21 de julho de 1998, Correio Braziliense
O funcionário aposentado do Itamaraty, Waldir Affonso da Costa, 61 anos, levou de volta, ontem, da Delegacia de Tóxicos e Entorpecentes (DTE) para a chácara 21 da Fazenda Mestre D'Armas, em Planaltina, onde mora, o carregamento de sementes de maconha que lhe rendeu, em 1994, seis meses de prisão.
Waldir fez a importação do produto da Hungria pensando em alimentar galinhas. Tanto que trouxe junto seis chocadeiras, que faziam parte do seu sonho - na época - de novo aposentado. Agora Affonso vai entrar com uma ação contra a União, pedindo uma indenização calculada em torno de R$ 10 milhões por danos morais e materiais.
Affonso comprou as sementes na Hungria - onde trabalhou durante quatro anos como funcionário administrativo do Itamaraty -, em março de 1994, e trouxe para o Brasil quando retornou em junho do mesmo ano, junto com a mudança da família. O transporte foi de navio, pelo Rio de Janeiro. Trinta sacos de nylon cheios. Daria para alimentar duas mil galinhas durante um mês.
Prisão
Dias depois da chegada em Brasília, a polícia invadiu o segundo andar do depósito da chácara de Waldir para recolher as sementes e levá-lo preso, por tráfico internacional de drogas. Passou dois meses na carceragem da Coordenadoria de Polícia Especializada (CPE) e quatro meses no Núcleo de Custódia da Papuda. "Minha mulher (Judith) e meus filhos (Paulo, que tinha dez anos na época, e Sofia, com 12 anos) passaram um dia inteiro detidos na delegacia", diz Waldir.
No dia 26 de novembro de 1996 veio a sentença. Depois de exames do Instituto Médico Legal (IML), a polícia conclui que as sementes não germinavam e não eram tóxicas. A devolução do produto ao dono foi determinada à DTE pelo ofício 1.937 do juiz da 2ª Vara de Entorpecentes do Tribunal de Justiça (TJDF), Marco Antônio da Silva Lemos.
Na ocasião, o advogado criminalista Divaldo Teófilo de Oliveira Neto entendeu que a decisão do juiz era normal. "A semente não possui o princípio ativo da maconha, o THC. É como comprar um revólver. Desde que a pessoa tenha o registro, não é crime mantê-lo em casa."
A decisão também foi comemorada pelo deputado ecologista Fernando Gabeira (PV-RJ), que teve 5,5 quilos de sementes de maconha, importados igualmente da Hungria, apreendidos em maio de 1996 pela Polícia Federal. Incentivado pela decisão do juiz ele entrou com um recurso pedindo a devolução do produto.
Depois de todos os transtornos e sofrimentos que passou, Waldir deixou de lado a idéia de criar galinhas. Mas agora, com a recuperação das sementes, pensa em retomá-la. Ele explica que "a semente do cânhamo (erva da família da Cannabis sativa, a maconha) desenvolve a plumagem das galinhas. Quando estão na fase de muda, as sementes aceleram o crescimento", diz.
"Naquela época, policiais chegaram a dizer que eu tinha pés de maconha plantados na chácara. Um absurdo. Como podia ser, se as sementes não germinam?", pergunta ainda hoje Waldir revoltado.
Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idSubArea=68&idArea=1&idArtigo=160
sexta-feira, 21 de agosto de 1998
domingo, 16 de agosto de 1998
EUA têm “hemp bier”
16 de agosto de 1998, Folha de S. Paulo
Patrick Sabatier
Do Libération, em Lexington.
Tradução de Clara Allain.
"Ninguém bebe esta cerveja para ficar doidão", garante Tracy, a garçonete loiríssima da pizzaria Uno, em Lexington, ao freguês que acaba de lhe pedir uma Kentucky Hemp, a cerveja à base de cânhamo produzida na cidade. "Todo mundo sabe que ela não tem nada a ver com maconha."
