domingo, 3 de novembro de 2002
Americanos aprovam o uso medicinal da droga
S. D.
NOVA YORK - O governador de Nova York, George Pataki, e seus homens de marketing devem ter suado frio ao olhar os resultados da mais recente pesquisa de opinião feita com a população estadunidense sobre a legalização da maconha, medicinal ou não: 34% dos ouvidos são a favor (contra apenas 18% em 1986).
O resultado é de estudo encomendado pela emissora de TV CNN e pelo jornal "The New York Times" e divulgado no meio da semana passada.
Os números são eloqüentes: 72% dos ouvidos acreditam que pessoas detidas com maconha não deveriam cumprir nenhum tipo de pena.
Quase 60% dos entrevistados acham que a posse de maconha deve continuar sendo considerada um crime federal, mas, dos que acreditam que algum tipo de pena deveria ser cumprida pelos detidos, apenas 19% defendem o regime de prisão.
Quando a pergunta é específica sobre maconha para fins medicinais, os sinais de uma guinada liberal são ainda mais evidentes. Dos ouvidos, uma maioria de 80% defende sua legalização. O estudo foi feito em todos os 50 Estados norte-americanos.
Aí também há diferenças evidentes. Dos entrevistados que residem num dos 19 Estados que liberaram o uso medicinal ou reduziram as penas para porte da droga, 47% dizem ter fumado maconha pelo menos uma vez na vida.
Plebiscitos
Dos Estados que elegem governadores, senadores federais e senadores estaduais nesta terça-feira, pelo menos quatro colocaram nas cédulas plebiscitos relacionados à liberalização da maconha. São eles Arizona, Dakota do Sul, Nevada e Ohio, além do Distrito de Columbia, que abriga a capital federal, Washington.
Destes, o que os defensores da causa acreditam que tenha mais chance de vitória é mesmo Nevada, mais conhecido por ser o Estado que abriga Las Vegas, cidade dos cassinos.
"Mesmo se a aprovação passar em plebiscito, nós vamos derrubá-la no plenário", ameaça Sandy Heverly, da ONG Nevadianos contra a Maconha.
"Aprovada ou não, o importante é que a questão colocada em plebiscito vai levar os políticos dos Estados a pelo menos discutirem o que querem afinal seus eleitores", disse o lobista Grover Norquist, de Las Vegas.
Na Califórnia, a Corte Federal de Apelações determinou, na quinta-feira passada, que os médicos que receitarem maconha não podem ser presos.
Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idSubArea=150&idArea=1&idArtigo=345
segunda-feira, 21 de outubro de 2002
“Legalize-se a droga”
Marta Mendonça
O advogado Evandro Lins e Silva, de 90 anos, 70 deles militando nos tribunais, nunca teve medo de nadar contra a maré. Na década de 40, durante o Estado Novo, defendeu mais de 1000 presos políticos. No período da ditadura militar, como ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu habeas corpus que desagradaram aos militares. Em 1979, foi alvo de críticas feministas ao defender Doca Street, namorado e assassino de Ângela Diniz. Agora, diante da violência e do crime organizado que crescem no país, volta a ser polêmico ao defender a descriminalização das drogas. “O tráfico acabaria em pouco tempo, e a violência que ele gera também”, diz, espantado com os atos de terrorismo que estão acontecendo, em especial no Rio de Janeiro.
Lins e Silva continua com vida muito ativa. Há três meses, vem tendo aulas de computador. “Meus bisnetos controlam essa máquina, não posso ficar atrás. Viver é aprender”, ensina. Tem dado especial atenção à faculdade de Direito que leva seu nome, inaugurada no início do ano. “A idéia é que os alunos não saiam só bacharéis, mas formados em cidadania.” No dia-a-dia, divide seu tempo entre o escritório no Centro do Rio e o apartamento em Copacabana, onde mora só desde a morte da esposa, Maria Luísa, em 1984. Sempre cercado de livros, concedeu entrevista a ÉPOCA.
ÉPOCA - A cidade do Rio de Janeiro viveu na semana passada mais uma noite de terror. Por que esses atos de violência dos traficantes estão se repetindo?
Evandro Lins e Silva - De fato, casos assim eram mais isolados. Meu pressentimento é de que o governo do Estado deve estar agindo com maior firmeza e o tráfico responde com demonstrações de força.
ÉPOCA - O que pode ser feito sobre as armas?
Lins e Silva - Deveriam ser proibidas a fabricação indiscriminada de armas e sua venda. Anulam-se todos os portes e parte-se do zero para voltar a liberar. Fabricação só a partir de pedido oficial, polícia, autoridades. E zero de entrada no país. O governo tem de cuidar disso. É sua função constitucional. O grande obstáculo é o enorme lobby da indústria de armas.
ÉPOCA - O senhor acredita no poder paralelo do crime organizado?
Lins e Silva - Existe um determinado poder que foge ao controle das autoridades e é localizado nas favelas: a disputa pelo comércio da droga. Com a falta de emprego e oportunidades na vida, as pessoas acabam aderindo a esse estilo de vida, se tornando parte disso, seja ativamente, seja por omissão. O traficante, por ganhar muito dinheiro, ganha o poder de corromper e cria uma teia de força muito grande.
“A droga só gera violência por ser crime. A Chicago dos gângsteres, por exemplo. Lá, o crime se organizou a partir da lei que proibia a venda de bebidas alcoólicas. Quando liberou, acabou.”
ÉPOCA - Como combater o tráfico?
Lins e Silva - Combater à força é bobagem. O tráfico se tornou a oportunidade de emprego de muitas pessoas. É decorrente dos problemas socioeconômicos do país. Eu defendo a descriminalização das drogas.
ÉPOCA - E o que diria a nova lei?
Lins e Silva - Seriam permitidas a fabricação pelos laboratórios e a venda nas farmácias. Então se passaria a tomar conta das violações nessa venda, sendo necessário receita médica ou algum tipo de regra. Limites seriam criados. Se for feita uma venda irregular, que se puna a infração. Mas não seria mais crime. Dessa forma, a venda da droga sai da esfera marginal.
ÉPOCA - Sempre que o tema da descriminalização vem à tona, fala-se muito que o crime organizado se voltaria para outras ações, como assaltos, roubo de carros, e a violência continuaria...
Lins e Silva - Pode ser. Mas é preciso haver uma ação racional para cada área. O mais importante é focar no que realmente interessa, que é educar e dar oportunidade de emprego às pessoas. Isso, sim, reduziria todo tipo de crime. A solução, em longo prazo, é de natureza social. Mas, por ora, descriminalizar é um passo importante.
ÉPOCA - O senhor conhece muitas pessoas que concordem com isso?
Lins e Silva - Poucas. É uma solução polêmica e as pessoas gostam de discutir a questão moral que isso envolveria. Mas é um caminho muito simples e lógico. O mundo inteiro deveria seguir a mesma linha. A droga não é um problema brasileiro, é mundial. Claro que ao lado disso seria necessária uma campanha maciça no país condenando os efeitos da droga, em especial nas escolas. Mas há outras medidas importantes, como coibir o contrabando de armas.
“Os trabalhadores sem-terra são os continuadores dos abolicionistas. Quando a abolição se fez, Joaquim Nabuco questionou: ‘É preciso a reforma agrária para dar terra aos escravos libertos. Para onde vão?’”
ÉPOCA - Sempre que a violência cresce, há uma pressão da sociedade por penas maiores. Por outro lado, as cadeias estão superlotadas. Como resolver isso?
Lins e Silva - Cadeia não é solução. Nunca foi, nunca será. Presídios imensos são construídos com custo fabuloso, em vez de escolas. Manter a população carcerária é muito caro para o Estado. Tenho 70 anos de advocacia. Nunca vi alguém sair da cadeia melhor do que quando entrou. Cadeia é a coisa mais infame que já se inventou. E ainda cria uma situação de marginalização permanente. Ninguém mais dá emprego àquela pessoa quando sai, ela acaba parando no crime de novo.
ÉPOCA - Quem deve ir para a cadeia e por quanto tempo?
Lins e Silva - Sou absolutamente contra a prisão como método penal. Deve-se segregar quem for realmente perigoso, quem põe em risco a vida alheia. Hoje a concepção é tão diferente que me assombra. Não se julga um crime, se julga uma pessoa. Há que ver o motivo que levou a pessoa a cometer o crime. Se alguém mata o pai é um crime bárbaro. Mas por que foi isso? Se foi para receber a herança é uma coisa, se foi para defender a mãe das agressões do pai é outra. Há que se olhar as motivações de cada um. Veja os crimes passionais. Nunca vi passional reincidente. O ideal é que se reprima evitando a prisão de toda maneira. As penas alternativas são a saída.
ÉPOCA - O código penal está ultrapassado?
Lins e Silva - Sim, em muitos pontos. Um exemplo: o crime contra a propriedade é punido com pena mais grave que o crime contra a vida.
“Os Estados Unidos falam em atacar o Iraque sem apoio internacional. Se a maior potência mundial não liga para a coletividade, isso é reflexo do pensamento individual que ganhou o mundo.”
ÉPOCA - Deve ser porque a propriedade está sendo mais valorizada que a vida.
Lins e Silva - É sintomático. Hoje o deus é o mercado, é o dinheiro. O sistema capitalista não permite o fim da desigualdade social. Em meus 90 anos de vida, nunca vi uma perspectiva tão sombria para o mundo como agora. E olhe que testemunhei períodos de guerra e revolução. Como conceber que homens como Bill Gates tenham mais de US$ 60 bilhões? O que ele vai fazer disso? Ele vai morrer, como toda criatura, sem conseguir gastar a maior parte. Enquanto isso, milhões de pessoas passam fome no mundo. É uma distorção, me surpreende que as pessoas não se choquem com isso.
ÉPOCA - Qual foi seu melhor momento profissional?
Lins e Silva - Sempre brinco que será o próximo! Mas tenho grande orgulho de ter defendido mais de 1000 perseguidos políticos durante o Estado Novo, que criou um órgão de triste memória, o Tribunal de Segurança Nacional. Foi um período de grande terror, eu sei o que enfrentei. Eu me afirmei aí como advogado.
ÉPOCA - E o pior momento?
Lins e Silva - Não foi uma derrota, mas as vezes em que atuei na acusação. Uma situação, em especial, me atormenta até hoje: um médico teria matado um rapaz que fazia barulho na rua. Acusei, o júri popular condenou e ele se matou na prisão. Eu estava convencido de que ele era culpado, mas e se não fosse? E me arrependo de ter acusado. E se a decisão tivesse sido mais resultado de minha eloqüência que dos indícios concretos? Penso nisso até hoje, 40 anos depois. Se um pecado cometi na profissão, foram as poucas vezes em que acusei. Das defesas não me arrependo de nenhuma.
ÉPOCA - O senhor acredita em justiça divina?
Lins e Silva - Boa parte de minha vida supus ser ateu, mas recentemente descobri que não sou. Percebo que existe algo de indefinível que se traduz na perfeição das coisas. O funcionamento do corpo humano. O fato de roçar um botão na TV e entrar uma imagem. Acho que essa perfeição das coisas se chama Deus.
“Defendi mais de 1000 presos políticos no Estado Novo. Não acredito que haja na história do mundo, seja na Grécia, seja em Roma, seja na Revolução Francesa, alguém que tenha feito trabalho parecido.”
ÉPOCA - Mas o mundo não é perfeito.
Lins e Silva - É verdade. Isso me lembra a frase de um pensador francês: “Neste mundo terrível, Deus é de oposição”. Engraçado que supersticioso sempre fui. Não ando debaixo de escada, não passo sal na mesa e, para subir na tribuna, só com o pé direito. Convivi muito com crendices dos réus. Para muitos, os resultados favoráveis eram mais responsabilidade dos orixás que do advogado.
ÉPOCA - Qual é a maior vantagem de viver tantos anos?
Lins e Silva - Viver é bom. Tive pouco lazer na vida, trabalhei como o diabo. Mas meu prazer sempre foi o trabalho, então fui e sou feliz. Costumo dizer que uma vida longa é boa porque dá tempo de fazer tudo.
PERFIL
Nascimento
18 de janeiro de 1912, no Maranhão.
Cargos públicos
Procurador-geral da República (1961 a 1963); chefe do Gabinete Civil (1963); ministro das Relações Exteriores de João Goulart (1963); ministro do STF (1963 a 1969).
Família
Quatro filhos, 11 netos e dois bisnetos
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT419708-1666,00.html
sábado, 19 de outubro de 2002
A nova lei de tóxicos no país e a situação dos usuários
Luiz Flávio Gomes
Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, diretor-presidente do IELF - Instituto de Ensino Jurídico (www.ielf.com.br) e autor do curso de DP pela Internet (www.iusnet.com.br).
