domingo, 29 de junho de 2003

O tráfico se fortalece

29 de junho de 2003, Carta Capital

O ativista Al Giordano alerta que a política antidrogas brasileira, inspirada nos EUA, é ineficaz e agrava a questão da violência.

Walter Fanganiello Maierovitch

As Nações Unidas elegeram 26 de junho como o dia destinado à conscientização sobre o fenômeno representado pelas drogas proibidas. Nesse dia, cada Estado membro da Organização das Nações Unidas (ONU) refletiria sobre suas realizações nos campos do tratamento aos usuários e nas ações voltadas às reduções da demanda e da oferta de drogas.

Uma retrospectiva serve para demonstrar o insucesso da ONU nesse campo. Em junho de 1998, a Organização promoveu uma conturbada Assembléia Especial, com o objetivo de promover uma estratégia baseada no slogan A Drug Free World – We Can Do It (Um Mundo Livre das Drogas, Nós Podemos Construir). Até agora, a lavagem do dinheiro da droga, nos sistemas bancário e financeiro internacionais, subiu, no ano passado, de US$ 100 bilhões para US$ 400 bilhões. Evidentemente, esse fortalecimento da economia aumenta a oferta.

Passados cinco anos da referida Assembléia, seus resultados foram analisados em Viena, no período de 14 a 17 de abril passado. Resultado: a ONU fracassou ao tentar impor aos países uma única linha política, que foi inspirada no modelo norte-americano. Como conseqüência, o estabelecido nas Convenções foi deixado de lado por diversos países. Eles resolveram buscar o seu próprio caminho e obtiveram melhores resultados quando se livraram da influência norte-americana.

No momento, os especialistas procuram apontar saídas para as Nações Unidas. E as tendências reformista, moderada e conservadora promovem debates intensos e procuram difundir suas idéias. No Brasil, há pouco mais de um mês, surgiu uma representação da Narco News (www.narconews.com/pt.html), de posições abertamente antiproibicionistas, e que conta com 3 milhões de visitantes/mês.

CartaCapital, em razão dessa novidade no Brasil, entrevistou o diretor-responsável pela Narco News, o ativista Al Giordano, que é norte-americano.

CartaCapital: O que é a Narco News?

Al Giordano: A Narco News é mundial. Comecei esse projeto no ano 2000, sou jornalista desde os anos 80, tendo trabalhado no Washington Post, no American Journal Review. Durante anos trabalhei no Boston Times, que já ganhou o Prêmio Pulitzer. Atualmente, moro no México. Fiquei um ano nas comunidades de Chiapas, nas comunidades indígenas de lá, que são as bases de apoio dos zapatistas. Lá pensei e escrevi muito.

CartaCapital: Qual é a posição da Narco News?

Al Giordano: A Narco News tem uma posição fortemente antiprotecionista, estamos a favor da legalização e regulação das drogas para tirar a parte criminal disso, como aconteceu com o álcool no meu próprio país. Os Estados Unidos, em 1933, voltaram a legalizar as bebidas alcoólicas e acabaram com as máfias das bebidas.

CartaCapital: O que o senhor acha da política brasileira de drogas e da lei brasileira de criminalização ao portador de drogas para uso próprio?

Al Giordano: Primeiro, o problema com a política brasileira das drogas é que nós, os gringos, retiramos o direito democrático dos brasileiros para decidi-la. É uma política impulsionada por Washington. Minha posição é muito simples e pró-democracia, ou seja, a decisão deve ser brasileira e para os brasileiros. Os brasileiros precisam formular uma política que sirva aos seus interesses. Eu, Alberto Giordano, nascido em Nova York, não vou decidir essa política. Mas minha equipe e eu vamos dar informações, mostrar experiências e denunciar interesses. Temos 26 jornalistas de toda a América. No Brasil, a brasileira Adriana Veloso cuida da Narco News.

CartaCapital: Como foi o encontro que a Narco News realizou, em abril, no México?

Al Giordano: Foi o primeiro encontro em favor da legalização das drogas de toda a América Latina, com gente da Colômbia, Bolívia, Venezuela, Argentina, do Peru e, é claro, do Brasil. Também muitos do México, dos Estados Unidos, do Canadá e da Europa, mas o primeiro encontro de maioria latino-americana. Desse encontro produziu-se algum documento que está na íntegra na Narco News.