Apesar disso, a palavra "hemp" (cânhamo) se destaca em letras enormes no rótulo da garrafa. Sobre o peito de um cavalo vermelho, o orgulhoso corcel exibe a folha de cânhamo de pontas alongadas e rendadas, tão conhecida dos adeptos do baseado.
Para não deixar margem a dúvidas, Bill Ambrose, o jovem executivo da Lexington Brewing Company, a "microcervejaria" que fabrica e comercializa esta Kentucky Hemp desde janeiro, gentilmente oferece ao visitante o folheto da Hemptech (rede de informações sobre cânhamo industrial), que enumera "os 25 mil usos conhecidos" do cânhamo. Esses incluem desde produção de roupas da grife Calvin Klein até o papel especial produzido na França pela gigantesca empresa de papel Kimberley-Clark. Até o início do século, Lexington foi o maior centro mundial de comércio de cânhamo. Durante dois séculos a Cannabis sativa, ao lado do Bourbon e dos cavalos puro-sangue, foi um pilar da prosperidade da região e motivo de orgulho de seus habitantes. Desde a chegada dos primeiros colonos ao Kentucky, no século 18, até a aprovação da lei que proibiu seu cultivo, em 1937, o produto foi a cultura mais lucrativa dos fazendeiros dos Estados Unidos. "Semeiem cânhamo por toda a parte e utilizem-no o quanto puderem", foi o conselho dado aos americanos pelo "pai da pátria", George Washington.
O plantio do cânhamo é, para os agricultores do Kentucky, a única alternativa ao tabaco, sua fonte principal de recursos e que, segundo eles, corre o risco de ser proibido. Tanto assim que 77% dos habitantes do Estado são favoráveis à legalização do cultivo do cânhamo.
Mas a idéia tropeça na hostilidade da DEA (órgão de combate às drogas do governo americano) e de todos aqueles que, por ignorância ou deliberadamente, metem a maconha e o cânhamo industrial no mesmo saco.
"Nossa cerveja não gerou nenhuma polêmica no Kentucky", garante Ambrose. "Todo mundo sabe que cânhamo e maconha são duas coisas diferentes. Mesmo meu tio, que tem 82 anos e é superconservador, sabe disso."
Gosto de avelã
"A primeira razão pela qual utilizamos o cânhamo é que ele dá um gosto ótimo à cerveja", diz Ambrose. A cerveja à base de cânhamo deixa um ligeiro sabor de avelãs. "É uma cerveja para o grande público, não para os especialistas", diz Brian Miller.
Desde o ano passado, outras cervejas à base de cânhamo apareceram no mercado americano: a Hemp Gold, produzida em Maryland, a Humboldt Hemp na Califórnia e a canadense Hemp Cream.
Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idSubArea=68&idArea=1&idArtigo=159
Patrick Sabatier
Do Libération, em Lexington.
Tradução de Clara Allain.
"Ninguém bebe esta cerveja para ficar doidão", garante Tracy, a garçonete loiríssima da pizzaria Uno, em Lexington, ao freguês que acaba de lhe pedir uma Kentucky Hemp, a cerveja à base de cânhamo produzida na cidade. "Todo mundo sabe que ela não tem nada a ver com maconha."
Apesar disso, a palavra "hemp" (cânhamo) se destaca em letras enormes no rótulo da garrafa. Sobre o peito de um cavalo vermelho, o orgulhoso corcel exibe a folha de cânhamo de pontas alongadas e rendadas, tão conhecida dos adeptos do baseado.
Para não deixar margem a dúvidas, Bill Ambrose, o jovem executivo da Lexington Brewing Company, a "microcervejaria" que fabrica e comercializa esta Kentucky Hemp desde janeiro, gentilmente oferece ao visitante o folheto da Hemptech (rede de informações sobre cânhamo industrial), que enumera "os 25 mil usos conhecidos" do cânhamo. Esses incluem desde produção de roupas da grife Calvin Klein até o papel especial produzido na França pela gigantesca empresa de papel Kimberley-Clark. Até o início do século, Lexington foi o maior centro mundial de comércio de cânhamo. Durante dois séculos a Cannabis sativa, ao lado do Bourbon e dos cavalos puro-sangue, foi um pilar da prosperidade da região e motivo de orgulho de seus habitantes. Desde a chegada dos primeiros colonos ao Kentucky, no século 18, até a aprovação da lei que proibiu seu cultivo, em 1937, o produto foi a cultura mais lucrativa dos fazendeiros dos Estados Unidos. "Semeiem cânhamo por toda a parte e utilizem-no o quanto puderem", foi o conselho dado aos americanos pelo "pai da pátria", George Washington.