A legislação sobre drogas no Brasil achava-se concentrada (basicamente) na Lei 6.368/76, que era (e é, em certo sentido) fiel retrato da política norte-americana sobre o assunto, que revela cunho claramente repressivo. Em fevereiro do corrente ano (2002) entrou em vigor no nosso país a Lei 10.409/02, que pretendia disciplinar inteiramente a matéria. Em virtude de sua extraordinariamente paupérrima qualidade técnica, apesar de o Parlamento ter demorado onze anos para sua elaboração, um terço dela foi vetado pelo Presidente da República.
Conclusão: as duas leis citadas acham-se no momento em vigor (cada uma disciplinando uma parte do tema). Nossa legislação, como se vê, virou uma colcha de retalhos (para mais detalhes cf. www.ielf.com.br). A insegurança que se produziu é enorme. Por sinal, os juízes que não estão seguindo a lei nova (10.409/02) podem estar dando ensejo à nulidade de todos os processos. Veremos o que os Tribunais superiores (STJ e STF) decidirão. Desde logo, digo que se (ainda) fosse juiz, estaria respeitando o procedimento novo (que é muito mais racional).
Com o objetivo de consolidar (num só diploma legislativo) os textos legais mencionados, o governo encaminhou ao Congresso Nacional novo projeto de lei (6.108/02). Mas no Senado foi aprovado um substitutivo (PL 115/02).
Criam-se novos delitos (financiamento do tráfico, por exemplo), incrementam-se as penas do tráfico de entorpecentes (mínimo de oito anos), regulamenta-se como crime de média gravidade a cessão esporádica e sem fins lucrativos de drogas, desde que entre adultos, e confere-se tratamento jurídico especial ao usuário (que deixa, em princípio, de ser tratado como criminoso).
Em princípio (dissemos) porque, por via indireta, ainda se prevê pena de prisão ao usuário. É o seguinte: como regra serão aplicadas contra ele medidas alternativas (prestação de serviços à comunidade, restrição de direitos etc.). Mas se descumpridas essas medidas, pode haver conversão em prisão. Isso é absurdo, na medida em que hoje de modo algum ninguém mais recomenda a prisão para usuário. Como se vê, é preciso rever esse ponto do projeto de lei em andamento.
A tendência mundial mais sensata, no momento, é não considerar o usuário como criminoso. A criminalização do porte de drogas para uso pessoal vem senso refutada por todos os seguimentos acadêmicos e científicos avançados do planeta. As legislações mais atualizadas (Espanha, Portugal, Suíça etc.) excluíram o usuário do âmbito penal. Já não há espaço, dentro de uma política de redução de danos e de riscos (que é a política européia, oposta à norte-americana), para a falida linha da "War on Drugs" (Guerra às Drogas).
Outro equívoco que já está começando a ganhar corpo entre nós consiste na chamada Justiça Terapêutica (também de linhagem americana). Pretende-se que todos os usuários sejam submetidos a tratamento. Isso constitui erro clamoroso. É preciso distinguir o usuário dependente do não dependente. O mero experimentador ou ocasional usuário não tem que se submeter a nenhum tratamento, porque dele não necessita. O tratamento não pode nunca ser visto como uma "pena" ou um "castigo". É apenas uma oferta para recuperar o dependente.
Cabe recordar que nenhum tratamento pode ser imposto (obrigatório). Aliás, tratamento compulsório está fadado a não produzir nenhum resultado positivo. Todo tratamento só tem chance de prosperar quando há efetiva (e ativa) participação do paciente. E mesmo assim, quando bem individualizado. Remarque-se, de outro lado, que a denominada Justiça terapêutica necessita de estrutura, de profissionais capacitados e, sobretudo, de muito investimento.
"Ninguém caminha para o futuro andando para trás" (Joseph Herfesheimer). O mais sensato e responsável, em suma, no assunto drogas, consiste na adoção de uma política claramente preventiva. Educação antes de tudo. E que os pais e professores, dentre tantos outros, assumam sua responsabilidade de orientação e conscientização.
A pior postura (leia-se: a mais desastrada decisão) consiste em confiar que o Direito penal possa resolver qualquer coisa relacionada com as drogas. Se você não cuida do seu filho, não espere que o Direito Penal faça isso por você e muito menos que essa tarefa seja desempenhada por autoridades policiais, que não contam com o mínimo preparo para cuidar de quem necessita de atenção, educação, não de prisão.
Descriminalizar a posse para uso próprio é mais do que urgente. A política de mera despenalização (que transformou esse fato em crime de menor potencial ofensivo) era necessária, mas não foi suficiente. Isso não significa legalizar as drogas, senão adotar uma política educativa responsável (retirando-a, na medida do possível, do Direito penal). Nossos legisladores já sinalizaram positivamente com esse caminho. É preciso esgotá-lo até suas últimas possibilidades. Aliás, é a única via racional nessa questão, tão repleta de irracionalidades.
Fonte: http://www.nossacasa.net/recomeco/0079.htm
quinta-feira, 19 de setembro de 2002
Adolescentes têm dúvida sobre danos causados por cigarro e maconha
Dartiu Xavier da Silveira
Dartiu Xavier da Silveira, 46, é diretor do Proad (Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes) e professor afiliado do Departamento de Psiquiatria da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Quando se trata de adolescentes, a pergunta mais comum é: o que faz mais mal à saúde, cigarro ou maconha? Esta é uma questão de difícil resposta, uma vez que Cannabis e tabaco são drogas de perfis distintos. A prevalência de consumo de tabaco entre adolescentes é cerca de seis vezes maior do que a freqüência de uso de maconha (Cebrid-Unifesp), mas enquanto a grande maioria dos usuários de tabaco se torna dependente, com a maconha a dependência não chega a 10%.
Sobre os danos causados à saúde, o consumo de tabaco está associado a uma série de doenças, grande parte delas graves e incapacitantes, freqüentemente associadas ao aumento das taxas de mortalidade. Não existem evidências de que o uso de maconha venha a acarretar tais conseqüências.
Muito provavelmente isso pode ser explicado pelos diferentes padrões de consumo geralmente observados: no caso do tabaco, a maioria fuma muitos cigarros, diariamente e durante vários anos. Já a maioria dos usuários de Cannabis consome um número significativamente limitado de cigarros de maconha, de forma ocasional e por um período de tempo menor.
A história do uso também tem pouco em comum: o consumo de maconha é geralmente esporádico, recreacional e dura alguns anos; depois é espontaneamente abandonado, sem necessidade de tratamento. Em contrapartida, o tabagista desenvolve um padrão de consumo compulsivo e diário ao longo de muitos anos e freqüentemente requer tratamento especializado para largar.
Com isso não queremos dizer que não exista dependência de Cannabis: ela não só existe como, uma vez instalada, é também de difícil tratamento. A diferença é que, ao contrário do tabaco, sua dependência é um fenômeno raro quando tomamos como referência o universo de usuários ocasionais desta droga.
Há uma série de medidas que podem ser ensinadas aos usuários de maconha para que minimizem os riscos de se tornarem dependentes ou sofrerem conseqüências danosas. Já em relação ao tabaco, essas medidas são muito restritas, por ser uma droga raramente utilizada de forma ocasional.
Com relação aos adolescentes, a maconha usada continuamente pode provocar problemas no desenvolvimento da personalidade, porque, no processo de amadurecimento, os jovens necessitam interagir intensamente com o meio ambiente, inclusive através de atitudes de confronto e transgressão. Como a maconha provoca alteração de consciência, seu uso contínuo pode impedir esse processo, mantendo o jovem distante e alienado de sua realidade. Nos usuários de tabaco, as conseqüências negativas somente vão aparecer após longos anos de consumo.
A noção amplamente difundida de que a maconha seria uma porta de entrada para outras dependências não tem comprovação científica. A maior parte dos estudos que tentaram identificar tal fenômeno aponta não a maconha, mas o álcool e o tabaco como possíveis portas preferenciais.
Ainda que o uso de Cannabis mereça intervenções cuidadosas, no âmbito de prevenção ou de tratamento, em termos de ações de saúde pública, a intervenção junto ao uso de tabaco ainda é prioritária.
Fonte: Folha Online
sábado, 14 de setembro de 2002
Prefeito distribui maconha
SANTA CRUZ, EUA - O prefeito de Santa Cruz, na Califórnia, Christopher Krohn, distribuiu maconha a pacientes terminais, em frente à prefeitura, num claro desafio às leis americanas. A iniciativa aconteceu duas semanas após a Suprema Corte de Justiça dos Estados Unidos determinar uma dura repressão contra os envolvidos na produção e distribuição de maconha com prescrição médica no Estado.
Os pacientes, alguns em cadeiras de rodas, receberam a quantidade da erva prescrita pelos médicos, pílulas e xaropes com as substâncias ativas da maconha. Demonstrações do uso da droga foram proibidas durante a distribuição. Pelo menos sete pessoas que apresentaram receita médica para o uso da droga foram beneficiadas pela iniciativa.
Segundo Ron Sampson, 48 anos, que sofre de câncer no pâncreas e recebeu a droga, a maconha tem efeito extremamente positivo no seu tratamento. "Me sinto bem melhor quando fumo. Se faz bem, as pessoas deveriam ter o direito de usá-la para fins terapêuticos", diz.
"Nós não somos malucos da Califórnia, somos pioneiros", declarou o prefeito. "Não queremos enfurecer as autoridades federais. A iniciativa é um ato de compaixão para ajudar pessoas doentes que necessitam de medicamento", explica.
Governo chama os plantadores de farsantes
Após a determinação do governo, clubes onde usuários podiam consumir a droga foram fechados, e plantações, destruídas, com a prisão de vários defensores da maconha medicinal.
"Nós não estamos falando de pequenas plantações. O que se vê na Califórnia são pessoas enriquecendo sob o disfarce da medicina", afirma o porta-voz do Conselho Antidrogas americano (DEA), Will Glaspy.
A produtora de maconha, Valerie Corral, presa semana retrasada, responde que a acusação é ultrajante. "Podem checar minha conta bancária. Eu passo por um detector de mentira. Nós estamos ajudando as pessoas que estão morrendo", garante ela. Desde 1996, nove Estados americanos permitem o uso de maconha para fins terapêuticos. A Califórnia é o mais liberal quanto ao uso da droga.
Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idSubArea=148&idArea=1&idArtigo=317
sexta-feira, 23 de agosto de 2002
Remédio a base de MACONHA
23/08/2002 - 15:42 | Edição nº 223 , ÉPOCA
Cientistas americanos estão testando um remédio à base de maconha que combate dor e inflamação sem "dar barato". Chamada de ácido ajulêmico, a substância é um derivado sintético do THC (tetrahidrocanabinol), o princípio ativo da maconha causador do efeito entorpecente.
O novo composto foi testado em animais e mostrou-se entre 10 e 50 vezes mais potente que o THC, apesar de não ter algumas de suas propriedades. Os testes sugerem que o remédio seja mais que potente do medicamentos conhecidos, como aspirina ou ibuprofeno, para tratamento de dor crônica, artrite reumatóide e esclerose múltipla.
A droga está agora na fase de testes clínicos. Vinte e uma pessas com dor crônica estão recebendo a substância, na Alemanha. De acordo com os resultados, o ácido ajulêmico poderá estar disponível para venda em dois ou três anos, segundo os pesquisadores.
O coordenador da pesquisa, Sumner Burstein, da Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos, considera que os resultados obtidos até agora são animadores. A grande vantagem do composto é a ausência de efeitos colaterais, entre os quais a alteração de consciência que a maconha produz. A nova droga foi testada em 15 voluntários saudáveis na França no ano passado. Nenhuma reação adversa foi constatada, nem problemas gastrointestinais normalmente associados a alguns antiinflamatórios.
O mecanismo químico pelo qual funciona o ácido ajulêmico ainda está sendo estudado, mas os cientistas já têm algumas pistas. Aparentemente o composto anula substâncias químicas envolvidas em reações de inflamação, como a prostaglandina e a citoquina.
Os resultados do estudo foram apresentandos na 224ª reunião anual da Sociedade Química Americana.
Revista Galileu
quinta-feira, 1 de agosto de 2002
A verdade sobre a maconha
Agosto de 2002, Superinteressante
Poucos assuntos dão margem a tanta mentira, tanta deturpação, tanta desinformação. Afinal, quais os verdadeiros motivos por trás da proibição da maconha? A droga faz mal ou não? E isso importa?
Denis Russo Burgierman
Para ler o artigo, clique nas miniaturas abaixo.
A verdade sobre a maconha
http://super.abril.com.br/superarquivo/2002/conteudo_120586.shtml
A proibição da cannabis pode ter mais a ver com interesses morais, políticos e econômicos do que com argumentos científicos. Saiba mais sobre os efeitos dela e sua influência na história da civilização.
