para os banqueiros e para os que lavam dinheiro como intermediários. A maioria é de banqueiros norte-americanos e europeus. Esse dinheirão inundou a economia norte-americana. Nós publicamos na Narco News um trabalho de uma ex-subsecretária da Fazenda, no primeiro governo de Bush pai, Kathleen Norstenfist, que se chama Narcodólares para Principiantes. Em sua análise, a Bolsa de Valores de Nova York e o sistema bancário nos Estados Unidos dependem do dinheiro da droga tanto quanto o viciado depende da droga. Já é um pouco o que diz Garotinho: o que aconteceria se o drogado, de repente, não tivesse droga? Não se aplica ao drogado, mas, talvez, aplica-se ao banqueiro: o que aconteceria com a Bolsa de Valores americana se não tivesse esse grande fluxo de capital que vem da droga? Os Estados Unidos já não produzem.
CartaCapital: Não produzem drogas...
Al Giordano: Exato. Eles só produzem armas, tabaco, filmes e televisão. Tudo o mais da economia é importado. As drogas são um apoio artificial à economia. Os banqueiros sabem disso. Para ser congressista nos Estados Unidos, seja deputado ou senador, são necessários milhões de dólares para comprar anúncios na televisão, que não são grátis como em outros países: têm de pagar. Se você ou eu queremos ser congressistas, temos de ser supermilionários ou temos de nos vender aos supermilionários. Por exemplo, quando o Banamex me processou e perdeu, contratou um escritório de advogados em Washington chamado Eckingold. Esse escritório lobista em Washington, o terceiro maior do mundo, por um lado dá dinheiro aos democratas e por outro dá aos republicanos. É sem ideologia alguma e os congressistas são iguais a viciados por esse dinheiro. Agora já não temos democracia nos Estados Unidos, todos os poderes econômicos são parte dessa máfia. Por isso, W. Bush pôde tirar de Al Gore a eleição. E nem Gore protestou sobre isso, porque o dinheiro atrás de Gore era igual ao dinheiro atrás de Bush.
CartaCapital: Eu gostaria de saber algumas coisas sobre o documento de reação, elaborado na Assembléia da ONU, em junho 1998, que foi assinado, à época, pelo nosso atual presidente, Lula.
Al Giordano: Esse documento era curto, mas muito claro. Está no nosso site. Diz: a guerra das drogas e a política proibicionista são piores que os efeitos das drogas. Arruinaram a paz, a tranqüilidade, causaram muita violência, tiveram efeitos sobre a saúde pública e a saúde dos jovens, foram pretextos contra a democracia, e é por isso que há que se fazer uma nova política que não seja proibicionista.
CartaCapital: Fora Lula e o ex-secretário-geral das Nações Unidas, assinou esse documento o megaespeculador George Soros. Como é essa posição de Soros a respeito da liberação das drogas?
Al Giordano: Ele é o fundador de vários esforços para acabar com a política proibicionista, claramente atrás de políticas de redução de danos e atrás de muitas organizações que apóiam a legalização. Ele financia uma organização que se chama Tait, que dá bolsas de estudo e financia pesquisas sobre drogas.
CartaCapital: O que o senhor acha da presença da Drug Enforcement Administration (DEA), agência norte-americana de combate às drogas, e da CIA no Brasil? A DEA chegou ao Brasil com a ditadura militar.
Al Giordano: Isso é muito interessante. O Brasil não é país produtor. Colômbia, Bolívia e Peru são países produtores da folha de coca, e a Colômbia mais e mais de ópio. Mas o Brasil, não. O que faz a DEA aqui? A DEA não está aqui para impedir a colheita e confecção de drogas, está aqui para comprar polícias e militares e construir uma máquina de pressão para impedir uma política democrática, está aqui como uma força invasora, está aqui tentando exercer pressões políticas. Esse é o seu trabalho. O trabalho da DEA está relacionado à verificação dos países que cultivam coca e papoula e produzem cocaína e heroína, o que não é o caso do Brasil. As drogas que chegam aos EUA saem da Colômbia, do Equador e do Peru via Pacífico e Caribe, passando pelo México, e o Brasil está fora dessa rota. É diferente do interesse europeu, pois o Brasil é corredor de escoamento da droga que vai para lá. Ou seja, não há justificativa para a presença da DEA e da CIA aqui.
Fonte: http://cartacapital.terra.com.br/site/exibe_materia.php?id_materia=799
domingo, 29 de junho de 2003
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