O plantio do cânhamo é, para os agricultores do Kentucky, a única alternativa ao tabaco, sua fonte principal de recursos e que, segundo eles, corre o risco de ser proibido. Tanto assim que 77% dos habitantes do Estado são favoráveis à legalização do cultivo do cânhamo.
Mas a idéia tropeça na hostilidade da DEA (órgão de combate às drogas do governo americano) e de todos aqueles que, por ignorância ou deliberadamente, metem a maconha e o cânhamo industrial no mesmo saco.
"Nossa cerveja não gerou nenhuma polêmica no Kentucky", garante Ambrose. "Todo mundo sabe que cânhamo e maconha são duas coisas diferentes. Mesmo meu tio, que tem 82 anos e é superconservador, sabe disso."
Gosto de avelã
"A primeira razão pela qual utilizamos o cânhamo é que ele dá um gosto ótimo à cerveja", diz Ambrose. A cerveja à base de cânhamo deixa um ligeiro sabor de avelãs. "É uma cerveja para o grande público, não para os especialistas", diz Brian Miller.
Desde o ano passado, outras cervejas à base de cânhamo apareceram no mercado americano: a Hemp Gold, produzida em Maryland, a Humboldt Hemp na Califórnia e a canadense Hemp Cream.
Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idSubArea=68&idArea=1&idArtigo=159
sábado, 1 de agosto de 1998
Quando a maconha cura
Agosto de 1995, Superinteressante
Está provado. Os efeitos medicinais da maconha beneficiam pacientes de câncer, AIDS, glaucoma e esclerose múltipla. Mas os médicos do mundo inteiro se vêem num dilema crucial. Como receitar um remédio que é proibido?
Rosângela Petta
Desde logo, é importante deixar bem claro: o uso de drogas como maconha e outras substâncias alucinógenas ou psicotrópicas, sem orientação médica, é perigoso. O vício das drogas prejudica os jovens e constitui um problema social. A forma de resolvê-lo é uma discussão em aberto, mas não é o tema principal da reportagem que você vai ler a seguir. Aqui, você será informado sobre os efeitos medicinais da maconha, entenderá por que os médicos desenvolvem cada vez mais pesquisas nessa área, e por que, muitos deles, concluíram pela recomendação do uso terapêutico dessa droga.
A comunidade científica começou a estudar a maconha a sério em 1964. Nesse ano, o pesquisador Raphael Mechoulan, da Universidade de Tel Aviv, em Israel, extraiu da erva natural uma substância chamada delta-9-tetraidrocanabinol. Era o THC, o principal responsável pelos efeitos da Cannabis sativa (nome científico da planta de maconha). Como também aprendeu a sintetizar o THC, Mechoulan viabilizou, pela primeira vez, o estudo sistemático de suas ações no corpo humano.
Há muito tempo se ouvia falar nas virtudes terapêuticas da erva. Na verdade, a sua história é quase tão antiga quanto a civilização: há seis mil anos, aparecem no mais antigo texto medicinal conhecido, o Pen Ts’oo Ching, chinês, sugestões de uso da planta. Ela era indicada para problemas como asma, cólicas menstruais e inflamações da pele. E assim foi até recentemente, afirma o bioquímico John Morgan, da Universidade da Cidade de Nova York. “Nos Estados Unidos, a asma, a dor e o estresse foram combatidos com chás e outros preparados de maconha (mas não cigarros) comercializados por grandes empresas, como Parke Davis, Eli Lilly e Squibb.” O negócio acabou em 1937, quando a erva foi proibida nos EUA por lei federal.