Por que a maconha é proibida? Porque faz mal à saúde. Será mesmo? Então, por que o bacon não é proibido? Ou as anfetaminas? E, diga-se de passagem, nenhum mal sério à saúde foi comprovado para o uso esporádico de maconha. A guerra contra essa planta foi motivada muito mais por fatores raciais, econômicos, políticos e morais do que por argumentos científicos. E algumas dessas razões são inconfessáveis. Tem a ver com o preconceito contra árabes, chineses, mexicanos e negros, usuários freqüentes de maconha no começo do século XX. Deve muito aos interesses de indústrias poderosas dos anos 20, que vendiam tecidos sintéticos e papel e queriam se livrar de um concorrente, o cânhamo. Tem raízes também na bem-sucedida estratégia de dominação dos Estados Unidos sobre o planeta. E, é claro, guarda relação com o moralismo judaico-cristão (e principalmente protestante-puritano), que não aceita a idéia do prazer sem merecimento - pelo mesmo motivo, no passado, condenou-se a masturbação.
Não é fácil falar desse assunto - admito que levei um dia inteiro para compor o parágrafo acima. O tema é tão carregado de ideologia e as pessoas têm convicções tão profundas sobre ele que qualquer convite ao debate, qualquer insinuação de que estamos lidando mal com o problema já é interpretada como "apologia às drogas" e, portanto, punível com cadeia. O fato é que, apesar da desinformação dominante, sabe-se muito sobre a maconha. Ela é cultivada há milênios e centenas de pesquisas já foram feitas sobre o assunto. O que tentei fazer foi condensar nestas páginas o conhecimento que a humanidade reuniu sobre a droga nos milênios em que convive com ela.
Por que é proibido?
"O corpo esmagado da menina jazia espalhado na calçada um dia depois de mergulhar do quinto andar de um prédio de apartamentos em Chicago. Todos disseram que ela tinha se suicidado, mas, na verdade, foi homicídio. O assassino foi um narcótico conhecido na América como marijuana e na história como haxixe. Usado na forma de cigarros, ele é uma novidade nos Estados Unidos e é tão perigoso quanto uma cascavel." Começa assim a matéria "Marijuana: assassina de jovens", publicada em 1937 na revista American Magazine. A cena nunca aconteceu. O texto era assinado por um funcionário do governo chamado _______________. Se a maconha, hoje, é ilegal em praticamente todo o mundo, não é exagero dizer que o maior responsável foi ele.
Nas primeiras décadas do século XX, a maconha era liberada, embora muita gente a visse com maus olhos. Aqui no Brasil, maconha era "coisa de negro", fumada nos terreiros de candomblé para facilitar a incorporação e nos confins do país por agricultores depois do trabalho. Na Europa, ela era associada aos imigrantes árabes e indianos e aos incômodos intelectuais boêmios. Nos Estados Unidos, quem fumava eram os cada vez mais numerosos mexicanos - meio milhão deles cruzaram o Rio Grande entre 1915 e 1930 em busca de trabalho. Muitos não acharam. Ou seja, em boa parte do Ocidente, fumar maconha era relegado a classes marginalizadas e visto com antipatia pela classe média branca.
Pouca gente sabia, entretanto, que a mesma planta que fornecia fumo às classes baixas tinha enorme importância econômica. Dezenas de remédios - de xaropes para tosse a pílulas para dormir - continham cannabis. Quase toda a produção de papel usava como matéria-prima a fibra do cânhamo, retirada do caule do pé de maconha. A indústria de tecidos também dependia da cannabis - o tecido de cânhamo era muito difundido, especialmente para fazer cordas, velas de barco, redes de pesca e outros produtos que exigissem um material muito resistente. A Ford estava desenvolvendo combustíveis e plásticos feitos a partir do óleo da semente de maconha. As plantações de cânhamo tomavam áreas imensas na Europa e nos Estados Unidos.
Em 1920, sob pressão de grupos religiosos protestantes, os Estados Unidos decretaram a proibição da produção e da comercialização de bebidas alcoólicas. Era a Lei Seca, que durou até 1933. Foi aí que Henry Anslinger surgiu na vida pública americana - reprimindo o tráfico de rum que vinha das Bahamas. Foi aí, também, que a maconha entrou na vida de muita gente - e não só dos mexicanos. "A proibição do álcool foi o estopim para o 'boom' da maconha", afirma o historiador inglês Richard Davenport-Hines, especialista na história dos narcóticos, em seu livro The Pursuit of Oblivion (A busca do esquecimento, ainda sem versão para o Brasil). "Na medida em que ficou mais difícil obter bebidas alcoólicas e elas ficaram mais caras e piores, pequenos cafés que vendiam maconha começaram a proliferar", escreveu.
Anslinger foi promovido a chefe da Divisão de Controle Estrangeiro do Comitê de Proibição e sua tarefa era cuidar do contrabando de bebidas. Foi nessa época que ele percebeu o clima de antipatia contra a maconha que tomava a nação. Clima esse que só piorou com a quebra da Bolsa, em 1929, que afundou a nação numa recessão. No sul do país, corria o boato de que a droga dava força sobre-humana aos mexicanos, o que seria uma vantagem injusta na disputa pelos escassos empregos. A isso se somavam insinuações de que a droga induzia ao sexo promíscuo (muitos mexicanos talvez tivessem mais parceiros que um americano puritano médio, mas isso não tem nada a ver com a maconha) e ao crime (com a crise, a criminalidade aumentou entre os mexicanos pobres, mas a maconha é inocente disso). Baseados nesses boatos, vários Estados começaram a proibir a substância. Nessa época, a maconha virou a droga de escolha dos músicos de jazz, que afirmavam ficar mais criativos depois de fumar.
Anslinger agarrou-se firme à bandeira proibicionista, batalhou para divulgar os mitos antimaconha e, em 1930, quando o governo, preocupado com a cocaína e o ópio, criou o FBN (Federal Bureau of Narcotics, um escritório nos moldes do FBI para lidar com drogas), ele articulou para chefiá-lo. De repente, de um cargo burocrático obscuro, Anslinger passou a ser o responsável pela política de drogas do país. E quanto mais substâncias fossem proibidas, mais poder ele teria.
Mas é improvável que a cruzada fosse motivada apenas pela sede de poder. Outros interesses devem ter pesado. Anslinger era casado com a sobrinha de Andrew Mellon, dono da gigante petrolífera Gulf Oil e um dos principais investidores da igualmente gigante Du Pont. "A Du Pont foi uma das maiores responsáveis por orquestrar a destruição da indústria do cânhamo", afirma o escritor Jack Herer, em seu livro The Emperor Wears No Clothes (O imperador está nu, ainda sem tradução). Nos anos 20, a empresa estava desenvolvendo vários produtos a partir do petróleo: aditivos para combustíveis, plásticos, fibras sintéticas como o náilon e processos químicos para a fabricação de papel feito de madeira. Esses produtos tinham uma coisa em comum: disputavam o mercado com o cânhamo.
Seria um empurrão considerável para a nascente indústria de sintéticos se as imensas lavouras de cannabis fossem destruídas, tirando a fibra do cânhamo e o óleo da semente do mercado. "A maconha foi proibida por interesses econômicos, especialmente para abrir o mercado das fibras naturais para o náilon", afirma o jurista Wálter Maierovitch, especialista em tráfico de entorpecentes e ex-secretário nacional antidrogas.
Anslinger tinha um aliado poderoso na guerra contra a maconha: William Randolph Hearst, dono de uma imensa rede de jornais. Hearst era a pessoa mais influente dos Estados Unidos. Milionário, comandava suas empresas de um castelo monumental na Califórnia, onde recebia artistas de Hollywood para passear pelo zoológico particular ou dar braçadas na piscina coberta adornada com estátuas gregas. Foi nele que Orson Welles se inspirou para criar o protagonista do filme Cidadão Kane. Hearst sabidamente odiava mexicanos. Parte desse ódio talvez se devesse ao fato de que, durante a Revolução Mexicana de 1910, as tropas de Pancho Villa (que, aliás, faziam uso freqüente de maconha) desapropriaram uma enorme propriedade sua. Sim, Hearst era dono de terras e as usava para plantar eucaliptos e outras árvores para produzir papel. Ou seja, ele também tinha interesse em que a maconha americana fosse destruída - levando com ela a indústria de papel de cânhamo.
Hearst iniciou, nos anos 30, uma intensa campanha contra a maconha. Seus jornais passaram a publicar seguidas matérias sobre a droga, às vezes afirmando que a maconha fazia os mexicanos estuprarem mulheres brancas, outras noticiando que 60% dos crimes eram cometidos sob efeito da droga (um número tirado sabe-se lá de onde). Nessa época, surgiu a história de que o fumo mata neurônios, um mito repetido até hoje. Foi Hearst que, se não inventou, ao menos popularizou o nome marijuana (ele queria uma palavra que soasse bem hispânica, para permitir a associação direta entre a droga e os mexicanos). Anslinger era presença constante nos jornais de Hearst, onde contava suas histórias de terror. A opinião pública ficou apavorada. Em 1937, Anslinger foi ao Congresso dizer que, sob o efeito da maconha, "algumas pessoas embarcam numa raiva delirante e cometem crimes violentos".
Os deputados votaram pela proibição do cultivo, da venda e do uso da cannabis, sem levar em conta as pesquisas que afirmavam que a substância era segura. Proibiu-se não apenas a droga, mas a planta. O homem simplesmente cassou o direito da espécie Cannabis sativa de existir.
Anslinger também atuou internacionalmente. Criou uma rede de espiões e passou a freqüentar as reuniões da Liga das Nações, antecessora da ONU, propondo tratados cada vez mais duros para reprimir o tráfico internacional. Também começou a encontrar líderes de vários países e a levar a eles os mesmos argumentos aterrorizantes que funcionaram com os americanos. Não foi difícil convencer os governos - já na década de 20 o Brasil adotava leis federais antimaconha. A Europa também embarcou na onda proibicionista.
"A proibição das drogas serve aos governos porque é uma forma de controle social das minorias", diz o cientista político Thiago Rodrigues, pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos. Funciona assim: maconha é coisa de mexicano, mexicanos são uma classe incômoda. "Como não é possível proibir alguém de ser mexicano, proíbe-se algo que seja típico dessa etnia", diz Thiago. Assim, é possível manter sob controle todos os mexicanos - eles estarão sempre ameaçados de cadeia. Por isso a proibição da maconha fez tanto sucesso no mundo. O governo brasileiro achou ótimo mais esse instrumento para manter os negros sob controle. Os europeus também adoraram poder enquadrar seus imigrantes.
A proibição foi virando uma forma de controle internacional por parte dos Estados Unidos, especialmente depois de 1961, quando uma convenção da ONU determinou que as drogas são ruins para a saúde e o bem-estar da humanidade e, portanto, eram necessárias ações coordenadas e universais para reprimir seu uso. "Isso abriu espaço para intervenções militares americanas", diz Maierovitch. "Virou um pretexto oportuno para que os americanos possam entrar em outros países e exercer os seus interesses econômicos."
Estava erguida uma estrutura mundial interessada em manter as drogas na ilegalidade, a maconha entre elas. Um ano depois, em 1962, o presidente John Kennedy demitiu Anslinger - depois de nada menos que 32 anos à frente do FBN. Um grupo formado para analisar os efeitos da droga concluiu que os riscos da maconha estavam sendo exagerados e que a tese de que ela levava a drogas mais pesadas era furada. Mas não veio a descriminalização. Pelo contrário. O presidente Richard Nixon endureceu mais a lei, declarou "guerra às drogas" e criou o DEA (em português, Escritório de Coação das Drogas), um órgão ainda mais poderoso que o FBN, porque, além de definir políticas, tem poder de polícia.
Maconha faz mal?
Taí uma pergunta que vem sendo feita faz tempo. Depois de mais de um século de pesquisas, a resposta mais honesta é: faz, mas muito pouco e só para casos extremos. O uso moderado não faz mal. A preocupação da ciência com esse assunto começou em 1894, quando a Índia fazia parte do Império Britânico. Havia, então, a desconfiança de que o bhang, uma bebida à base de maconha muito comum na Índia, causava demência. Grupos religiosos britânicos reivindicavam sua proibição. Formou-se a Comissão Indiana de Drogas da Cannabis, que passou dois anos investigando o tema. O relatório final desaconselhou a proibição: "O bhang é quase sempre inofensivo quando usado com moderação e, em alguns casos, é benéfico. O abuso do bhang é menos prejudicial que o abuso do álcool".
Em 1944, um dos mais populares prefeitos de Nova York, Fiorello La Guardia, encomendou outra pesquisa. Em meio à histeria antimaconha de Anslinger, La Guardia resolveu conferir quais os reais riscos da tal droga assassina. Os cientistas escolhidos por ele fizeram testes com presidiários (algo comum na época) e concluíram: "O uso prolongado da droga não leva à degeneração física, mental ou moral". O trabalho passou despercebido no meio da barulheira proibicionista de Anslinger.