CartaCapital: O que o senhor achou das declarações do secretário e ex-governador Garotinho no sentido de jogar a culpa da violência e da escalada do crime organizado no usuário de drogas?

Al Giordano: É um discurso muito fascista. É um discurso como se tivesse um roteirista da embaixada gringa. É o mesmo discurso que fez W. Bush. Logo depois do 11 de setembro, W. Bush usou os anúncios do Superbowl norte-americano, veiculados na televisão nacionalmente, dizendo: “Se você fuma maconha, está apoiando terroristas, seqüestros, violência, caos”. Não sei se Garotinho sabe que está sendo manipulado pela embaixada nesse assunto. Recentemente, o governo gringo informou que vai retirar esses anúncios da televisão. Por quê? Porque suas pesquisas de marketing lhe mostraram que essa campanha tornou as drogas mais populares entre os jovens. Os jovens estão dizendo: “Vou fumar maconha e ser como Bin Laden”. Esse discurso é demagógico, equivocado e mentiroso. Garotinho vai aprender isso de uma maneira muito dura, porque está muito equivocado agora. Ademais, está piorando a situação do Rio de Janeiro com sua tática de guerra total nas favelas e tudo isso. Isso só vai fazer o narcotráfico armar-se mais, comprar mais armas, mais fuzis, para fazer uma defesa mais forte e uma ofensiva mais forte, como vemos agora. Essa política está matando o turismo. As únicas notícias que saem hoje nos Estados Unidos e na Europa sobre o Rio tratam de ônibus queimando e dessa pobrezinha da (universidade) Estácio de Sá, que saiu do coma. Isso está espantando os turistas e o governo é que está fazendo o terror nesse sentido.

CartaCapital: E com relação à outra declaração de Garotinho, no sentido de que ele não poderia, de imediato, atuar em cima dos narcotraficantes, porque os usuários, os dependentes químicos, entrariam em crise de abstinência no Rio de Janeiro?

Al Giordano: Isso faz parte do grande mito sobre o homem e a mulher pobres nas classes média e alta. Foi sempre um discurso classista de que o pobre é naturalmente criminoso. Isso não é o que eu vejo, o que vejo é quem está trabalhando nos restaurantes, quem está limpando as ruas, dirigindo os ônibus e táxis, são trabalhadores, é gente pobre, trabalhadores honestos. Esses não são viciados loucos, são pessoas dignas. Mas o discurso de Garotinho é para demonizar não só o criminoso, mas uma classe que é maioria.

CartaCapital: Por que os governos norte-americanos, desde Nixon para cá, com a exceção de Carter (vamos fazer justiça), investem tanto na proibição? Existe algum interesse econômico, hegemônico, intervencionista, e a droga é usada como fachada?

Al Giordano: Durante os anos 60, durante a época de Nixon, a prioridade era controlar a comunidade negra urbana, em pura rebelião depois do assassinato de Martin Luther King. Apareceram os Panteras Negras e grupos muito radicais em todas as cidades dos Estados Unidos. A guerra da droga era um pretexto para fazer pressão na cidade. Nixon usou uma estratégia (isso está totalmente documentado) das drogas. Usou mal, mas foi brilhante. Fechou a fronteira do México à maconha e a própria CIA foi trazendo ópio do Vietnã, inundando as ruas dos negros com heroína, o que deu início à epidemia de heroína nos Estados Unidos. Com esse pretexto, fizeram a repressão contra um crime que o próprio governo criou e, com isso, conseguiram, é claro, controlar os movimentos sociais. Segundo, alguém em Washington teve uma idéia muito brilhante, mas aplicou mal também. Isso pode ser um pretexto não só para controlar os pobres dos Estados Unidos, mas também para controlar países vizinhos como o México, a América Latina toda, um grande pretexto para invadir.

CartaCapital: E o que mais o senhor verifica nessa radiografia de interesses?

