sábado, 20 de setembro de 2003

E viva a maconha!

20 de setembro de 2003, piNtorescas
Texto originalmente publicado no Le Monde Diplomatique
Tradução: Jean-Yves de Neufville

A planta, outrora muito usada para os mais diversos fins, começa a ganhar novos usos e novos defensores.

Yves Eudes

Papel, paredes, tecidos, embalagens e painéis de bordo, o cânhamo, também conhecido como maconha, serve para fabricar de tudo... e também para fumar baseados. Outrora familiar, esta planta tornou-se suspeita e por pouco não desapareceu. Hoje, ela encontrou novos promotores.

"O cânhamo é uma antiga tradição da região de Nantes (no oeste da França). Durante séculos, os nossos ancestrais o cultivaram para fabricar as cordas e as velas de seus navios, assim como roupas, sacos, papel, telas, e mil outras coisas... Na época do outono, a colheita do cânhamo e a extração da fibra mobilizavam as aldeias durante dias e noites. Depois disso, eram organizadas as festas mais doidas do ano, uma vez que o cheiro do cânhamo transtornava a cabeça das garotas...". Jean-Claude David, 53 anos, um antigo militante do movimento rural do Larzac, um sindicalista camponês e um comerciante de produtos hortifrutigranjeiros "biologicamente corretos", mora em Saint-Julien-de-Concelles (na Loire-Atlantique, cuja capital é Nantes), numa fazenda que ele construiu com as próprias mãos. Sobre a cômoda da sala, ele colocou uma foto: "Ela foi tirada pelo meu pai, em 1952. O garotinho ali, sou eu, nos braços da minha avó. E logo atrás, é a imensa plantação de cânhamo. O meu pai continuou cultivando a planta até o fechamento das oficinas de fiação de Angers".

Assim como na quase totalidade das regiões da Europa, a cultura do cânhamo nas ribanceiras do rio Loire entrou em declínio acelerado no decorrer do século 20, por causa da concorrência das fibras sintéticas. Mas o seu desaparecimento quase total teve também uma outra causa: o cânhamo dos nossos campos e a Cannabis sativa, mais conhecida como maconha, são a mesma planta; "Cannabis" sendo a palavra em latim que significa "cânhamo". Em estado selvagem, todas as variedades de cânhamo contêm THC (tetraidrocanabinol), a substância psicotrópica tão apreciada pelos fumantes de baseados.

As leis proibindo fumar a maconha resultaram em todos os países ocidentais no abandono quase completo do cultivo do cânhamo: esta planta familiar de repente havia se tornado suspeita, subversiva, e quase exótica, uma vez que ela havia mudado de nome. A França é um dos únicos países da Europa a ter mantido uma produção, sobretudo para fabricar papel de seda para cigarro. Com isso, os fumantes de tabaco inalam também maconha, sem saber disso! Para evitar os problemas com a justiça, a Federação Nacional dos Produtores de Cânhamo (FNPC), instalada na cidade de Le Mans (sudoeste de Paris), desenvolveu variedades de sementes com teor muito reduzido de THC, e portanto sem efeito psicotrópico. Hoje, a lei autoriza a cultura de cânhamo contendo menos de 0,2% de THC.

Com a autoridade conquistada ao longo de décadas de pesquisas, a FNPC garantiu um monopólio quase total na escala européia sobre a venda de sementes "lícitas". Além disso, os cultivadores não têm direito de conservar as sementes que eles produzem e são obrigados a reabastecer a cada ano na FNPC. Se um único pé de cânhamo com forte teor de THC crescer em algum lugar, ele pode polinizar outros campos de plantas "lícitas" numa área de até 30 quilômetros. Para garantir o respeito à lei, a administração implantou um sistema rígido de controles, de colheitas de amostragens e de análises.

De fato, na França, a produção desta planta continua sendo uma aventura. Em 1996, Jean-Claude David decidiu produzir a "piquette" (nome popular dado a um vinho medíocre), uma bebida tradicional apreciada pela clientela das lojas de alimentos "biologicamente corretos". Então, ele resolveu dar início à fabricação da "frênette", à base de freixo, e ainda da "ortillette", feita com urtigas. Um belo dia, ele teve a idéia de produzir uma bebida à base de cânhamo: "Eu plantei cânhamo numa parcela da minha plantação e inventei a ‘chanvrette’ (‘canhamete’). Para decorar as minhas garrafas, mandei imprimir rótulos com uma bela folha de cânhamo." Ora, a folha de cânhamo é também o símbolo internacional dos militantes da descriminalização da maconha.

Não demorou muito para ver surgirem os problemas: ele é convocado pela brigada de repressão das drogas de Nantes, a Polícia Judiciária (PJ) de Rennes vasculha a sua propriedade e a sua casa, ele é obrigado a se apresentar perante os responsáveis do serviço de repressão das fraudes, é objeto de um inquérito dos oficiais da alfândega, e, por fim, o seu estande no Salão da Agricultura é desmontado pela polícia. "Todos os testes que eles fizeram mostraram que o meu produto não contém THC", garante Jean-Claude David. "O que eles querem sobretudo é obrigar-me a suprimir a folha de cânhamo do meu rótulo e a mudar o nome". Mas, o agricultor, que está acostumado a enfrentar as autoridades, agüenta firme. Em 2002, ele produziu 50 mil litros de chanvrette, que ele começou até mesmo a exportar para os países do Norte. Lá, a sua bebida chama-se "Kannab-Fizz".