A partir dos anos 60, várias pesquisas parecidas foram encomendadas por outros governos. Relatórios produzidos na Inglaterra, no Canadá e nos Estados Unidos aconselharam um afrouxamento nas leis. Nenhuma dessas pesquisas foi suficiente para forçar uma mudança. Mas a experiência mais reveladora sobre a maconha e suas conseqüências foi realizada fora do laboratório. Em 1976, a Holanda decidiu parar de prender usuários de maconha desde que eles comprassem a droga em cafés autorizados. Resultado: o índice de usuários continua comparável aos de outros países da Europa. O de jovens dependentes de heroína caiu - estima-se que, ao tirar a maconha da mão dos traficantes, os holandeses separaram essa droga das mais pesadas e, assim, dificultaram o acesso a elas.
Nos últimos anos, os possíveis males da maconha foram cuidadosamente escrutinados - às vezes por pesquisadores competentes, às vezes por gente mais interessada em convencer os outros da sua opinião. Veja abaixo um resumo do que se sabe:
Câncer
Não se provou nenhuma relação direta entre fumar maconha e câncer de pulmão, traquéia, boca e outros associados ao cigarro. Isso não quer dizer que não haja. Por muito tempo, os riscos do cigarro foram negligenciados e só nas últimas duas décadas ficou claro que havia uma bomba-relógio armada - porque os danos só se manifestam depois de décadas de uso contínuo. Há o temor de que uma bomba semelhante esteja para explodir no caso da maconha, cujo uso se popularizou a partir dos anos 60. O que se sabe é que o cigarro de maconha tem praticamente a mesma composição de um cigarro comum - a única diferença significativa é o princípio ativo. No cigarro é a nicotina, na maconha o tetrahidrocanabinol, ou THC. Também é verdade que o fumante de maconha tem comportamentos mais arriscados que o de cigarro: traga mais profundamente, não usa filtro e segura a fumaça por mais tempo no pulmão (o que, aliás, segundo os cientistas, não aumenta os efeitos da droga).
Em compensação, boa parte dos maconheiros fuma muito menos e pára ou reduz o consumo depois dos 30 anos (parar cedo é sabidamente uma forma de diminuir drasticamente o risco de câncer). Em resumo: o usuário eventual de maconha, que é o mais comum, não precisa se preocupar com um aumento grande do risco de câncer. Quem fuma mais de um baseado por dia há mais de 15 anos deve pensar em parar.
Dependência
Algo entre 6% e 12% dos usuários, dependendo da pesquisa, desenvolve um uso compulsivo da maconha (menos que a metade das taxas para álcool e tabaco). A questão é: será que a maconha é a causa da dependência ou apenas uma válvula de escape. "Dependência de maconha não é problema da substância, mas da pessoa", afirma o psiquiatra Dartiu Xavier, coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Escola Paulista de Medicina. Segundo Dartiu, há um perfil claro do dependente de maconha: em geral, ele é jovem, quase sempre ansioso e eventualmente depressivo. Pessoas que não se encaixam nisso não desenvolvem o vício. "E as que se encaixam podem tanto ficar dependentes de maconha quanto de sexo, de jogo, de internet", diz.
Muitos especialistas apontam para o fato de que a maconha está ficando mais perigosa - na medida em que fica mais potente. Ao longo dos últimos 40 anos, foi feito um melhoramento genético, cruzando plantas com alto teor de THC. Surgiram variedades como o skunk. No último ano, foram apreendidos carregamentos de maconha alterada geneticamente no Leste europeu - a engenharia genética é usada para aumentar a potência, o que poderia aumentar o potencial de dependência. Segundo o farmacólogo Leslie Iversen, autor do ótimo The Science of Marijuana (A ciência da maconha, sem tradução para o português) e consultor para esse tema da Câmara dos Lordes (o Senado inglês), esses temores são exagerados e o aumento da concentração de THC não foi tão grande assim.
Para além dessa discussão, o fato é que, para quem é dependente, maconha faz muito mal. Isso é especialmente verdade para crianças e adolescentes. "O sujeito com 15 anos não está com a personalidade formada. O uso exagerado de maconha pode ser muito danoso a ele", diz Dartiu. O maior risco para adolescentes que fumam maconha é a síndrome amotivacional, nome que se dá à completa perda de interesse que a droga causa em algumas pessoas. A síndrome amotivacional é muito mais freqüente em jovens e realmente atrapalha a vida - é quase certeza de bomba na escola e de crise na família.
Danos cerebrais
"Maconha mata neurônios." Essa frase, repetida há décadas, não passa de mito. Bilhões de dólares foram investidos para comprovar que o THC destrói tecido cerebral - às vezes com pesquisas que ministravam doses de elefante em ratinhos -, mas nada foi encontrado.
Muitas experiências foram feitas em busca de danos nas capacidades cognitivas do usuário de maconha. A maior preocupação é com a memória. Sabe-se que o usuário de maconha, quando fuma, fica com a memória de curto prazo prejudicada. São bem comuns os relatos de pessoas que têm idéias que parecem geniais durante o "barato", mas não conseguem lembrar-se de nada no momento seguinte. Isso acontece porque a memória de curto prazo funciona mal sob o efeito de maconha e, sem ela, as memórias de longo prazo não são fixadas (é por causa desse "desligamento" da memória que o usuário perde a noção do tempo). Mas esse dano não é permanente. Basta ficar sem fumar que tudo volta a funcionar normalmente. O mesmo vale para o raciocínio, que fica mais lento quando o usuário fuma muito freqüentemente.
Há pesquisas com usuários "pesados" e antigos, aqueles que fumam vários baseados por dia há mais de 15 anos, que mostraram que eles se saem um pouco pior em alguns testes, principalmente nos de memória e de atenção. As diferenças, no entanto, são sutis. Na comparação com o álcool, a maconha leva grande vantagem: beber muito provoca danos cerebrais irreparáveis e destrói a memória.
Coração
O uso de maconha dilata os vasos sangüíneos e, para compensar, acelera os batimentos cardíacos. Isso não oferece risco para a maioria dos usuários, mas a droga deve ser evitada por quem sofre do coração.
Infertilidade
Pesquisas mostraram que o usuário freqüente tem o número de espermatozóides reduzido. Ninguém conseguiu provar que isso possa causar infertilidade, muito menos impotência. Também está claro que os espermatozóides voltam ao normal quando se pára de fumar.
Depressão imunológica
Nos anos 70, descobriu-se que o THC afeta os glóbulos brancos, células de defesa do corpo. No entanto, nenhuma pesquisa encontrou relação entre o uso de maconha e a incidência de infecções.
Loucura
No passado, acreditava-se que maconha causava demência. Isso não se confirmou, mas sabe-se que a droga pode precipitar crises em quem já tem doenças psiquiátricas.
Gravidez
Algumas pesquisas apontaram uma tendência de filhos de mães que usaram muita maconha durante a gravidez de nascer com menor peso. Outras não confirmaram a suspeita. De qualquer maneira, é melhor evitar qualquer droga psicoativa durante a gestação. Sem dúvida, a mais perigosa delas é o álcool.
Maconha faz bem?
No geral, não. A maioria das pessoas não gosta dos efeitos e as afirmações de que a erva, por ser "natural", faz bem, não passam de besteira. Outros adoram e relatam que ela ajuda a aumentar a criatividade, a relaxar, a melhorar o humor, a diminuir a ansiedade. É inevitável: cada um é um.
O uso medicinal da maconha é tão antigo quanto a maconha. Hoje há muitas pesquisas com a cannabis para usá-la como remédio. Segundo o farmacólogo inglês Iversen, não há dúvidas de que ela seja um remédio útil para muitos e fundamental para alguns, mas há um certo exagero sobre seus potenciais. Em outras palavras: a maconha não é a salvação da humanidade. Um dos maiores desafios dos laboratórios é tentar separar o efeito medicinal da droga do efeito psicoativo - ou seja, criar uma maconha que não dê "barato". Muitos pesquisadores estão chegando à conclusão de que isso é impossível: aparentemente, as mesmas propriedades químicas que alteram a percepção do cérebro são responsáveis pelo caráter curativo. Esse fato é uma das limitações da maconha como medicamento, já que muitas pessoas não gostam do efeito mental. No Brasil, assim como em boa parte do mundo, o uso médico da cannabis é proibido e milhares de pessoas usam o remédio ilegalmente. Conheça alguns dos usos:
Câncer
Pessoas tratadas com quimioterapia muitas vezes têm enjôos terríveis, eventualmente tão terríveis que elas preferem a doença ao remédio. Há medicamentos para reduzir esse enjôo e eles são eficientes. No entanto, alguns pacientes não respondem a nenhum remédio legal e respondem maravilhosamente à maconha. Era o caso do brilhante escritor e paleontólogo Stephen Jay Gould, que, no mês passado, finalmente, perdeu uma batalha de 20 anos contra o câncer (veja mais sobre ele na página 23). Gould nunca tinha usado drogas psicoativas - ele detestava a idéia de que interferissem no funcionamento do cérebro. Veja o que ele disse: "A maconha funcionou como uma mágica. Eu não gostava do 'efeito colateral' que era o borrão mental. Mas a alegria cristalina de não ter náusea - e de não experimentar o pavor nos dias que antecediam o tratamento - foi o maior incentivo em todos os meus anos de quimioterapia".
Aids
Maconha dá fome. Qualquer um que fuma sabe disso (aliás, esse é um de seus inconvenientes: ela engorda). Nenhum remédio é tão eficiente para restaurar o peso de portadores do HIV quanto a maconha. E isso pode prolongar muito a vida: acredita-se que manter o peso seja o principal requisito para que um soropositivo não desenvolva a doença. O problema: a cannabis tem uma ação ainda pouco compreendida no sistema imunológico. Sabe-se que isso não representa perigo para pessoas saudáveis, mas pode ser um risco para doentes de Aids.
Esclerose múltipla
Essa doença degenerativa do sistema nervoso é terrivelmente incômoda e fatal. Os doentes sentem fortes espasmos musculares, muita dor e suas bexigas e intestinos funcionam muito mal. Acredita-se que ela seja causada por uma má função do sistema imunológico, que faz com que as células de defesa ataquem os neurônios. A maconha alivia todos os sintomas. Ninguém entende bem por que ela é tão eficiente, mas especula-se que tenha a ver com seu pouco compreendido efeito no sistema imunológico.
Dor
A cannabis é um analgésico usado em várias ocasiões. Os relatos de alívio das cólicas menstruais são os mais promissores.
Glaucoma
Essa doença caracteriza-se pelo aumento da pressão do líquido dentro do olho e pode levar à cegueira. Maconha baixa a pressão intraocular. O problema é que, para ser um remédio eficiente, a pessoa tem que fumar a cada três ou quatro horas, o que não é prático e, com certeza, é nocivo (essa dose de maconha deixaria o paciente eternamente "chapado"). Há estudos promissores com colírios feitos à base de maconha, que agiriam diretamente no olho, sem afetar o cérebro.
Ansiedade
Maconha é um remédio leve e pouco agressivo contra a ansiedade. Isso, no entanto, depende do paciente. Algumas pessoas melhoram após fumar; outras, principalmente as pouco habituadas à droga, têm o efeito oposto. Também há relatos de sucesso no tratamento de depressão e insônia, casos em que os remédios disponíveis no mercado, embora sejam mais eficientes, são também bem mais agressivos e têm maior potencial de dependência.
Dependência
Dois psiquiatras brasileiros, Dartiu Xavier e Eliseu Labigalini, fizeram uma experiência interessante. Incentivaram dependentes de crack a fumar maconha no processo de largar o vício. Resultado: 68% deles abandonaram o crack e, depois, pararam espontaneamente com a maconha, um índice altíssimo. Segundo eles, a maconha é um remédio feito sob medida para combater a dependência de crack e cocaína, porque estimula o apetite e combate a ansiedade, dois problemas sérios para cocainômanos. Dartiu e Eliseu pretendem continuar as pesquisas, mas estão com problemas para conseguir financiamento - dificilmente um órgão público investirá num trabalho que aposte nos benefícios da maconha.
O passado
O primeiro registro do contato entre o Homo sapiens e a Cannabis sativa é de 6 000 anos atrás. Trata-se da marca de uma corda de cânhamo impressa em cacos de barro, na China. O emprego da fibra, não só em cordas mas também em vários tecidos e, depois, na fabricação de papel, é um dos mais antigos usos da maconha. Graças a ele, a planta, original da região ao norte do Afeganistão, nos pés do Himalaia, tornou-se a primeira cultivada pelo homem com usos não alimentícios e espalhou-se por toda a Ásia e depois pela Europa e África.