Após a descoberta de Mechoulen, a indústria voltou a se empenhar e, logo no início dos anos 70, surgiram os primeiros remédios à base de THC sintético, cujo uso é autorizado, em casos especiais, na Europa e nos Estados Unidos. Dois deles são fabricados atualmente: o canadense Nabilone e o estadunidense Marinol. Em forma de cápsulas, eles ocuparam um mercado em crescimento: o dos pacientes de câncer e de AIDS. É verdade que o THC também é benéfico em outros casos. Mas foi a gravidade dessas duas doenças que justificou a atenção dada à maconha como recurso terapêutico. A Cannabis não cura o câncer ou a AIDS. O que ela faz com eficiência é aliviar o sofrimento decorrente dessas doenças.
A partir de 1975, os médicos perceberam que o THC ajudava a superar crises de náusea e vômitos provocadas pela quimioterapia, tratamento que busca controlar os tumores cancerígenos. O mal-estar que decorre da quimioterapia pode se tornar intolerável se não for controlado e há pacientes que não conseguem dar continuidade ao tratamento. Por isso, o uso da maconha pode ser decisivo. Daí que na mais abrangente pesquisa estadunidense, feita pela Universidade Harvard em 1991, 70% dos cancerologistas perguntados responderam que recomendariam o uso da erva natural se esta fosse legalizada. Quase metade (40%) disse que a aconselhava, mesmo sendo ilegal. Nesse mesmo ano, a Organização Mundial de Saúde reconheceu a maconha natural como medicamento.
No caso da AIDS, o efeito mais importante é o de estimular o apetite. Pacientes de AIDS perdem em média 4 quilos por mês e podem morrer de desnutrição. O desejo de comer vem com a ajuda do THC. Alguns recorrem às cápsulas e outros aos cigarros, que continuam proibidos na maioria dos países. E a ilegalidade da maconha natural - para fumar - é um problema, porque grande número de médicos acha que ela é bem mais eficiente que a sua irmã artificial. Claro, isso não significa que ela seja indispensável. Mesmo porque há outros medicamentos disponíveis. Um exemplo, no caso do câncer, é a substância Odonsetron, muito receitada. Em comparação, o Marinol tem eficiência apenas moderada, diz o oncologista brasileiro Sérgio Simon. Outro problema é que nem todos toleram os efeitos não-medicinais do THC. São comuns os acessos de riso, moleza no corpo ou boca seca. Com tudo isso, quem resumiu bem a questão foi o professor de farmacologia Roberto Frussa Filho, da Universidade Federal Paulista/Escola Paulista de Medicina. “A maconha funciona”, disse ele à SUPER. “O que precisamos é avaliar se e quando vale a pena usá-la. Acho que pode se tornar uma opção para quem não aceita o tratamento convencional”.
No decorrer dos anos 90 o estudo científico da maconha avançou muito, apesar de vários contratempos importantes. O maior deles foi criado pelo governo estadunidense na tentativa de dar mais força à campanha antidroga. Em 1992, por exemplo, os EUA cortaram um importante programa federal de pesquisas sobre o valor terapêutico da planta, tirando recursos valiosos dos cientistas. Também suspenderam as autorizações especiais para que alguns pacientes usassem cigarros, complicando o desenvolvimento das terapias. As autorizações, até certo ponto, contornavam o problema da ilegalidade. Que são muitos, como lembra o brasileiro André Vilela Lomar, infectologista do Hospital Albert Einstein, de São Paulo. Ele explica a situação em que estão os pacientes de AIDS que aceitam bem o cigarro de maconha como estimulante de apetite: “Apesar disso, não recomendo. Justamente porque a maconha é ilícita, não se pode ter controle sobre a sua procedência, saber se está misturada a um mato ou se contém algum fungo”. No Brasil, a questão da legalidade atinge até o Marinol (comercializado nos Estados Unidos desde 1985), que utiliza o THC sintético. De acordo com o farmacologista Elisaldo Carlini, secretário nacional da Vigilância Sanitária, está sendo avaliada pelo Ministério da Saúde a possibilidade de liberar o uso do remédio. Carlini fez o anúncio há cerca de três meses.