Al Giordano: Já chegamos à terceira fase. Primeira fase: guerra contra as drogas como pretexto de controle social dentro dos Estados Unidos. Segunda fase: guerra contra as drogas como pretexto de controle social em toda a América Latina. Estamos agora na terceira fase. O que aconteceu nela é que o narcotráfico floresceu com a cocaína. Então, o que fazer com tantos bilhões de dólares, o que fazer com tanto dinheiro sem ser apreendido? Começaram a explorar a indústria da lavagem de dinheiro, dos ativos. Esse é o processo em que o ganho de dinheiro ilegal é convertido para parecer como legal, para evitar impostos ou talvez pagar impostos para parecer legal. O Observatório Geopolítico das Drogas da França estima que, dos bilhões de dólares ganhos a cada ano com drogas ilegais, 80% vão para os banqueiros e para os que lavam dinheiro como intermediários. A maioria é de banqueiros norte-americanos e europeus. Esse dinheirão inundou a economia norte-americana. Nós publicamos na Narco News um trabalho de uma ex-subsecretária da Fazenda, no primeiro governo de Bush pai, Kathleen Norstenfist, que se chama Narcodólares para Principiantes. Em sua análise, a Bolsa de Valores de Nova York e o sistema bancário nos Estados Unidos dependem do dinheiro da droga tanto quanto o viciado depende da droga. Já é um pouco o que diz Garotinho: o que aconteceria se o drogado, de repente, não tivesse droga? Não se aplica ao drogado, mas, talvez, aplica-se ao banqueiro: o que aconteceria com a Bolsa de Valores americana se não tivesse esse grande fluxo de capital que vem da droga? Os Estados Unidos já não produzem.

CartaCapital: Não produzem drogas...

Al Giordano: Exato. Eles só produzem armas, tabaco, filmes e televisão. Tudo o mais da economia é importado. As drogas são um apoio artificial à economia. Os banqueiros sabem disso. Para ser congressista nos Estados Unidos, seja deputado ou senador, são necessários milhões de dólares para comprar anúncios na televisão, que não são grátis como em outros países: têm de pagar. Se você ou eu queremos ser congressistas, temos de ser supermilionários ou temos de nos vender aos supermilionários. Por exemplo, quando o Banamex me processou e perdeu, contratou um escritório de advogados em Washington chamado Eckingold. Esse escritório lobista em Washington, o terceiro maior do mundo, por um lado dá dinheiro aos democratas e por outro dá aos republicanos. É sem ideologia alguma e os congressistas são iguais a viciados por esse dinheiro. Agora já não temos democracia nos Estados Unidos, todos os poderes econômicos são parte dessa máfia. Por isso, W. Bush pôde tirar de Al Gore a eleição. E nem Gore protestou sobre isso, porque o dinheiro atrás de Gore era igual ao dinheiro atrás de Bush.

CartaCapital: Eu gostaria de saber algumas coisas sobre o documento de reação, elaborado na Assembléia da ONU, em junho 1998, que foi assinado, à época, pelo nosso atual presidente, Lula.

Al Giordano: Esse documento era curto, mas muito claro. Está no nosso site. Diz: a guerra das drogas e a política proibicionista são piores que os efeitos das drogas. Arruinaram a paz, a tranqüilidade, causaram muita violência, tiveram efeitos sobre a saúde pública e a saúde dos jovens, foram pretextos contra a democracia, e é por isso que há que se fazer uma nova política que não seja proibicionista.

CartaCapital: Fora Lula e o ex-secretário-geral das Nações Unidas, assinou esse documento o megaespeculador George Soros. Como é essa posição de Soros a respeito da liberação das drogas?

Al Giordano: Ele é o fundador de vários esforços para acabar com a política proibicionista, claramente atrás de políticas de redução de danos e atrás de muitas organizações que apóiam a legalização. Ele financia uma organização que se chama Tait, que dá bolsas de estudo e financia pesquisas sobre drogas.

CartaCapital: O que o senhor acha da presença da Drug Enforcement Administration (DEA), agência norte-americana de combate às drogas, e da CIA no Brasil? A DEA chegou ao Brasil com a ditadura militar.

Al Giordano: Isso é muito interessante. O Brasil não é país produtor. Colômbia, Bolívia e Peru são países produtores da folha de coca, e a Colômbia mais e mais de ópio. Mas o Brasil, não. O que faz a DEA aqui? A DEA não está aqui para impedir a colheita e confecção de drogas, está aqui para comprar polícias e militares e construir uma máquina de pressão para impedir uma política democrática, está aqui como uma força invasora, está aqui tentando exercer pressões políticas. Esse é o seu trabalho. O trabalho da DEA está relacionado à verificação dos países que cultivam coca e papoula e produzem cocaína e heroína, o que não é o caso do Brasil. As drogas que chegam aos EUA saem da Colômbia, do Equador e do Peru via Pacífico e Caribe, passando pelo México, e o Brasil está fora dessa rota. É diferente do interesse europeu, pois o Brasil é corredor de escoamento da droga que vai para lá. Ou seja, não há justificativa para a presença da DEA e da CIA aqui.