Mas há um uso da maconha que pode ser tão antigo quanto o da fibra do cânhamo: o medicinal. Os chineses conhecem há pelo menos 2 000 anos o poder curativo da droga, como prova o Pen-Ts'ao Ching, considerado a primeira farmacopéia conhecida do mundo (farmacopéia é um livro que reúne fórmulas e receitas de medicamentos). O livro recomenda o uso da maconha contra prisão-de-ventre, malária, reumatismo e dores menstruais. Também na Índia, a erva já há milênios é parte integral da medicina ayurvédica, usada no tratamento de dezenas de doenças. Sem falar que ela ocupa um lugar de destaque na religião hindu. Pela mitologia, maconha era a comida favorita do deus Shiva, que, por isso, viveria o tempo todo "chapado". Tomar bhang seria uma forma de entrar em comunhão com Shiva.
O Hinduísmo não é a única religião a dar destaque para a cannabis. Para os budistas da tradição Mahayana, Buda passou seis anos comendo apenas uma semente de maconha por dia. Sua iluminação teria sido atingida após esse período de quase-jejum. Da Índia, a maconha migrou para a Mesopotâmia, ainda em tempos pré-cristãos, e de lá para o Oriente Médio. Portanto, ela já estava presente na região quando começou a expansão do Império Árabe. Com a proibição do álcool entre o povo de Maomé, iniciou-se uma acalorada discussão sobre se a maconha deveria ser banida também. Por séculos, consumiu-se cannabis abundantemente nas terras muçulmanas até que, na Idade Média, muitos islâmicos abandonaram o hábito. A exceção foram os sufi, membros de uma corrente considerada mais mística e esotérica do Islã, que, até bem recentemente, consideravam a cannabis fundamental em seus ritos.
Os gregos usaram velas e cordas de cânhamo nos seus navios, assim como, depois, os romanos. Sabe-se que o Império Romano tinha pelo menos conhecimento dos poderes psicoativos da maconha. O historiador latino Tácito, que viveu no século I d.C., relata que os citas, um povo da atual Turquia, tinham o costume de armar uma tenda, acender uma fogueira e queimar grande quantidade de maconha. Daí ficavam lá dentro, numa versão psicodélica do banho turco.
Graças ao contato com os árabes, grande parte da África conheceu a erva e incorporou-a aos seus ritos e à sua medicina - dos países muçulmanos acima do Saara até os zulus da África do Sul. A Europa toda também passou a plantar maconha e usava extensivamente a fibra do cânhamo, mas há raríssimos registros do seu uso como psicoativo naquele continente. Pode ser que isso se deva ao clima. O THC é uma resina produzida pela planta para proteger suas folhas e flores do sol forte. Na fria Europa, é possível que tenha se desenvolvido uma variação da Cannabis sativa com menos THC, já que não havia tanto sol para ameaçar o arbusto.
O fato é que, na Renascença, a maconha se transformou no principal produto agrícola da Europa. E sua importância não foi só econômica: a planta teve uma grande participação na mudança de mentalidade que ocorreu no século XV. Os primeiros livros depois da revolução de Gutemberg foram impressos em papel de cânhamo. As pinturas dos gênios da arte eram feitas em telas de cânhamo (canvas, a palavra usada em várias línguas para designar "tela", é uma corruptela holandesa do latim cannabis). E as grandes navegações foram impulsionadas por velas de cânhamo - segundo o autor americano Rowan Robinson, autor de O Grande Livro da Cannabis, havia 80 toneladas de cânhamo, contando o velame e as cordas, no barco comandado por Cristóvão Colombo em 1496. Ou seja, a América foi descoberta graças à maconha. Irônico.
Sobre as luzes da Renascença caíram as sombras da Inquisição - um período em que a Igreja ganhou muita força e passou a exercer o papel de polícia, julgando hereges em seu tribunal e condenando bruxas à fogueira. "As bruxas nada mais eram do que as curandeiras tradicionais, principalmente as de origem celta, que utilizavam plantas para tratar as pessoas, às vezes plantas com poderes psicoativos", diz o historiador Henrique Carneiro, especialista em drogas da Universidade Federal de Ouro Preto. Não há registros de que maconheiros tenham sido queimados no século XVI - inclusive porque o uso psicoativo da maconha era incomum na Europa -, mas é certo que cristalizou-se naquela época uma antipatia cristã por plantas que alteram o estado de consciência. "O Cristianismo afirmou seu caráter de religião imperial e, sob seus domínios, a única droga permitida é o álcool, associado com o sangue de Cristo", diz Henrique.
Em 1798, as tropas de Napoleão conquistaram o Egito. Até hoje não estão muito claras as razões pelas quais o imperador francês se aventurou no norte da África (vaidade, talvez). Mas pode ser que o principal motivo fosse a intenção de destruir as plantações de maconha, que abasteciam de cânhamo a poderosa Marinha da Inglaterra. O fato é que coube a Napoleão promulgar a primeira lei do mundo moderno proibindo a maconha. Os egípcios eram fumantes de haxixe, a resina extraída da folha e da flor da maconha constituída de THC concentrado. Mas a proibição saiu pela culatra. Os egípcios ignoraram a lei e continuaram fumando como sempre fizeram. Em compensação, os europeus ouviram falar da droga e ela rapidamente virou moda na Europa, principalmente entre os intelectuais. "O haxixe está substituindo o champagne", disse o escritor Théophile Gautier em 1845, depois da conquista da Argélia, que, na época, era outro grande consumidor de THC.
No Brasil, a planta chegou cedo, talvez ainda no século XVI, trazida pelos escravos (o nome "maconha" vem do idioma quimbundo, de Angola. Mas, até o século XIX, era mais usual chamar a erva de fumo-de-angola ou de diamba, nome também quimbundo). Por séculos, a droga foi tolerada no país, provavelmente fumada em rituais de candomblé (teria sido o presidente Getúlio Vargas que negociou a retirada da maconha dos terreiros, em troca da legalização da religião). Em 1830, o Brasil fez sua primeira lei restringindo a planta. A Câmara Municipal do Rio de Janeiro tornou ilegal a venda e o uso da droga na cidade e determinou que "os contraventores serão multados, a saber: o vendedor em 20 000 réis, e os escravos e demais pessoas, que dele usarem, em três dias de cadeia." Note que, naquela primeira lei proibicionista, a pena para o uso era mais rigorosa que a do traficante. Há uma razão para isso. Ao contrário do que acontece hoje, o vendedor vinha da classe média branca e o usuário era quase sempre negro e escravo.
O presente
Segundo dados da ONU, 147 milhões de pessoas fumam maconha no mundo, o que faz dela a terceira droga psicoativa mais consumida do mundo, depois do tabaco e do álcool. A droga é proibida em boa parte do mundo, mas, desde que a Holanda começou a tolerá-la, na década de 70, alguns outros países europeus seguiram os passos da descriminalização. Itália e Espanha há tempos aceitam pequenas quantidades da erva - embora a Espanha esteja abandonando a posição branda e haja projetos de lei, na Itália, no mesmo sentido. O Reino Unido acabou de anunciar que descriminalizou o uso da maconha - a partir do ano que vem, a droga será apreendida e o portador receberá apenas uma advertência verbal. Os ingleses esperam, assim, poder concentrar seus esforços na repressão de drogas mais pesadas.
No ano passado, Portugal endureceu as penas para o tráfico, mas descriminalizou o usuário de qualquer droga, desde que ele seja encontrado com quantidades pequenas. Porte de drogas virou uma infração administrativa, como parar em lugar proibido.
Nos últimos anos, os Estados Unidos também mudaram sua forma de lidar com as drogas. Dentro da tendência mundial de ver a questão mais como um problema de saúde do que criminal, o país, em vez de botar na cadeia, obriga o usuário a se tratar numa clínica para dependentes. "Essa idéia é completamente equivocada", afirma o psiquiatra Dartiu Xavier, refletindo a opinião de muitos especialistas. "Primeiro porque nem todo usuário é dependente. Segundo, porque um tratamento não funciona se é compulsório - a pessoa tem que querer parar", diz. No sistema americano, quem recusa o tratamento ou o abandona vai para a cadeia. Portanto, não é uma descriminalização. "Chamo esse sistema de 'solidariedade autoritária'", diz o jurista Maierovitch. O Brasil planeja adotar o mesmo modelo.
O futuro
Há possibilidades de uma mudança no tratamento à maconha? "No Brasil, não é fácil", diz Maierovitch, que, enquanto era secretário nacional antidrogas do governo de Fernando Henrique Cardoso, planejou a descriminalização. "A lei hoje em vigor em Portugal foi feita em conjunto conosco, com o apoio do presidente", afirma. A idéia é que ela fosse colocada em prática ao mesmo tempo nos dois países. Segundo Maierovitch, Fernando Henrique mudou de idéia depois. O jurista afirma que há uma enorme influência americana na política de drogas brasileira. O fato é que essa questão mais tira do que dá votos e assusta os políticos - e não só aqui no Brasil. O deputado federal Fernando Gabeira, hoje no Partido dos Trabalhadores, é um dos poucos identificados com a causa da descriminalização. "Pretendo, como um primeiro passo, tentar a legalização da maconha para uso médico", diz. Mas suas idéias estão longe de ser unanimidade mesmo dentro do seu partido.
No remoto caso de uma legalização da compra e da venda, haveria dois modelos possíveis. Um seria o monopólio estatal, com o governo plantando e fornecendo as drogas, para permitir um controle maior. A outra possibilidade seria o governo estabelecer as regras (composição química exigida, proibição para menores de idade, proibição para fumar e dirigir), cobrar impostos (que seriam altíssimos, inclusive para evitar que o preço caia muito com o fim do tráfico ilegal) e a iniciativa privada assumir o lucrativo negócio. Não há no horizonte nenhum sinal de que isso esteja para acontecer. Mas a Super apurou, em consulta ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual, que a Souza Cruz registrou, em 1997, a marca Marley - fica para o leitor imaginar que produto a empresa de tabaco pretende comercializar com o nome do ídolo do reggae.
Frases
"A popularidade da maconha explodiu em 1920, quando o álcool foi proibido"
"O consumo moderado de maconha não provoca nenhum dano sério à saúde"
"Das cordas às velas, havia 80 toneladas de cânhamo no navio de Colombo"
Para saber mais
Na livraria
O Grande Livro da Cannabis, Rowan Robinson, Jorge Zahar, 1999
A Maconha, Fernando Gabeira, Publifolha, 2000
Science of Marijuana, Leslie L. Iversen, Oxford, Ingleterra, 2000
The Pursuit of Oblivion: A Global History of Narcotics 1500-2000, Richard Davenport-Hines, Weidenfeld & Nicolson, Ingleterra, 2001
Diamba Sarabamba, Anthony Henman e Osvaldo Pessoa Jr. (organizações), Ground, 1986
Plantas de los Dioses, Richard Evans Schultes e Albert Hofmann, Fondo de Cultura Económica, México, 1982
The Emperor Wears no Clothes, Jack Herer, Green Planet Company, Inglaterra, 1994
Green Gold the Tree of Life, Chris Bennett, Lynn e Osbum, Judy Osbum, Access, EUA, 1995
Amores e Sonhos da Flora, Henrrique Carneiro, Xamã, 2002
terça-feira, 11 de junho de 2002
Grã-Bretanha vai tolerar consumo de maconha
LONDRES. Os britânicos em breve poderão fumar maconha sem medo de serem presos. O ministro do Interior, David Blunkett, anunciou ontem ao Parlamento que vai reclassificar a droga, passando-a da categoria B para a C, o que tornará a posse de pequenas quantidades e o consumo em ambiente particular ofensas punidas, na maioria das vezes, apenas com advertência da polícia ou a apreensão da droga.
Apesar do esforço de Blunkett para explicar que a maconha continuará sendo uma droga ilegal, sua declaração acirrou as críticas da oposição conservadora ao governo trabalhista e levou o ex-czar das drogas Keith Hellawell a renunciar ao cargo de conselheiro do governo. Indignado, ele disse que não poderia concordar com a decisão do ministro, que vem sendo apontado como candidato à sucessão do primeiro-ministro Tony Blair.
“Estão indo mais longe na descriminalização do que qualquer outro país do mundo”, disse Hellawell.
O porta-voz do Partido Conservador, Oliver Letwin, disse ao Parlamento que a medida enviará "mensagens profundamente confusas" aos consumidores de maconha e assegurará aos traficantes o controle da droga, já que a polícia daria as costas para o problema. Mas o argumento do governo é que, com a facilitação do uso de maconha, a polícia poderá se dedicar mais à repressão de drogas pesadas, como heroína e crack. Blunkett afirmou que em Brixton, bairro de Londres onde a polícia parou de reprimir o consumo de drogas leves, o percentual de traficantes presos aumentou 10% e a criminalidade diminuiu.