Mesmo com todos os obstáculos, esta década trouxe muitas novidades sobre a Cannabis. A mais sensacional foi a descoberta dos locais em que ela age, no cérebro. Isso é importante porque a planta contém cerca de sessenta substâncias, chamadas coletivamente de canabinóides. Elas são as responsáveis pelos efeitos da planta no corpo mas não se sabia exatamente como cada uma delas atua no organismo. Então, em 1991, descobriu-se que as células do cérebro têm uma substância, ainda sem nome, cuja função é reagir quimicamente com os canabinóides. Ou seja, é por meio dela que os canabinóides afetam o cérebro e, a partir daí, o resto do organismo. Substâncias desse tipo são denominadas “receptores” pelos cientistas. A receptora dos canabinóides foi identificada em 1991 por duas equipes de cientistas nos Estados Unidos, uma da Universidade de Saint Louis e outra do Instituto Nacional de Saúde. Desde então, uma busca cuidadosa revelou quais são as regiões do cérebro mais ricas em receptores. O mapa dos receptores já revelou pistas interessantes. Ele mostra que os compostos da planta atuam em regiões cerebrais relacionadas com a memória, com os sentidos, com a capacidade de aprender e com os movimentos do corpo, inclusive a sensação de equilíbrio. E a maconha realmente afeta a memória, os sentidos, o aprendizado e o equilíbrio.
Na prática, porém, ainda há muito que conhecer. Os próprios efeitos da maconha ainda são incertos e podem ser contraditórios, como explica o farmacologista Isaltino Marcelo Conceição, do Instituto Butantã. “O THC é um depressor, mas quando a maconha é consumida em grupo costuma trazer euforia”. De acordo com o farmacologista Frussa Filho, é difícil comprovar os efeitos porque os estudos clínicos - nos quais se acompanha de perto o comportamento de um usuário - ainda são muito poucos. Também atrapalha o fato de a maconha ser usada, freqüentemente, em combinação com o álcool e com o tabaco. Por último, o entrave que parece ser o dilema decisivo atualmente: o da ilegalidade da droga.
Como separar a maconha que pode curar daquela que está misturada às mazelas sociais do vício e do tráfico? Quando for possível dar uma resposta a essa questão, vai ficar mais fácil conhecer melhor as suas virtudes e os seus defeitos. A Cannabis está conquistando uma fatia dos negócios convencionais. Plantada em fazendas especiais, autorizadas pelo governo de alguns países, ela se transformou em uma fonte surpreendente de matérias-primas, com as quais se produzem desde cosméticos até papel, roupas e alimentos. Um bom exemplo desses produtos vai estar nos seus próprios pés em breve. Depois de um ano de testes, a Adidas está lançando, em todo o mundo, um novo modelo de tênis para passeio. Trata-se do Chronic, que, na gíria americana, significa fumante de maconha. Feito de cânhamo, a fibra que se encontra no caule e nos galhos mais robustos da planta de maconha, o Chronic tem um ínfimo teor de THC. “Estamos vendendo um conceito ecológico”, diz Marta Maddalena, gerente de produto da Adidas do Brasil, que vai importar o calçado. “Essa fibra não passa por processos químicos, não danifica o meio ambiente e tem uma cara rústica. É como arroz integral.”