Fonte: http://cartacapital.terra.com.br/site/exibe_materia.php?id_materia=799

sexta-feira, 27 de junho de 2003

Estudo diz que maconha não provoca danos cerebrais

27 de junho de 2003, Terra - Notícias

Pesquisadores da Universidade da Califórnia em San Diego (EUA) afirmaram hoje que fumar maconha altera as funções cerebrais, mas não provoca danos permanentes. "A descoberta foi de certa forma surpreendente. Esperávamos detectar maiores danos nas funções cerebrais mais apuradas", disse Igor Grant, principal autor do estudo. Outras drogas ilegais, e mesmo o álcool, provocam danos cerebrais.

A equipe dele analisou dados de 15 estudos publicados anteriormente a respeito dos efeitos de longo prazo do uso recreativo da maconha sobre a capacidade neurocognitiva dos adultos. Os estudos aplicaram testes mentais em usuários da maconha, mas não quando estavam sob o efeito da droga, afirmou Grant.

Os resultados, publicados na edição de julho da revista Journal of the International Neuropsychological Society, mostram que a maconha produzia um dano de longo prazo apenas marginal, afetando pouco as capacidades de aprendizado e memória. E nenhum efeito foi registrado em outras funções, entre as quais o tempo de reação, a atenção, a linguagem, a habilidade de argumentação e as capacidades motora e perceptiva.

Conforme Grant, a descoberta é particularmente importante em meio a questões sobre a toxicidade cumulativa da droga no momento em que vários Estados norte-americanos estudam a possibilidade de autorizar o uso medicinal da substância. O estudo, envolvendo 704 usuários antigos da maconha e 484 não-usuários, foi patrocinado por um programa do governo que supervisiona pesquisas sobre o uso da maconha como medicamento. Há indícios de que a droga ajuda a aliviar a dor em doentes com, por exemplo, esclerose múltipla e a controlar a náusea em pessoas com câncer.

Fonte: Terra – Notícias (27 de junho de 2003)

terça-feira, 24 de junho de 2003

Uma voz isolada no Congresso

24 de junho de 2003, The Narco News Bulletin

Karine Muller

Andando pelos corredores do Congresso Nacional, qualquer um pode perceber ecos de aprovação de emendas constitutivas, projetos e leis. Há ali o movimento de políticos intitulados como representantes do poder público, uma vez que foram eleitos pelo povo. Mas, nas entrelinhas, para além desta atividade burocrática obrigatória no andamento administrativo do país, quem são as vozes isoladas do Congresso?

Uma delas certamente é a do senador Jefferson Péres, representante do estado do Amazonas e membro titular da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do senado. Um dos poucos a fazer pronunciamentos a favor da legalização de drogas no país.

Em tempos de discussão sobre segurança pública, narcotráfico e crime organizado, fui saber do senador, a respeito de alguns temas relativos a estas questões.

Karine Muller - Debate sobre descriminalização das drogas no Congresso.

Jefferson Péres - Não há um debate oficial a respeito da legalização das drogas. Há alguns pronunciamentos isolados. Às vezes mesas de debates são convocadas esporadicamente. Debates sistemáticos e constantes sobre drogas, não acontecem. Creio que sou uma voz isolada.

Karine Muller - Campanhas antidrogas veiculadas na mídia.

Jefferson Péres - Tenho a impressão de que a maioria delas não faz efeito nenhum. Não acredito que campanhas antidrogas convençam adolescentes ou jovens a deixarem o consumo de drogas. Há pessoas que nascem com tendência ao álcool, às drogas e campanhas televisivas têm um efeito muito pequeno sobre elas.

Karine Muller - Repressão ao usuário de drogas.

Jefferson Péres - A repressão é pior ainda. Mas, enquanto for proibido tem que haver a repressão policial, embora eu acredite que é uma guerra perdida contra o narcotráfico. Parto do pressuposto que sempre haverá distribuidor de droga. Enquanto houver consumidor, sempre haverá fornecedor. Pode-se mobilizar a polícia, o exército, a marinha e a aeronáutica que não se extingue nem o consumo e nem o tráfico de drogas.

Karine Muller - SENAD (Secretaria Nacional Antidrogas).