“Temos de concentrar nossos esforços nas drogas que causam mais danos”, disse.
Maconha estará na mesma classe dos antidepressivos
Com a mudança, a maconha estará no mesmo nível de periculosidade dos esteróides anabolizantes, dos hormônios de crescimento e dos antidepressivos. Atualmente, está na classe dos barbitúricos e das anfetaminas.
A nova lei deverá ser adotada em julho do ano que vem, após uma aprovação previsivelmente fácil no Parlamento de maioria trabalhista. Blunkett disse que a polícia continuará a prender consumidores em casos de ameaça à ordem pública ou de situações de risco para crianças.
Para o governo, a medida é uma resposta ao aumento acentuado do consumo de maconha no país nas duas últimas duas décadas, indicado por dados oficiais. Estima-se que cinco milhões de pessoas na Grã-Bretanha fumam maconha regularmente.
A medida deverá ser acompanhada de um aumento da pena máxima para traficantes de cinco anos para 14. Tentando afastar críticas de que o governo adota uma política leve para drogas, Blunkett assinalou:
“Não vamos legalizar ou descriminalizar qualquer droga, nem vislumbrar uma época em que isso será apropriado. A mensagem é clara. Drogas são perigosas. Vamos educar, persuadir e, quando necessário, direcionar jovens para longe do uso de drogas.”
Segundo uma pesquisa divulgada no ano passado, a maconha é a droga ilícita mais usada nos países da União Européia (UE), onde pelo menos um em cada dez adultos já a consumiu. O percentual de adultos que já consumiram a droga varia de 10% na Finlândia até 20% a 25% em Grã-Bretanha, França, Espanha e outros.
Blunkett rejeitou pedidos de que o ecstasy seja retirado da categoria A (de mais alto risco), considerando esta droga, além de crack e heroína, "um flagelo da nossa época".
“É uma droga que pode matar”, disse.
O ministro dedicou a maior parte de sua declaração à condenação às drogas pesadas. A Grã-Bretanha é o país da UE que registra o maior número de mortes relacionadas a drogas. A estimativa oficial é de que haja no país 250 mil consumidores de drogas considerados problemáticos, na maioria viciados em heroína.
Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idSubArea=132&idArea=1&idArtigo=299
quinta-feira, 25 de abril de 2002
Guerra perdida
Julita Lemgruber
Julita Lemgruber, 57, socióloga, é diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes. Foi diretora do Sistema Penitenciário (1991-94) e ouvidora de Polícia (1999-2000) no Estado do Rio de Janeiro.
"Cresce o cultivo de coca na Colômbia", dizia manchete do caderno Mundo no dia 9 de março último. De acordo com relatório da CIA (agência de inteligência dos EUA), o cultivo da coca, planta utilizada para a produção da cocaína, cresceu 24,7% na Colômbia no último ano, a despeito do Plano Colômbia, de combate ao narcotráfico, para o qual os EUA contribuem com US$ 1,3 bilhão. Ao final, informa o texto que "o subsecretário de Estado para assuntos de narcotráfico, Rand Beers, admitiu que a política americana de combate às drogas não tem significado uma redução na oferta de drogas".
Aliás, Barry McCaffrey, antecessor de Beers, ao deixar seu posto, reconheceu que, a despeito dos bilhões de dólares gastos nessa luta na era Clinton, nunca as drogas haviam estado tão puras, tão baratas e tão acessíveis em seu país. Ora, tem a "guerra contra as drogas", inspirada no modelo ditado por Washington, alguma chance de vitória?
Entre 1980 e 2000 o orçamento federal estadunidense para o combate às drogas passou de US$ 1 bilhão para US$ 18,5 bilhões.
Estimativas conservadoras mostram que, nos Estados Unidos, entre 1981 e 1998, o preço do grama de cocaína caiu de US$ 191 para US$ 44 e o grama de heroína passou de US$ 1.194 para US$ 317. No mesmo período, a pureza cresceu: passou de 60% para 66%, no caso da cocaína, e de 19% para 51%, no caso da heroína.
Quanto à acessibilidade, pesquisa de 1999 revelou que estudantes secundários consideram fácil adquirir drogas ilícitas nos Estados Unidos: 88% dos entrevistados disseram que é fácil comprar maconha e 47% afirmaram poder comprar cocaína sem dificuldades.
Anualmente morrem, nos Estados Unidos, aproximadamente 500 mil pessoas em conseqüência do uso de drogas lícitas (400 mil têm mortes relacionadas ao uso do tabaco e 100 mil morrem em conseqüência da ingestão de álcool); e apenas 20 mil mortes relacionam-se ao uso de drogas ilícitas. Ora, dirão alguns, esses números não servem para condenar as drogas lícitas, pois a quantidade de pessoas que usam álcool e tabaco é infinitamente maior, logo o número de mortes também deve ser, necessariamente, maior.
No entanto a ponderação pelo número de usuários revela que as drogas lícitas são de fato muito mais letais: morrem 506 pessoas em cada 100 mil usuários de álcool e tabaco, contra 166 em cada 100 mil usuários de maconha, cocaína, crack e heroína.
Além de não impedir que as drogas se tornassem mais baratas, puras e acessíveis, o modelo estadunidense de combate ao narcotráfico contribuiu para abarrotar as prisões, aumentando exponencialmente os gastos da Justiça e do sistema penitenciário. Pior: recente estudo realizado nos Estados Unidos mostrou que 36% de todos os presos condenados por crimes relacionados com drogas eram pequenos infratores, sem nenhum registro anterior de comportamento violento.
A violência que acompanha a expansão do mercado de drogas, nos EUA ou em outras partes do mundo, decorre em grande medida do próprio modelo repressivo adotado, que pode ser descrito, no mínimo, como esquizofrênico: proíbem-se as drogas, mas não as armas de fogo; criminaliza-se o comércio de substâncias menos letais do que o álcool e o tabaco; colocam-se na cadeia milhares de usuários e pequenos traficantes sem nenhuma periculosidade; e, ao mesmo tempo, incentiva-se a guerra generalizada dentro do tráfico e contra ele, o armamento até das polícias e da população, a mobilização de exércitos, a resolução à bala de disputas comerciais.
Um estudo do Ministério da Justiça estadunidense admite que os conflitos no interior do mercado de drogas ilícitas, junto com a proliferação das armas de fogo, estão entre os principais determinantes da violência letal naquele país; admite ainda que grande parcela dos homicídios se relaciona ao tráfico e que cerca de dois terços desses homicídios são cometidos com armas de fogo.
Mas, mesmo assim, continua a aposta na "guerra" como solução para o problema das drogas. Uma guerra perdida, que gera mais morte e destruição do que evita, que estimula não só a violência, como a corrupção da polícia e dos políticos, contra um mercado capaz de movimentar no mundo US$ 400 bilhões por ano só com a venda de drogas, sem contar os ganhos da indústria de armas. Será isso esquizofrenia ou hipocrisia?
O Brasil é hoje exemplo no mundo quando se fala em política de combate à AIDS. O sucesso dessa política foi resultado de campanhas corajosas e agressivas, ao longo das quais superamos preconceitos e enfrentamos interesses poderosos. Está mais do que na hora de iniciar um debate sério sobre a descriminalização das drogas, lembrando que, através de campanhas educacionais, também corajosas e honestas, poderemos evitar que pessoas morram pelo abuso de drogas pesadas. Não é com a repressão policial violenta, com gastos de somas fabulosas (que não temos!) ou com campanhas mentirosas que estaremos criando um mundo livre de drogas.
Muitas drogas ilícitas já foram legais no passado. Vamos ter que aprender a conviver com elas e desenvolver uma política consistente e conseqüente de redução dos danos das drogas pesadas. Mais ousadia e menos hipocrisia é do que precisamos para avançar nessa área, como conseguimos indiscutivelmente avançar na luta contra a AIDS.
Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idArea=1&idSubArea=126
segunda-feira, 1 de abril de 2002
Reflexões sobre uma indústria altamente rentável
Especial "Drogas" - 1ª parte
Alicia Ivanissevich
A variedade de opiniões sobre como abordar o problema do crescente consumo de drogas no Brasil e no mundo é imensa. Mas existe consenso pelo menos quanto a um ponto: trata-se de uma das indústrias mais rentáveis do planeta, ultrapassando inclusive a de petróleo. A venda mundial de entorpecentes para usuários é estimada em US$ 150 bilhões - quantia próxima à gasta pelos consumidores de cigarro (US$ 204 bilhões) e do álcool (US$ 252 bilhões). É, com certeza, o mercado ilícito que mais movimenta dinheiro.
Em todo o mundo, o consumo de drogas não pára de crescer. Os Estados Unidos são certamente o maior consumidor, sobretudo de cocaína e anfetaminas (as vendas chegam a US$ 60 bilhões), seguidos de perto pela Europa. Paquistão, Tailândia, Irã e China respondem pelo maior número de usuários de heroína - os preços baixos, entretanto, impedem que as vendas atinjam US$ 10 bilhões. Em países ricos, como a Grã-Bretanha, as drogas que mais atraem os jovens são as consumidas ocasionalmente, como a maconha, o ecstasy, as anfetaminas e a cocaína.
Ninguém gasta mais com uma política antidrogas do que os Estados Unidos: US$ 35 a 40 bilhões anuais. Os resultados, no entanto, não são nada animadores. A repressão tem ajudado a inchar as prisões e a tornar mais corrupta a polícia norte-americana. Milhares de jovens negros e hispânicos acabam na cadeia: há mais deles na prisão do que na escola. Apesar de o governo insistir em afirmar que a estratégia de combate está funcionando (o consumo ocasional caiu e o uso de drogas pesadas se estabilizou, segundo órgãos oficiais), um terço dos norte-americanos com mais de 12 anos de idade admitiu já ter experimentado drogas no último ano.
Ainda sobre o modelo norte-americano, devemos lembrar que, nos Estados Unidos, o tabaco mata proporcionalmente mais fumantes do que a heroína destrói a vida de seus usuários; da mesma forma, o álcool faz mais vítimas fatais do que a cocaína.
A avaliação das estatísticas e das experiências conduzidas em diversos países aponta para uma questão central: as políticas atuais para o controle de entorpecentes não parecem adequadas. É importante aqui recordar as conseqüências da instituição da Lei Seca nos Estados Unidos (1920-1933), que proibia a venda de álcool e só admitia o consumo dentro de casa. Nesses 13 anos, ocorreu, na verdade, uma distorção do sentido original da lei: a proibição acabou encorajando a formação de gangues, aumentando a corrupção policial e disseminando o crime por todo o território norte-americano.
Em uma extensa análise publicada em julho/agosto de 2001, a revista inglesa The Economist destaca a necessidade de rever a legalização das drogas - não apenas a posse e o uso, como também o comércio - para reverter radicalmente o quadro de corrupção policial, danos à saúde, crimes e prejuízos sociais a elas associados.
Motivado pela repercussão do artigo da The Economist, nosso conselho editorial decidiu refletir sobre a questão, convidando, para comentá-lo, alguns especialistas no assunto. São pesquisadores de diversas áreas do conhecimento que apresentam suas argumentações em prol ou contra a descriminalização das drogas, ponderando os danos causados tanto aos usuários de drogas ilícitas quanto à sociedade. Suas opiniões não refletem necessariamente o pensamento dos editores.
Este especial pretende funcionar como um caleidoscópio, através do qual o leitor de Ciência Hoje poderá construir, a partir dos fragmentos por ele escolhidos, sua própria avaliação sobre o tema. Para isso vale ter em mente: as políticas antidrogas de alguns governos são, muitas vezes, mais prejudiciais para a sociedade do que as próprias drogas.
Fonte: Ciência Hoje nº 181 (Abril de 2002)
Drogas: um panorama no Brasil e no mundo
Especial "Drogas" - 2ª parte
Alba Zaluar
Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Nos últimos 30 anos, inúmeros esforços foram feitos para deter o crescimento das drogas como poder econômico e fator degradante da sociedade. Uma postura radical, com a repressão severa e o encarceramento, já demonstraram ter pouca eficácia, gerando efeitos colaterais como o aumento da população carcerária e dos custos para mantê-la. Novas diretrizes, adotadas por países como os Estados Unidos, indicam que campanhas de informação, o incentivo à cooperação entre a população e a polícia e o investimento em programas de tratamento de dependentes graves podem diminuir a criminalidade, sendo um caminho para lidar melhor com um problema que já faz parte da cultura mundial.