A idéia, sem dúvida, é boa. O mundo inteiro anda atrás de materiais alternativos. Em 1993, a Inglaterra colheu sua primeira safra de Cannabis inteiramente legal, plantada em 30 locais do país. As fazendas são subsidiadas pelo Fundo Agrícola da Comunidade Européia. Foram 7500 toneladas de cânhamo, aproveitadas, entre outras coisas, na produção de papel. Resultado: desde os tradicionais saquinhos de chá e até formulários da justiça britânica são hoje produzidos a partir do arbusto. A França também pediu e obteve apoio da Comunidade Européia baseando-se em argumentos econômicos e ecológicos para fazer papel. Afinal, a Cannabis rende quatro vezes mais do que o eucalipto, com a vantagem de ter menos lignina, substância nociva ao meio ambiente. Itália e Espanha também estão processando fibras para fazer papel do mesmo jeito. Com muito mais motivo, os europeus passaram para os tecidos, cuja afinidade com o cânhamo vem de muitos séculos. No Egito dos faraós, ele era usado em cordas e velas de embarcações. No mundo moderno, ele está virando os hemp jeans (em inglês, hemp significa cânhamo). A fibra está sendo aproveitada ainda em pranchas de esquiar na neve, as snowboards. Na Suíça, a idéia foi transformar as folhas em xampus e cremes faciais. Tanto na Europa como nos Estados Unidos, se utilizam as sementes para obter prateleiras inteiras de supermercado: detergentes, fertilizantes, diversos óleos, molhos comestíveis e queijo vegetal.
Fonte: Superinteressante nº 8, agosto de 1995.
Está provado. Os efeitos medicinais da maconha beneficiam pacientes de câncer, AIDS, glaucoma e esclerose múltipla. Mas os médicos do mundo inteiro se vêem num dilema crucial. Como receitar um remédio que é proibido?
Rosângela Petta
Desde logo, é importante deixar bem claro: o uso de drogas como maconha e outras substâncias alucinógenas ou psicotrópicas, sem orientação médica, é perigoso. O vício das drogas prejudica os jovens e constitui um problema social. A forma de resolvê-lo é uma discussão em aberto, mas não é o tema principal da reportagem que você vai ler a seguir. Aqui, você será informado sobre os efeitos medicinais da maconha, entenderá por que os médicos desenvolvem cada vez mais pesquisas nessa área, e por que, muitos deles, concluíram pela recomendação do uso terapêutico dessa droga.
A comunidade científica começou a estudar a maconha a sério em 1964. Nesse ano, o pesquisador Raphael Mechoulan, da Universidade de Tel Aviv, em Israel, extraiu da erva natural uma substância chamada delta-9-tetraidrocanabinol. Era o THC, o principal responsável pelos efeitos da Cannabis sativa (nome científico da planta de maconha). Como também aprendeu a sintetizar o THC, Mechoulan viabilizou, pela primeira vez, o estudo sistemático de suas ações no corpo humano.
Há muito tempo se ouvia falar nas virtudes terapêuticas da erva. Na verdade, a sua história é quase tão antiga quanto a civilização: há seis mil anos, aparecem no mais antigo texto medicinal conhecido, o Pen Ts’oo Ching, chinês, sugestões de uso da planta. Ela era indicada para problemas como asma, cólicas menstruais e inflamações da pele. E assim foi até recentemente, afirma o bioquímico John Morgan, da Universidade da Cidade de Nova York. “Nos Estados Unidos, a asma, a dor e o estresse foram combatidos com chás e outros preparados de maconha (mas não cigarros) comercializados por grandes empresas, como Parke Davis, Eli Lilly e Squibb.” O negócio acabou em 1937, quando a erva foi proibida nos EUA por lei federal.
Após a descoberta de Mechoulen, a indústria voltou a se empenhar e, logo no início dos anos 70, surgiram os primeiros remédios à base de THC sintético, cujo uso é autorizado, em casos especiais, na Europa e nos Estados Unidos. Dois deles são fabricados atualmente: o canadense Nabilone e o estadunidense Marinol. Em forma de cápsulas, eles ocuparam um mercado em crescimento: o dos pacientes de câncer e de AIDS. É verdade que o THC também é benéfico em outros casos. Mas foi a gravidade dessas duas doenças que justificou a atenção dada à maconha como recurso terapêutico. A Cannabis não cura o câncer ou a AIDS. O que ela faz com eficiência é aliviar o sofrimento decorrente dessas doenças.