Jefferson Péres - O modelo estadunidense deveria servir para o mundo inteiro como mau exemplo. A experiência me mostra que é inútil combater as drogas via repressão. Nenhum país tem o poderio financeiro dos EUA e nem tanto aparato policial. Patrulham o litoral, a fronteira com o México, possuem o DEA e gastam alguns bilhões de dólares nisto tudo. Entretanto, eles são o maior consumidor de drogas do planeta. Então eu me pergunto, se o país mais poderoso do mundo não consegue combater as drogas, como é que os outros vão conseguir?

Karine Muller - Legalização total das drogas.

Jefferson Péres - Poderíamos legalizá-las gradativamente começando pelas mais leves, como a maconha, passando em seguida pela cocaína até chegar nas outras. Sou a favor da legalização das drogas em escala universal, não somente no Brasil. Se todos os países legalizassem as drogas, eles poupariam o dinheiro que gastam na repressão sem êxito. Reduziriam a corrupção que o narcotráfico promove. A polícia, o poder judiciário, o meio político, o sistema penitenciário, tudo é corrompido pelo narcotráfico. Com a legalização, a briga entre quadrilhas, a “queima” de arquivos, a corrupção com o aparato estatal e a violência de modo geral, diminuiriam. E ainda poderia se cobrar um imposto sobre a produção de drogas que seria revertido no tratamento a dependentes químicos e em campanhas educativas, embora eu não acredite nelas.

Karine Muller - O Estado como repressor.

Jefferson Péres - A maioria das pessoas têm medo de dizer isto. Trata-se de um princípio ético. O Estado tem o direito de impedir que uma pessoa adulta faça da sua vida o que bem quiser? Eu acho que não tem. Se uma pessoa adulta quer consumir drogas, quer se destruir, a vida é dela. Por que o Estado tem que impedir isto repressivamente?

Karine Muller - Um tabu no Congresso.

Jefferson Péres - Quando eu faço pronunciamento sobre a legalização das drogas, muitos param para pensar e dizem que logicamente é isto mesmo, mas não têm coragem de ir além disto. O medo, a censura social é muito grande. Então só se pensa mesmo em repressão.

Karine Muller - O que sustenta o narcotráfico?

Jefferson Péres - O narcotráfico é sustentado pela proibição. Precisamos distinguir duas coisas. A primeira é o consumo de drogas, que sempre existiu e vai existir na humanidade. A segunda é o narcotráfico que vive em função não do consumo, mas da proibição. Se você acaba com a proibição, libera o consumo, pondo fim ao comércio ilegal. Esta é a única maneira de acabar com o narcotráfico. Não estou defendendo nenhuma tese. É um fato. O narcotráfico existe porque é proibido. Se não for proibido, é legalizado e o comerciante ilegal não vai querer vender pra pagar imposto. Então o narcotráfico morre. Ele é fruto da proibição.

Karine Muller - A questão da fronteira.

Jefferson Péres - Atualmente se discute muito sobre a questão da fronteira e sobre o comércio ilegal de armas que está ligado ao narcotráfico. O Brasil tem uma fronteira enorme. Faz fronteira com o Peru, a Bolívia e a Colômbia que são produtores de drogas. Na Colômbia temos narcoguerrilhas que precisam comprar armas. Pessoas aqui no Brasil contrabandeiam armas para lá em troca de drogas. As coisas estão muito ligadas e, com uma fronteira de milhares de quilômetros, fica impossível “vigiar” tudo isto com um exército desguarnecido.

Karine Muller - Uso das forças armadas no combate ao narcotráfico.

Jefferson Péres - As forças armadas podem ajudar a guardar nossa fronteira, mas não estão preparadas para combater o narcotráfico. Isto é tarefa de polícia. Se nós usarmos o exército, vamos apenas corrompê-lo. Há atualmente milhares de armamentos desviados de quartéis do exército, certamente por soldados que vendem para os narcotraficantes. O contato direto destes soldados com o narcotráfico, faz com que sejam facilmente corrompidos por ele. Para um soldado que ganha R$ 800 (cerca de US$ 250) por mês, fica difícil de resistir a uma propina de R$ 10.000 (cerca de US$ 3.000), por exemplo. Assim como para um oficial que recebe R$ 5.000 (cerca de US$ 1.600) por mês, uma propina de R$ 50.000 (cerca de US$ 15.000), também é irresistível. Temos que deixar o exército longe deste assunto.

Karine Muller - A luta no Congresso.