À frente da war on drugs (guerra às drogas) desde o final dos anos 70, os Estados Unidos vêm adotando uma política repressiva, violenta e inútil, na tentativa de conter a produção e a comercialização de drogas. O objetivo é diminuir o consumo interno, que em vários estados também é reprimido por lei. Na década de 90, em apenas quatro anos foram gastos US$ 45 bilhões, pagos pelos contribuintes norte-americanos para financiar campanhas internacionais. Apesar desses esforços, os Estados Unidos continuam aparecendo nas estatísticas como o país com maior diversidade de drogas em circulação. Em Baltimore, cidade norte-americana com 740 mil habitantes, população predominantemente negra e renda média de US$ 19 mil anuais, estima-se que 60% de todos os crimes envolvam drogas. Entre 1986 e 1991, a polícia dessa cidade prendeu 82 mil pessoas por crimes e contravenções relativas a drogas. Em 1991, 46% dos homicídios nessa cidade tinham a ver com os entorpecentes.
Com a adoção da política de tolerância zero em várias cidades norte-americanas, em meados dos anos 90 o número de prisões feitas por pequenos delitos, entre os quais o uso e o comércio de drogas, ajudou a elevar drasticamente a população carcerária, aumentando ainda mais os custos da repressão interna. Os Estados Unidos tornaram-se campeões do mundo nesse item (um milhão e meio de pessoas presas). Os índices de criminalidade baixaram em várias cidades, ao mesmo tempo em que novas medidas foram aplicadas. Por exemplo, projetos de cooperação entre a população e a polícia, patrulhamento a pé, planejamento, treinamento e recrutamento de “policiais de serviços” e de “civis”. Todas essas medidas visavam conquistar a confiança dos moradores, ao mesmo tempo em que os policiais abandonavam a postura de “caçadores” dentro de viaturas, de onde não interagiam com as pessoas e que inspiravam nelas medo e hostilidade.
Hoje a sociedade norte-americana divide-se em torno do acirrado debate sobre a legalização do uso de drogas. Representantes do próprio governo expressam preocupação com a superpopulação carcerária; agentes penitenciários denunciam que a maioria dos presos é de usuários de drogas e não de perigosos criminosos.
Nos organismos internacionais, o debate e a preocupação não são menores. Segundo o Conselho Social e Econômico das Nações Unidas (dados de 1994), o crime organizado transnacional, com capacidade de expandir suas atividades ao ponto de ameaçar a segurança e a economia dos países, particularmente aqueles em transição e desenvolvimento, representa atualmente o maior perigo que os governos precisam enfrentar para assegurar sua estabilidade e segurança.
Razões do uso de drogas
Numerosos estudos abordam a dificuldade da separação entre traficante e usuário, sombreada pelos efeitos do vício que a droga proporciona. Pesquisas do tipo survey ou levantamento, muito caras e de difícil metodologia, foram conduzidas nos Estados Unidos com a conclusão de que os homens, mais do que as mulheres, usam drogas ilegais. Homens mais novos (de 18 a 25 anos) usam mais do que os mais velhos; os desempregados mais do que os empregados; os solteiros e divorciados mais do que os casados.
Existem igualmente estudos focalizados nas relações familiares, de emprego e de vizinhança que os usuários abusivos de drogas mantêm. As conclusões contestam as idéias de senso comum, que associam tais comportamentos à pobreza, a “lares desfeitos” e a “más companhias”. Alguns estudos procuram mostrar que não a pobreza, mas as próprias exigências do funcionamento do tráfico são a origem do comportamento violento associado ao uso de drogas. Outros juntam evidências de que a falta de diálogo aberto entre pais e filhos abre caminho para o consumo das mesmas. Seria, então, a violência doméstica e a ausência dos pais, mais do que a separação deles, as principais razões do uso de drogas. A curiosidade, a valorização do proibido e do risco, característicos da adolescência, assim como o desejo de se afirmar como alguém capaz de enfrentar a morte, faz do uso de drogas proibidas uma atração constante para os jovens, só superada pela informação, pelo diálogo e pela preocupação demonstrada pelos adultos.
Usuários e traficantes
No Brasil, o governo sempre adotou medidas repressivas no combate às drogas, e a polícia tem um enorme poder em determinar quem será ou não processado e preso como traficante, crime considerado hediondo. No que se refere à administração da justiça, jovens pobres, negros ou mulatos são presos como traficantes, o que ajuda a criar uma superpopulação carcerária, além de tornar ilegítimo e injusto o funcionamento do sistema jurídico no país. Policiais costumam prender meros fregueses ou pequenos repassadores de drogas (aviões) para mostrar eficiência no trabalho. A quantidade apreendida não é o critério diferenciador. Essa indefinição, que está na legislação, favorece o abuso do poder policial que, por sua vez, inflaciona a corrupção.
No Rio de Janeiro, onde coordenei trabalho de campo realizado entre 1998 e 2000 em três bairros - Copacabana, Tijuca e Madureira - e em que entrevistamos cerca de 120 policiais, moradores, usuários e alguns repassadores, concluímos que os usuários eram, em sua maioria, usuários sociais. Em comum, tinham a busca da privacidade e de um uso discreto para “não dar na vista”, nem assustar os demais freqüentadores dos locais de boemia. Isso não quer dizer que não existam usuários pesados. Estes têm dificuldades no relacionamento com os usuários sociais e mesmo com os traficantes, que não os respeitam, nem gostam deles por chamarem a atenção da polícia e não conseguirem pagar as dívidas.
Usuários de Copacabana, Tijuca e Madureira, de modo geral, evitaram classificar-se como dominados pela droga ou capazes de qualquer coisa para obtê-la, escapando dos estereótipos do marginal. Só aqueles que foram entrevistados quando já estavam sob tratamento admitiram a dependência e a associação com outras práticas criminais.
Traficantes de favelas na Tijuca e em Madureira controlam mais facilmente as ruas do bairro, seja para impedir que vendedores independentes comercializem drogas por ali, seja para demonstrar o seu poder de fogo. Não é incomum vê-los andando armados. Quando um vendedor não autorizado é identificado pelos “donos” das bocas de fumo (por extensão, das favelas), ele é ameaçado de morte. Nesses dois bairros, é preciso ter a permissão dos “donos” para vender drogas. Na Tijuca, a proximidade dos morros tira a paz e a tranqüilidade do bairro residencial e conservador: tiros atingem as casas, matando gente que assiste à televisão ou dorme.
O estilo do tráfico na Tijuca e em Madureira, poderia ser resumido como diretamente controlado pelos traficantes de favela, caracterizado pelo uso corriqueiro da arma de fogo para assegurar o território, cobrar dívidas, afastar concorrentes e amedrontar possíveis testemunhas. Isso marca uma diferença crucial em relação à Copacabana, cujo estilo discreto dos traficantes se caracteriza pela clandestinidade e ausência de controle de territórios.
Estar “ligado”, estar “chapado”
No caso específico da maconha e da cocaína, verificou-se a importância do grupo e do ambiente na decisão de consumi-las, assim como na continuidade do uso. Todos os entrevistados que experimentaram drogas ilegais - permanecendo ou não como usuários - registraram que a primeira experiência ocorreu em situações coletivas e de lazer como acampamentos, viagens e festas. Por isso mesmo, aqueles que interromperam momentânea ou definitivamente o uso dessas substâncias, se afastaram do grupo e do ambiente associado a essa prática. Os que voltaram a usar, mesmo após tratamento e desintoxicação, devem a “recaída” a encontros com amigos e conhecidos, ligados aos circuitos e locais em que as drogas ilegais são comercializadas e compartilhadas.
Embora haja alguns usuários múltiplos de maconha e cocaína, em geral são grupos que não se misturam. O etos e as imagens associadas a cada uma dessas drogas divergem entre si. A maconha teria um etos bucólico, com referências ao dia, ao campo, à natureza, à comida, à saúde, ao ócio e à paz. Já a cocaína, seria associada a um uso mais urbano e artificial, à saída noturna para boates, ao viver agitado, à degeneração do corpo, e à guerra. Ela também é usada para potencializar a capacidade produtiva, especialmente no trabalho noturno, como o de jornalistas, bancários, caminhoneiros, vigias etc. Entrevistados nos três bairros assinalaram que entre os efeitos desejados estão a euforia, a “adrenalina”, a “ligação” e “o ficar aceso”, atribuídos à cocaína; assim como o “estar chapado” ou “ficar lesado”, “desligado”, devido à maconha.
Segundo usuários, por causa da cocaína, “o cara mata, não tem amizade, não tem nada”, o que nos indica a maior associação entre o traficante e o usuário quando a droga é a cocaína. Vários afirmaram ter visto “gente se destruir” e homens que “deixam de querer saber de mulher” ou “que viram mulher”, “que se prostituem para pagar o vício”. Assertivas que foram confirmadas pelas histórias de vida de prostitutas e michês ouvidos em Copacabana.
O prazer da transgressão
Não falta, no Brasil, o que o antropólogo norte-americano Howard Becker chamou de “motivação de um ato desviante”. Esta deriva de uma situação na qual o sujeito não aceita o jogo social e político vigente, e se revolta contra ele. A pobreza não explica o ato desviante mas, em conjugação com as falhas do Estado, pode facilitar a escolha ou a adesão às subculturas marginais de uso de drogas ilícitas. Tais subculturas se formam a partir do próprio preconceito dos agentes governamentais e da sociedade em relação aos usuários de drogas. A imagem negativa, a discriminação, o medo, a “satanização” do viciado contribuem decisivamente para a cristalização desses grupos, assim como dos tons agressivos e anti-sociais que algumas vezes adquirem.
Já o ato desviante ou sua repetição decorrem do aprendizado do jovem junto ao grupo social de desviantes, ao qual ele vem a fazer parte. Este “pertencimento” gera uma série de atitudes, valores e identidades que podem se cristalizar, assim como gerar laços reais de amizade, domínio ou dívida, dificultando o rompimento com o grupo e, conseqüentemente, com o próprio desvio. Porém, não se pode concluir que todos os usuários de drogas são iguais ou que professam o mesmo credo cultural. Pesquisas feitas em todo o mundo sugerem diferentes graus de envolvimento com a droga e com o grupo: se a tomam nas horas de lazer, se ela define um estilo de vida alternativo compartilhado com outras pessoas e que estilo é esse, se ela é o eixo da identidade do usuário compulsivo.
Não seria exagero afirmar que, entre os jovens pobres, existe maior pressão para o envolvimento com grupos de criminosos comuns, por conta da facilidade de entrar em dívida com traficantes, da repressão policial e da dificuldade em encontrar atendimento médico e psicológico quando vêm a ter problemas reais com o uso e controle das drogas.
No Brasil, o atendimento nos hospitais públicos, onde há programas de tratamento de viciados, todos os problemas apontados se unem de forma trágica: normas internas rígidas, atendimento precário por falta de equipamentos e de pessoal tecnicamente qualificado, atraso nos calendários. Burocratas sem compromisso com os objetivos humanos e políticos desses programas prejudicam a ação dos poucos médicos realmente interessados neles. Por outro lado, os efeitos negativos dos internatos que criam outras formas de exclusão dos viciados já foram bastante apontados na literatura.
A busca de soluções
Enquanto isso, em países como os Estados Unidos, o entendimento da questão das drogas em novos termos provocou uma verdadeira revolução no atendimento e proteção ao usuário pesado. Nos Estados Unidos, líder da política proibitiva, numerosos estudos encomendados pelo governo mostraram que os custos de programas de prevenção do uso de drogas e de tratamento de dependentes é muito mais barato (entre 20 e 10 vezes) e eficaz do que a repressão externa e interna respectivamente. Relatório recente da ONU (1997) e pesquisa realizada em Miami demonstram, por exemplo, que dependentes de drogas em tratamento tendem a cometer muito menos crimes (entre 4 e 10 vezes menos) contra a propriedade e contra pessoas, do que os que não estão sob tratamento.
Com base em dados de fontes variadas, é possível montar-se políticas de tratamento e de prevenção que façam declinar a violência nas regiões metropolitanas brasileiras. Tais políticas deveriam se desenvolver com a participação da própria população - tanto as vítimas quanto os agentes da violência -, para a mudança de práticas e concepções em associações, comitês de moradores ou grupos de discussão.
A proposta inicialmente apresentada ao Congresso Nacional era que a apreensão da droga e a punição aplicada ao reincidente (quando caracterizado como usuário) deixassem de ser julgadas pelo Código penal, passando a ser problema de ordem sanitária ou administrativa. Isto porque “o consumo é próprio do direito privado” (ou civil) e “o direito penal não pode ter por objeto condutas estritamente privadas”. Tal proposta defendia, ainda, uma estratégia preventiva extensa a todas as substâncias psicoativas lícitas e ilícitas. O alvo é a “pessoa humana” e não a substância psicoativa em si. O projeto aprovado substitui a pena de privação de liberdade pela pena de tratamento forçado em clínicas especializadas, o que mantém na prática a criminalização.
Sugestões para leitura
BETTANCOURT, G. & GARCIA, M. Contrabandistas, marimberos y mafiosos. Historia social de la mafia colombiana, TM editores, Bogotá, 1994.