O cânhamo está na moda entre os agricultores ligados aos movimentos ecologistas. Em Chauvé, a 40 quilômetros de Nantes, Hubert Morice, o presidente da seção ecologista do Centro de Valorização do Meio Rural (Civam), fundou um "grupo cânhamo" que reúne cerca de 15 fazendeiros. "O cânhamo", explica, "constitui uma ferramenta privilegiada para dinamizar a agricultura de maneira duradoura e equilibrada: basta proceder da forma certa, e ele pode então ser cultivado sem herbicidas, nem pesticidas, nem inseticidas, nem fungicidas. Além de tudo, ele regenera o solo".

Hubert Morice optou pela produção do concreto de cânhamo (uma mistura de cal com cânhamo), destinado à construção e ao isolamento das construções: "Uma casa em concreto de cânhamo é 15% mais cara que uma casa ordinária, mas trata-se de um material são, leve, duradouro". Da mesma forma, em Trémargat, nas Costas de Armor (Bretanha), um grupo de artesãos e de cultivadores fundou a sociedade Kana-Breizh, que fabrica materiais de construção à base de "cânhamo ético", cultivado conforme métodos que respeitam o meio ambiente. A Kana-Breizh também renunciou às subvenções européias, para tentar implementar uma economia rural fora do quadro do PAC (Pacto Agrícola Comum).

Todos eles estão convencidos de que a demanda irá explodir nos próximos anos, uma vez que os industriais andaram descobrindo as virtudes dos produtos à base dessa planta, principalmente os óleos e os têxteis. Assim, o estilista Armani começou recentemente a criar ternos com tecido de cânhamo. Além disso, os engenheiros não param de inventar novas utilizações da planta: os painéis de bordo das novas Mercedes e BMW são de plástico composto em parte de cânhamo, um material leve, pouco inflamável e reciclável; fabricantes de barcos, de embalagens e de eletrodomésticos também se lançam na produção de materiais de plástico à base de cânhamo e na fabricação da lã de cânhamo.

Enquanto isso, os obstáculos vêm se acumulando para os pequenos produtores. Em setembro de 2002, em pleno período de colheita, a Kana-Breizh foi objeto de seis controles por parte de seis administrações diferentes. Em Chauvé, Hubert Morice foi obrigado a plantar suas sementes num terreno afastado da estrada: "Caso contrário, os jovens da região vêm se servir, já que com ou sem THC, as flores têm o mesmo aspecto. Além disso, os policiais ficam nos arredores, à espreita".

Contudo, tantas dificuldades parecem quase agradá-lo: "Vou direto ao ponto: eu me sinto próximo de José Bové. Participei da destruição de uma plantação de organismos geneticamente modificados (OGMs) e já enfrentei brigas e estadas na prisão. Eu estou acostumado com essa guerra, e não terei medo de lutar para reabilitar o cânhamo, mesmo se ele não é nem um pouco popular na polícia".

Além de tudo, a cultura do cânhamo está crescendo em outras regiões, a partir de bases mais tradicionais. Em Bar-le-Duc, a cooperativa dos produtores de cânhamo da Aube (na região Leste) reúne 330 agricultores, que cultivam ao todo 6 mil hectares e possuem uma usina de beneficiamento. Atualmente, ela vende 90% de sua fibra aos fabricantes de papel para cigarro, mas ela está também buscando ativamente os novos mercados.

Oficialmente, os produtores de cânhamo industrial não querem ouvir falar do cânhamo que se fuma. Eles recusam todo e qualquer contato com os militantes da descriminalização da maconha, que começaram a vender objetos à base de cânhamo "lícito" para criar um amalgamo na mente da população. Contudo, o destino do cânhamo "útil" e o de seu primo "recreativo" permanecem ligados.

O segundo produtor europeu de cânhamo industrial é a empresa holandesa Hemp-Flax, que cultiva 2.300 hectares em Oude Pekela, no norte do país, e possui uma usina de beneficiamento. O seu patrão, Ben Dronkers, tem o seu assento ao lado das grandes empresas do setor no quadro da Associação Européia do Cânhamo Industrial (cuja sigla é EIHA). Mas, na Holanda, Ben Dronkers é conhecido sobretudo como o patrão da sociedade Sensi-Seeds, que vende sementes de maconha aos fumantes e aos revendedores interessados em fazer um cultivo caseiro da planta. Durante a sua juventude, Ben Dronkers passou vários anos no Oriente Médio, onde ele compartilhou a vida dos produtores de cânhamo. Quando ele retornou à Holanda, ele trouxe sementes, e então fundou uma oficina para desenvolver variedades dotadas de teores elevados de THC.