Jefferson Péres - Eu nem estou em luta. Apenas expresso a minha opinião. Não posso desfraldar a bandeira brasileira. Recebo e-mails de pessoas me questionando sobre como posso defender o consumo de drogas no país. E eu apenas defendo a legalização das drogas porque quero acabar com o narcotráfico. Infelizmente, isto é um problema cultural.

Fonte: http://www.narconews.com/Issue30/artigo805.html

segunda-feira, 23 de junho de 2003

Campanha antidrogas na tevê é ineficiente, diz estudo da USP

23 de junho de 2003, Agência Carta Maior

Maria Paola de Salvo e Adélia Chagas

A eficácia das campanhas antidrogas na TV - discutida informalmente - virou pesquisa. E a conclusão é desanimadora: as mensagens são ineficientes. A afirmação é da tese de mestrado da professora de Comunicação Social Arlene Lopes Sant'Anna defendida no departamento de Lingüística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).

As razões da ineficácia, segundo o estudo, são o erro no foco social, ingenuidade, superficialidade, autoritarismo do discurso, além do fato de as campanhas ignorarem as origens do problema e não esclarecerem sobre a prevenção.

A professora de Comunicação Social da PUC-PR analisou 20 anúncios do período de 1996 e 1997 feitos pela ONG Associação Parceria Contra as Drogas (APCD), responsável pela maioria das campanhas e das veiculadas atualmente.

Na avaliação de Arlene, a análise das campanhas ser focada nos anos de 1996 e 1997 não desatualiza a conclusão. "Não deixei de observar as posteriores. E são ineficientes do mesmo jeito", diz. Isso porque, segundo ela, o discurso é o mesmo. Das 20 propagandas estudadas, metade aconselhava os telespectadores a evitar a experiência e o restante incitava o usuário a abandonar o uso.

"Nos dois tipos, o discurso é superautoritário, intimidador e há a mensagem de castigo. Se parar de usar a pessoa ainda tem uma chance e se não usar, não vai morrer, não vai virar vegetal", diz. Ela também atribuiu a falta de resultados à distância da realidade de quem faz os anúncios. Uma surpresa para a professora, que descobriu durante o estudo que a autoria dos anúncios nada tinha e tem a ver com o governo.

A pesquisadora constatou também que a ONG é incentivada pela embaixada estadunidense que propôs a um grupo de empresários brasileiros a realização de uma campanha associada à Partnership for Drug-Free América, entidade estadunidense, que já integrou outros países. A campanha foi lançada também na Argentina, Chile, Venezuela e Porto Rico.

"Eu caí das pernas. É por isso que não dá certo. A impressão é que o Brasil se submete demais ao capital internacional e a produção é feita nos moldes internacionais", diz. "As propagandas tentam mais uma vez proteger a classe média e ignoram as mais baixas, que são as grandes consumidoras e descobrem que é uma forma de ganhar dinheiro", diz.

Arlene fala das classes mais pobres baseada no levantamento, da época da veiculação dos anúncios, do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID). A situação mais dramática era a dos meninos de rua - no Rio de Janeiro 57% deles já haviam usado drogas; no Recife, o número chegava a 90%.

Dirigir a campanha para a classe média-alta também não condiz com o público atingido pela televisão: segundo os dados do IBGE, mencionados na pesquisa, mais de 60% das pessoas que se informam através da TV são das classes C e D.

Outro ponto destacado pela professora é o fato de as propagandas não trazerem informações mínimas sobre como e onde procurar tratamento e o que fazer. A pesquisadora critica também o fato de as "drogas serem mostradas como se surgissem do nada, como se tivessem vida própria e buscassem a próxima vítima, como se fossem o bicho papão para punir jovens desavisados".

Arlene não está sozinha na sua crítica. Primeiro secretário nacional antidrogas, entre 1998 e 1999, o magistrado aposentado Walter Fanganiello Maierovitch faz coro às conclusões da pesquisadora.

Para ele, as campanhas veiculadas pela ONG APCD têm como base a demonização das drogas e a inibição do uso pelo medo, com o único objetivo de se evitar o primeiro contato do jovem com as substâncias.

"O Brasil importa o modelo estadunidense de política antidrogas e adota o mesmo discurso incriminatório e penalizante dos que já fazem uso lúdico ou são dependentes. Isso traz inadequações ao público brasileiro", avalia Maierovitch.