LABROUSSE, A. & KOUTOUSIS, M. Géopolitique et géostratégies des drogues, Paris, Economica, 1996.
REUTER, P. Disorganized crime: illegal markets and the mafia, Massachusetts, MIT Press, 1986.
ZALUAR, A. “Para não dizer que não falei de samba -- os enigmas da violência no Brasil”, in L. M. Schwarcz, História da Vida Privada no Brasil vol. 4 - Contrastes da intimidade contemporânea, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.
Fonte: Ciência Hoje nº 181 (Abril de 2002)
Nada de novo no front
Especial "Drogas" - 3ª parte
Alexandre Moura Dumans (Departamento de Direito Penal, Universidade Cândido Mendes) e Vera Malaguti Batista (Departamento de Criminologia, Universidade Cândido Mendes).
Descriminalizar não apenas o uso, mas também o comércio de drogas parece uma idéia chocante e insensata? A resposta deve ser não, se levarmos em conta que em nosso país, a maioria dos condenados por tráfico de entorpecentes - crime hediondo e inafiançável segundo a atual legislação - não são os verdadeiros “chefões” das drogas, mas jovens negros e pobres recrutados pelo mercado ilegal graças à falta de oportunidades imposta pelo modelo econômico ao qual estamos submetidos. A nova Lei de Tóxicos, portanto, permanece atrelada aos valores das oligarquias, mantendo seu controle social sobre os marginalizados.
A discussão sobre o problema das drogas no Brasil parece estar presa a uma espécie de armadilha do tempo, que aponta para trás. As modificações legais representam sempre um “avanço para o passado”.
A socióloga venezuelana Rosa del Olmo, a maior intelectual latino-americana a trabalhar o assunto, adverte para a dificuldade de analisar um tema tão mistificado. Ela defende que a mistura de informação, desinformação e até contra-informação produz uma “saturação funcional à ocultação de seus problemas”. Para evitar tal saturação, teríamos que compreender a questão das drogas de acordo com o sistema penal no capitalismo tardio (globalização), o poder infinito do mercado e o papel que a política criminal de entorpecentes, capitaneada pelos Estados Unidos, desempenha no processo de criminalização global dos pobres. Para Rosa del Olmo, faz parte da desmistificação ou aproximação crítica ao problema dos tóxicos enquadrá-lo em uma perspectiva geopolítica - através da análise das relações de poder no sistema mundial.
O fracasso dos Estados Unidos
Os Estados Unidos têm sido o eixo central da atual política de drogas no continente americano. As marcas de seu fracasso são a multiplicação das áreas de cultivo, a organização dos traficantes, a corrupção de autoridades, o crescimento da adicção e o aumento da criminalidade. Por outro lado, a América Latina tem sido fonte produtora de maconha, cocaína e até de heroína para consumo nos Estados Unidos e na Europa. A crise econômica é uma constante na geopolítica desse quadro. As novas políticas de ajuste econômico favorecem a expansão dessa produção voltada para o comércio globalizado. Podemos observar que a cada novo “ajuste” corresponde uma nova onda de criminalização e encarceramento.
Paralelamente a esse processo econômico, o governo dos Estados Unidos, desde os anos 80, utiliza o “combate às drogas” como ponto central da política norte-americana no continente. Passam a difundir termos como “narcoguerrilha” e “narcoterrorismo”, em uma clara simbiose dos seus “inimigos externos”. As drogas passam a ser o pretexto das políticas de segurança nacional nos países atrelados a Washington, ao mesmo tempo em que o capital financeiro e a nova divisão internacional do trabalho obrigam tais países a serem os produtores da valiosa mercadoria. Os países andinos se transformam em campos de batalha e nossas cidades se transformam em mercados brutalizados para o varejo residual das drogas ilícitas.
Guerra santa contra as drogas
Outro ponto importante para a desconstrução do assunto “drogas” é rompermos o discurso moral que o ronda. Como disse o advogado Nilo Batista, quando incorporamos a idéia de “cruzada” contra os entorpecentes, introduzindo a combinação de elementos morais e religiosos, estamos exigindo ações sem limites, sem restrições e sem padrões reguladores. Não há nada mais parecido com a inquisição medieval do que a atual guerra santa contra as drogas, com a figura do “traficante-herege que pretende apossar-se da alma de nossas crianças”. E os mortos dessa cruzada têm uma extração social comum: são jovens, negros/índios/árabes e são pobres.
Gostaríamos de comentar duas recentes publicações que tiveram enorme repercussão no debate sobre drogas no Brasil: a reportagem intitulada “Stumbling in the dark” (Tropeçando no escuro), na revista The Economist e o filme Traffic, do cineasta norte-americano Steven Soderbergh. Ambos têm um mérito: apontar a grande falácia das políticas criminais de drogas lideradas pelos Estados Unidos, sendo que a reportagem frisa a insensatez da descriminalização apenas do consumo. Como criminalizar a venda de um produto indiferentemente consumido? Mas ambos destilam sobre nós o veneno colonial: The Economist de uma forma mais elegante, e Traffic de forma mais grotesca. Tanto um quanto outro atribuem aos países produtores o ethos (ética) da corrupção. Não haveria controle da oferta porque países como a Colômbia e o México são muito corruptos. Mas as drogas ilegais são distribuídas até o varejo de todas as cidades da Europa e da América do Norte, apesar da “superioridade ética” de suas instituições policiais.
A revista inglesa afirma que o varejo é feito pelos imigrantes pobres por razões culturais (será?) e somente como complemento por sua dificuldade de acesso ao emprego (esta seria uma razão secundária). Já o filme Traffic (elogiado na The Economist) escancara o olhar preconceituoso sobre nós. No filme, tudo o que é mexicano é corrupto, imoral, anárquico e caótico. Mas não há um só agente norte-americano corrupto. Estão todos na luta contra o mal, alguns equivocados, alguns ingênuos, mas todos “bons”. Não há cena mais repugnante do que aquela em que o traficante/negro/herege praticamente estupra a jovem branca, loura, linda e indefesa, consumidora, filha do czar das drogas. Aquela imagem reproduz a idéia, oriunda da geopolítica das drogas, de que países como a Bolívia seriam os agressores e os Estados Unidos, a vítima. É com esse discurso que o aparato bélico-industrial dirigido pelo jovem Bush pretende renovar sua história de intervenções militares na América Latina, através do acirramento do conflito na Colômbia, com o auxílio luxuoso da mídia e dos governos neoliberais do continente.
Vitória da verdade sobre a hipocrisia
A tarefa dos profissionais que se dedicam a refletir sobre as questões da criminalidade, das drogas e da violência na periferia do capitalismo é estabelecer sua própria pauta. Nossa reflexão tem que romper com os estereótipos que nos foram conferidos pelo capital vídeofinanceiro, pelos meios de comunicação de massa. Queremos novos destinos para a nossa juventude pobre que não sejam a cadeia ou o extermínio; queremos estudar a questão da droga e a criminalização crescente das mulheres; queremos avaliar os efeitos do uso dos herbicidas norte-americanos em nosso ambiente; queremos produzir uma reflexão latino-americana voltada para nossa realidade; reconstruir os paradigmas oferecendo uma forma radicalmente distinta de definir, estudar e controlar nossos problemas.
Nessa linha, a descriminalização do uso e do comércio de entorpecentes é a vitória da verdade sobre a hipocrisia. A União Européia de Monitoramento de Drogas afirma que 45 milhões de seus cidadãos experimentaram maconha ao menos uma vez e 15 milhões fizeram uso nos últimos 12 meses. Quando 45 milhões de pessoas - apenas na Europa - violam uma lei, sua legitimidade deve ser questionada.
Atualmente - fora os países que já promoveram uma completa descriminalização, a exemplo de Holanda, Dinamarca e outros -, em nações como Alemanha e França, o uso de drogas, malgrado subsista como crime, vem sendo tolerado pelas autoridades. A Bélgica, recentemente, apresentou proposta de somente punir o usuário quando ele se tornar “problemático”. A Espanha há muito não processa usuário de qualquer espécie de droga ilícita, desde que a consuma reservadamente. Portugal, em meados do ano passado, descriminalizou o uso de drogas, impondo ao usuário o pagamento de multa ou prestação de serviço comunitário, mas nunca a prisão. Na Inglaterra, Peter Lilley, líder do partido conservador, propôs a concessão de licença para venda de maconha em lojas especializadas. No Canadá, onde a Real Polícia Montada já tolerava o porte de pequena quantidade de droga, a permissão do uso de maconha com finalidades terapêuticas decorreu da declaração de inconstitucionalidade da interdição da Cannabis sativa na lei de drogas, pela Corte de Apelação de Ontário. No Brasil, a recente Lei no 10.259, de 12 de julho de 2001, passou a considerar o uso de drogas “delito de pequeno potencial ofensivo”, cujos infratores já não serão submetidos à prisão em flagrante.
Tudo isso mostra que a descriminalização do uso e do comércio de drogas é medida que está em curso em inúmeros países. Afinal, tal espécie de incriminação violenta o princípio segundo o qual não cabe criminalizar condutas que não produzam lesão a algum bem jurídico ou que lesionem apenas o próprio agente. O indivíduo deve ser soberano sobre seu corpo e sua mente. A idéia de risco à saúde é hoje um argumento vetusto e, neste particular, caminha bem o texto de The Economist, que assegura não haver diferença entre injetar uma dose de heroína e escalar uma montanha. Ambos os comportamentos apresentam riscos e devem, apesar da preocupação de seguradoras e de mães, ser tolerados pelo Estado de direito democrático.
Versão tardia e pobre da “Lei seca”
Parece claro que o banditismo do tráfico local de drogas no Brasil é apenas uma versão tardia e pobre do banditismo do tráfico de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos dos anos 30. Essa enfadonha repetição traz desgraçadas conseqüências, especialmente para aqueles que habitam os morros e as periferias das cidades brasileiras, sempre qualificados como traficantes quando surpreendidos com qualquer quantidade de droga, diversamente do jovem “do asfalto”, que será considerado apenas usuário, objeto do lado brando da lei.
É exatamente esse tratamento diferenciado que compromete qualquer política de drogas. À indiferença penal quanto ao uso deve corresponder a indiferença penal quanto ao comércio. De nada vale a liberação do uso se a criminalização do tráfico for mantida, pois é através das ambigüidades conceituais que se apresentam na aplicação desta última que as agências policiais manipulam a classificação usuário/traficante. Ou seja, permite-se que tais agências reservem o cárcere para negros, desempregados e pobres em geral. Na prática, a classificação seletiva pode representar quase uma autorização policial para matar. Quando a execução se antecipa à investigação, a oportuna classificação post mortem subtrai o interesse do caso, como nas centenas de pequenas notas das páginas vermelhas: “Três traficantes morreram ontem...”.
Passos para o passado
A recente discussão sobre a nova lei de drogas caminha a passos largos para o passado. Quando se fala em descriminalizar, o máximo a que se chega é a um ponto de vista do qual não compartilhamos: aquele que legisla a partir de certos redutos eleitorais, de jovens consumidores de classe média e alta. Em pesquisa feita nos arquivos do antigo Juizado de Menores do Rio de Janeiro, constatamos que a juventude de classe média e alta já conta com mecanismos privados de descriminalização. Os projetos de descriminalização do usuário deixam ainda mais expostas à demonização as principais vítimas dos efeitos perversos da exclusão globalizada: a juventude pobre de nossas cidades, recrutada pelo mercado ilegal graças à falta de oportunidades imposta pelo modelo econômico ao qual estamos submetidos.
O amplo apoio que a atual política criminal de drogas recebe das oligarquias brasileiras e dos “especialistas” a seu serviço provém muito mais da fantástica alavancagem de controle social penal sobre os marginalizados do que de qualquer resultado compatível com a saúde pública: sua força está em favorecer a violência e a morte, não a saúde e a vida. É lamentável que algo tão evidente seja diariamente mistificado. Porém, também aqui, a exemplo de tantos outros tópicos criminológicos, tal mistificação é muito útil, como Rosa del Olmo advertiu.
Sugestões para leitura
OLMO, R. del, Drogas: inquietudes e interrogantes, série “Textos para su Estúdio”, nº 4, Caracas, Fundación José Félix Ribas, 1998.
BATISTA, N., “Política criminal com derramamento de sangue” in Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 20, p. 129, ed. Revista dos Tribunais, ano 5, São Paulo, março-dezembro/1997.
CARVALHO, S. de, A política criminal de drogas no Brasil - do discurso oficial às razões da descriminalização, Rio de Janeiro, Luam Editora Ltda., 1996.
BATISTA, V. M., Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, ed. F. Bastos, 1999.
Fonte: Ciência Hoje nº 181 (Abril de 2002)