Hoje, os técnicos da Sensi-Seeds conseguem produzir sementes quatro vezes por ano sem alterar a sua qualidade original. Eles obtêm esse resultado principalmente por meio de novos processos de clonagem das plantas, por meio do cultivo de tecidos. Em 2002, a Sensi-Seeds faturou cerca de 4 milhões de euros (cerca de R$ 13,2 milhões). Para a venda no varejo, a sociedade possui uma loja e um coffee shop que estão instalados bem no coração do bairro "quente" de Amsterdã. Para a venda no atacado e por correspondência, ela publica um catálogo em várias línguas e possui sites na Internet da venda e de promoção.

Bem ao lado de sua loja, Ben Dronkers fundou o célebre Museu do haxixe, da maconha e do cânhamo, que oferece aos turistas um percurso pedagógico explicando as utilizações desta planta através do tempo. Ele é também co-proprietário dos coffee shops Sensi-Smile em Roterdã e do hotel Sensi-Paradise, situado numa ilha tailandesa.

Sentado no terraço de seu coffee shop, Ben Dronkers está fumando um pouco de maconha, e bebe ao mesmo tempo um vinho suíço perfumado com cânhamo. As pessoas que passam o cumprimentam. Ele é uma personalidade no bairro: "Eu tomo o tempo para viver; tenho 53 anos, os meus cinco filhos trabalham comigo na produção do cânhamo. Eles irão prosseguir a minha missão". Enquanto, de um lado, ele participa da luta pela descriminalização da maconha, Ben Dronkers se interessa há muito pelo cânhamo industrial. Hoje, ele está convencido de que, por si só, essa planta excepcional pode resolver todos os problemas de poluição e de esgotamento dos recursos naturais: "A fibra de cânhamo permitiria produzir todo o papel de que o mundo precisa, evitando o desmatamento; em função de seu crescimento muito rápido, ele poderia fornecer a matéria-prima para um combustível biológico capaz de substituir o petróleo, e que produz ao mesmo tempo oxigênio; a sua semente rica em proteínas poderia atender às necessidades nutricionais do terceiro-mundo - sem falar de suas virtudes medicinais... O cânhamo poderia salvar o planeta"...

Já em 1989, ele se informa sobre a produção de sementes com baixo teor de THC e descobre que elas desapareceram praticamente do continente europeu. Um dos últimos lugares onde ela pode ser encontrada é a FNPC em Le Mans, cujos negócios estão periclitando. Ele decide então de ajudar essa cooperativa: "No espaço de três anos, eu tive que comprar dos franceses 27 toneladas de sementes, das quais eu consegui revender apenas 200 quilos, uma vez que não havia mercado. Mas isso não me importava, pois o meu objetivo era de preservar esse recurso única na Europa". Ben Dronkers está convencido de que, naquela época, ele salvou a FNPC da falência.

Em 1994, ele dá início à sua própria produção de cânhamo industrial e funda a Hemp-Flax. Ele compra uma fabrica de papelão em Oude Pekela, que ele transforma numa usina de processamento de fibras, e então firma contratos com os agricultores da região. Para as suas sementes, ele abastece, é claro, na FNPC. Ora, nesse meio-tempo, o ministério da agricultura francês já descobriu a personalidade e o percurso do patrão da Hemp-Flax, e decide impedir essa venda. Contudo, a FNPC saberá por sua vez mostrar-se solidária com o seu cliente providencial: ela passa por cima das advertências e entrega a mercadoria apesar de tudo.

Desde que ela foi fundada, a Hemp-Flax tem investido na concepção e na fabricação de máquinas especialmente adaptadas para a cultura do cânhamo, da qual ela é proprietária das patentes. Os seus laboratórios conseguem elaborar uma nova variedade de sementes com um teor em THC inferior a 0,2%, porém mais bem adaptada ao clima da Holanda. Eles acabam de obter a sua homologação junto às autoridades européias e preparam-se para comercializá-la.

Hoje, a Hemp-Flax emprega cerca de 40 pessoas e fornece trabalho para 160 agricultores. Ela acabar de comprar a Hemp-Ron, o seu único concorrente holandês, além de uma gráfica e de uma usina de processamento de fibras que está instalada perto de Berlim: "Os alemães serão em breve grandes compradores, uma vez que eles são sensíveis aos argumentos ecológicos. Além dos materiais plásticos, os fabricantes de equipamentos estão trabalhando num projeto que consiste em fabricar plaquetas de freios à base de cânhamo".

Contudo, a Hemp-Flax ainda está fortemente deficitária e sobrevive graças ao apoio financeiro da Sensi-Seeds. Em Oude Pekela, a usina de processamento de fibras abriga também um depósito de sementes com teores elevados de THC que pertence a Sensi-Seeds, assim com uma oficina de embalagem: "Eu já investi 15 milhões de euros (cerca de R$ 49,5 milhões) na Hemp-Flax, e pretendo prosseguir. Eu fiz fortuna graças à Sensi-Seeds, mas eu não preciso de todo esse dinheiro, então prefiro gastá-lo em prol de uma verdadeira causa. Quando se trata de salvar o planeta", conclui Ben Dronkers, enquanto aperta um novo baseado, "Nada disso tem importância".

Fonte: piNtorescas (20 de setembro de 2003)

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