Segundo o ex-secretário, a culpa atribuída ao usuário pelo crime organizado e violência urbana - como aparece nas propagandas atuais da APCD na TV "Quem usa drogas financia a violência" - representa mais uma tentativa oportunista estadunidense que, pela desinformação e pânico no Brasil, procura conquistar a opinião pública. "Enquanto o foco da culpa se concentra no consumidor de drogas, bilhões de dólares sujos são reinvestidos nos sistemas bancário e financeiro internacionais, sempre fora do foco", aponta.

A Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD) não desenvolve atualmente nenhum tipo de campanha contra as drogas. A tarefa fica a cargo apenas de ONGs, como a Associação Parceria Contra as Drogas. Segundo Maierovitch, isso sempre foi assim, desde a inauguração da SENAD em 1998, no governo Fernando Henrique Cardoso. "O governo nunca destinou nenhuma verba para mídia, campanhas, nada. Para o governo, isso não era relevante".

Maierovitch acredita que a fórmula para a eficácia das campanhas antidrogas está na informação inteligente desvinculada do medo e do autoritarismo, e deve falar a todas as classes sociais. "Elas devem buscar a conscientização e a educação", diz.

Eficiência do discurso

O presidente da APCD, o publicitário Paulo Heise, acredita que às vezes é necessário lançar mão do medo e do discurso autoritário para inibir o consumo de drogas. "Reconheço que às vezes usamos o autoritarismo. Mas o que realmente funciona em campanhas publicitárias deste tipo é trabalhar com a percepção de risco propiciado pelo uso das drogas. Se o adolescente não tiver percepção disso, vai usar drogas". Segundo ele, o objetivo principal das campanhas da APCD é evitar o primeiro contato dos jovens com a droga e o uso recreativo, e não acabar com o tráfico. "Não é nosso objetivo tirar do tráfico um jovem do Capão Redondo, por exemplo", explica.

Com sete anos de atuação e 56 filmes veiculados, a ONG conta com o apoio de emissoras de TV para veicular gratuitamente as propagandas nas emissoras abertas e a cabo. "Nesse ponto somos mais eficientes que o Estado. A Rede Globo é nossa parceira. Quando o governo iria conseguir gratuidade das emissoras se fosse o formulador das campanhas?", analisa Heise. Para ele, a SENAD deve focar seus esforços em políticas de erradicação do tráfico e das drogas.

A APCD defende a política atual que considera a compra, a venda e o porte da maconha um crime. "Descriminalizar teria o único efeito prático de eliminar uma barreira para os negócios dos traficantes", avalia o presidente da ONG.

De acordo com a ONG, a população brasileira percebe um impacto positivo na atual campanha que mostra a violência causada pelas drogas e procura identificar o usuário como co-responsável por financiar o tráfico e o crime organizado. A avaliação é baseada em pesquisa do IBOPE de março de 2003.

Dos entrevistados, 45% conheciam alguém que havia parado de usar algum tipo de droga. Mas 80% não conheciam ninguém que havia parado com o uso, depois de ver na campanha que o dinheiro iria para os traficantes.

A Agência Carta Maior procurou a SENAD e o Ministério da Saúde para comentar a tese da professora e a falta de campanhas. Nenhuma das pastas retornou as ligações.

Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idArea=1&idSubArea=191

domingo, 1 de junho de 2003

Drogas legais

Junho de 2003, Caros Amigos

Antonio Lancetti
Psicanalista.

Como bateria uma carreira de pó se fosse legal cheirar?

Que aconteceria entre pais e filhos, mestres e alunos, médicos e pacientes se voltasse a ser vendida cocaína pura nas farmácias? Ou se fosse possível obtê-la num centro de saúde?

E se fosse permitido plantar um ou dois pés de cannabis no quintal em vez de comprar do traficante?

Que aconteceria se cheirar ou puxar fumo fossem atos que não nos colocassem do outro lado? Que aconteceria com a barreira que separa caretas de malucos se o ato de se drogar não fosse mais da ordem do proibido?

Que aconteceria com o tráfico se as drogas fossem vendidas legalmente?

Continuar imaginando que se possam eliminar as drogas pela via da proibição é ignorância, superstição, hipocrisia ou simplesmente a alma do negócio?

As campanhas do tipo “diga não às drogas” só as promoveram. É a melhor maneira de promover o uso de drogas porque dessa forma se ligam ao proibido, à sexualidade e à morte. Elas nadam como peixes nas águas do mercado.

