quinta-feira, 4 de setembro de 2003

O detetive e a maconha

4 de setembro de 2003, Folha Online
O detetive e a maconha

Hélio Schwartsman
Editorialista da Folha. Escreve para a Folha Online às quintas.

Olhos vermelhos, ataques à geladeira no meio da madrugada, sono, falta de concentração, queda no rendimento escolar. Pais modernos já não precisarão ficar atentos à semiologia da maconha para descobrir se seus filhos estão fumando a erva maldita. Chega este mês às farmácias de todo o país Drugwipe, o que há de mais moderno em testes de detecção de drogas ilícitas. Basta encostar a ponta do aparelho num objeto freqüentemente tocado pelo "suspeito" e, em dois minutos, o prodigioso mecanismo, após analisar as gotículas de suor encontradas pelo infalível método da imunocromatografia, indicará se o seu filho fumou ou não fumou maconha.

O texto acima, apesar de ficcional, torna-se perigosamente verossímil. Os aparelhos para detectar substâncias ilícitas Drugwipe, produzidos pela empresa alemã Securetec, foram aprovados pela Vigilância Sanitária e logo estarão ao alcance do público. Cada unidade, que só pode ser utilizada uma vez, deverá custar entre R$ 40,00 e R$ 50,00. É preciso adquirir o aparelho específico para o grupo de drogas que se pretende detectar. Drugwipe existe em quatro versões -- minha tentação é escrever "sabores" --: para canabinóides (maconha, haxixe), opiáceos (heroína, morfina), anfetaminas (incluindo metanfetaminas, como o ecstasy) e derivados da cocaína. Os representantes da Securetec no Brasil esperam comercializar 1,4 milhão de unidades nos próximos dois anos.

O leitor já deve ter percebido que não sou muito simpático a testes como o Drugwipe. Resta-me, então, explicar o porquê. Antes, porém, devo esclarecer que não sou contra o aparelho ou mesmo a idéia de detectar a presença de drogas, só não acho que a utilização da engenhoca deva ser banalizada. Eu seria favorável, por exemplo, a que o Drugwipe ou assemelhados fizessem parte dos arsenais da polícia de trânsito para flagrar motoristas entorpecidos. Está aí um emprego para o teste que me parece, ao mesmo tempo, lícito e correto.

Pelo que sei, porém, não está no plano de nossas autoridades adquirir os aparelhos. Entendo as razões. Os custos seriam elevados para um benefício discutível. O número de motoristas que dirigem sob o efeito de drogas é estatisticamente pequeno. Não se compara nem remotamente à carnificina que condutores bêbados provocam todos os dias. (De resto, existem estudos europeus mostrando que a eficácia dos testes no trânsito não é tão boa quanto querem os fabricantes, mas essa é uma outra questão).

Com a comercialização em massa, os aparelhos Drugwipe acabarão sendo adquiridos por pais preocupados ou por empresas que pretendam estabelecer controles antidrogas.

Analisemos primeiro o caso das companhias que é mais simples. Ainda que a empresa afirme que está interessada na segurança e na saúde de seus funcionários, testes obrigatórios para drogas são em princípio inconstitucionais. Além de violar o direito à intimidade, a Carta garante que ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo. A bela proteção constitucional, contudo, fica um pouco relativizada quando se considera que a recusa em submeter-se ao teste equivale a uma confissão. Se tiver um bom advogado, o ex-empregado cioso de seus direitos constitucionais talvez consiga evitar a justa causa. Isso, é claro, se tiver a carteira assinada.

Mais complicado é o caso de pais e filhos. Pessoalmente, considero que ao menos os menores púberes (com mais de 16 anos) têm direito à intimidade mesmo contra seus pais. Essa, porém, é uma questão para lá de polêmica. Admitamos que os pais tenham o direito legal de testar seus filhos para drogas mesmo à revelia. A pergunta que fica é se devem fazê-lo.

Em primeiro lugar, é preciso tentar compreender o que significa um teste com resultado positivo isoladamente. A resposta é: muito pouco. Embora muitos não concordem, nem toda utilização de droga é patológica. Da mesma forma como é possível tomar uma dose de uísque sem tornar-se um alcoólatra, é possível fumar maconha ou cheirar cocaína de forma eventual, isto é, sem tornar-se um dependente químico. Assim, se o visor do Drugwipe ficar rosa, denunciado a presença de substâncias ilícitas, isso pode significar apenas que o garoto esteve numa festa e, como fazem garotos saudáveis, divertiu-se, ainda que assumindo riscos não-desprezíveis, o que, de resto, jovens saudáveis fazem o tempo todo.

Em favor dos pais, devemos reconhecer que não são todos os jovens que fazem uso não-patológico de drogas. Existem muitos casos de abuso que precisam ser tratados como tal. A questão é que testes não ajudam muito a determinar essas situações. Os critérios mais modernos para definir a dependência são sociais. Deve-se considerar que uma pessoa tem problemas com drogas a partir do instante em que as pessoas que convivem com ela percebem que ela tem um problema com drogas. O raciocínio pode ser meio circular, mas essa definição funciona melhor do que outras supostamente objetivas como tolerância e síndrome de abstinência. O fato é que, à luz do critério social, o teste torna-se pouco útil e por vezes até contraproducente, pois ele tende a criar conflitos desnecessários, prejudicando a abordagem do paciente. Pais que desconfiem de que seus filhos estejam abusando de drogas, em vez de bancar os detetives, poderiam procurar auxílio especializado. Uma abordagem correta nessa hora difícil pode poupar a família de desgastes extras.

Drugwipe chega ao Brasil um pouco na esteira da histeria antidrogas que eclodiu nos anos 70 e 80 nos EUA e se espalhou pelo mundo. É claro que drogas são um seriíssimo problema de saúde pública. Nenhum jovem deveria sentir-se seguro experimentando-as. Mas é uma ilusão acreditar que se possa acabar com elas. Substâncias psicotrópicas acompanham o homem desde que ele desceu das árvores, talvez antes. Mais importante do que tentar eliminá-las é aprender a conviver com elas, tolerando-as na maior parte das vezes e procurando reduzir seus impactos mais deletérios.

Seria um pouco como se dá com o álcool no mundo ocidental. As relações autoritárias e policialescas favorecidas pelos testes antidrogas não são um bom ponto de partida para chegar à utópica era da tolerância, onde cada um, consciente dos riscos que corre e de suas responsabilidades, faria tudo o que desejasse sem incomodar nem ser incomodado por seus semelhantes. Infelizmente, pelo menos por enquanto, só podemos sonhar com essa idade da razão.

Fonte: Folha Online (4 de setembro de 2003)

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