O drogado não é aquele que consome drogas mas aquele que está com falta de drogas, o fissurado. E os hipócritas, amparados em superstições moralistas ou em academias, não gostam de aceitar que existem inúmeras pessoas que, havendo experimentado drogas ilícitas como cocaína e maconha ou ácido lisérgico, não se tornaram dependentes. A esmagadora maioria das pessoas que usaram ou usam drogas se auto-regulam.

O drogado, como disse Gilles Deleuze num texto precioso (“Duas Questões”, publicado na SaúdeLoucura 3 da editora Hucitec), é o eterno abstinente, aquele que está parando sempre.

O modelo mais aperfeiçoado de controle social vigente no chamado capitalismo mundial integrado foi fornecido pela experiência suicidária das drogas e consiste na inversão da relação consumo-produto. O produto não é a cocaína ou a heroína, mas o dependente, aquele que faz qualquer coisa pela sua dose. Nada mais funcional ao capitalismo contemporâneo e à chamada sociedade de controle.

É ilusório acreditar que se possa enfrentar o problema das drogas ligadas ao tráfico por via da proibição ou pelo combate policial, pois dessa maneira só se expandem até se constituírem num problema social de primeira ordem.

O primeiro passo para enfrentar a questão é aceitar que todos os povos usaram algum tipo de droga e que é próprio do sujeito submetido à civilização sair de si. Que as drogas produzem prazer, diminuem momentaneamente a dor e prolongam ou encurtam nossas vidas. Legais ou ilegais, ampliando a percepção, enriquecendo espiritualmente os homens ou submetendo-os a dependência abjeta, fazem parte da nossa existência.

O segundo passo foi dado recentemente pelo Ministério da Saúde quando considerou, pela primeira vez na história sanitária brasileira, o uso prejudicial de drogas como um problema de saúde pública. Também devemos aceitar que o trato dos drogados como problema de saúde é recente. Os convênios médicos, por exemplo, não cobrem internações clínicas de alcoólatras apesar de a abstinência implicar sérios riscos.

Ao adotar a filosofia da mal chamada redução de danos, o governo Lula não só optou pela única política pública que mostrou eficácia até o presente, mas abriu um caminho que permitirá tratar o problema com a complexidade que lhe é própria.

Mal chamada redução de danos, pois a prática do Programa de Redução de Danos mereceria ser chamada de ampliação da vida. Junto com as seringas descartáveis e as caixas coletoras, os redutores de danos fazem educação sanitária, promovem a solidariedade com os usuários e os filhos órfãos de ex-drogados, e sem a isso se propor conseguem que muitos substituam progressivamente drogas pesadas por outras menos nocivas.

Trabalhava na equipe do então secretário de Saúde da prefeitura de Santos o saudoso David Capistrano, quando foi iniciada, no Brasil, a experiência prática da redução de danos. Na época, David foi processado judicialmente e a experiência teve de ser suspensa.

Anos depois, tive a sorte de acompanhar em Porto Alegre o trabalho liderado por Domiciano Siqueira. Testemunhei grupos de redutores que sem nenhuma pregação antidrogas estavam sem usar havia meses e anos, vi o trânsito dos redutores entre traficantes, policiais, drogados e até igrejas. Com suas injeções de vida, os redutores de danos transitam pelo seio das bocadas e conseguem organizar, em comunidades de alto risco, consensos em favor da vida. Eles constroem ilhas de paz.

Outra experiência bem-sucedida, que também adotou a filosofia da redução de danos, é a da saúde mental associada ao Programa de Saúde da Família: equipes volantes de técnicos de saúde mental, junto com médicos, enfermeiros e agentes comunitários de saúde, conseguem reduzir as mortes por causas violentas, como homicídio e suicídio, numa região como a Vila Brasilândia.

O que há de comum entre a saúde mental do Programa de Saúde da Família e a redução de danos é que, atendendo primeiro os mais graves, conquistam a confiança de todos. São um exército sanitário de defensores e ampliadores da vida. Todos são pacientes. Policiais ou traficantes são seres humanos. Principalmente esses de carne e osso que sobrevivem nas nossas tristes periferias.

A liberação das drogas não somente facilitaria a vida de nós, terapeutas, como abriria uma possibilidade de parar de tratar de maneira simplificada fenômenos tão complexos.

A tarefa de assistir, organizar a vida e elevar a cidadania de nossas populações mais arrasadas pelo capitalismo é bem mais urgente que a repressão policial.

Fonte: Caros Amigos nº 75 (junho de 2003)
 

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