A partir de 1975, os médicos perceberam que o THC ajudava a superar crises de náusea e vômitos provocadas pela quimioterapia, tratamento que busca controlar os tumores cancerígenos. O mal-estar que decorre da quimioterapia pode se tornar intolerável se não for controlado e há pacientes que não conseguem dar continuidade ao tratamento. Por isso, o uso da maconha pode ser decisivo. Daí que na mais abrangente pesquisa estadunidense, feita pela Universidade Harvard em 1991, 70% dos cancerologistas perguntados responderam que recomendariam o uso da erva natural se esta fosse legalizada. Quase metade (40%) disse que a aconselhava, mesmo sendo ilegal. Nesse mesmo ano, a Organização Mundial de Saúde reconheceu a maconha natural como medicamento.
No caso da AIDS, o efeito mais importante é o de estimular o apetite. Pacientes de AIDS perdem em média 4 quilos por mês e podem morrer de desnutrição. O desejo de comer vem com a ajuda do THC. Alguns recorrem às cápsulas e outros aos cigarros, que continuam proibidos na maioria dos países. E a ilegalidade da maconha natural - para fumar - é um problema, porque grande número de médicos acha que ela é bem mais eficiente que a sua irmã artificial. Claro, isso não significa que ela seja indispensável. Mesmo porque há outros medicamentos disponíveis. Um exemplo, no caso do câncer, é a substância Odonsetron, muito receitada. Em comparação, o Marinol tem eficiência apenas moderada, diz o oncologista brasileiro Sérgio Simon. Outro problema é que nem todos toleram os efeitos não-medicinais do THC. São comuns os acessos de riso, moleza no corpo ou boca seca. Com tudo isso, quem resumiu bem a questão foi o professor de farmacologia Roberto Frussa Filho, da Universidade Federal Paulista/Escola Paulista de Medicina. “A maconha funciona”, disse ele à SUPER. “O que precisamos é avaliar se e quando vale a pena usá-la. Acho que pode se tornar uma opção para quem não aceita o tratamento convencional”.
No decorrer dos anos 90 o estudo científico da maconha avançou muito, apesar de vários contratempos importantes. O maior deles foi criado pelo governo estadunidense na tentativa de dar mais força à campanha antidroga. Em 1992, por exemplo, os EUA cortaram um importante programa federal de pesquisas sobre o valor terapêutico da planta, tirando recursos valiosos dos cientistas. Também suspenderam as autorizações especiais para que alguns pacientes usassem cigarros, complicando o desenvolvimento das terapias. As autorizações, até certo ponto, contornavam o problema da ilegalidade. Que são muitos, como lembra o brasileiro André Vilela Lomar, infectologista do Hospital Albert Einstein, de São Paulo. Ele explica a situação em que estão os pacientes de AIDS que aceitam bem o cigarro de maconha como estimulante de apetite: “Apesar disso, não recomendo. Justamente porque a maconha é ilícita, não se pode ter controle sobre a sua procedência, saber se está misturada a um mato ou se contém algum fungo”. No Brasil, a questão da legalidade atinge até o Marinol (comercializado nos Estados Unidos desde 1985), que utiliza o THC sintético. De acordo com o farmacologista Elisaldo Carlini, secretário nacional da Vigilância Sanitária, está sendo avaliada pelo Ministério da Saúde a possibilidade de liberar o uso do remédio. Carlini fez o anúncio há cerca de três meses.
Mesmo com todos os obstáculos, esta década trouxe muitas novidades sobre a Cannabis. A mais sensacional foi a descoberta dos locais em que ela age, no cérebro. Isso é importante porque a planta contém cerca de sessenta substâncias, chamadas coletivamente de canabinóides. Elas são as responsáveis pelos efeitos da planta no corpo mas não se sabia exatamente como cada uma delas atua no organismo. Então, em 1991, descobriu-se que as células do cérebro têm uma substância, ainda sem nome, cuja função é reagir quimicamente com os canabinóides. Ou seja, é por meio dela que os canabinóides afetam o cérebro e, a partir daí, o resto do organismo. Substâncias desse tipo são denominadas “receptores” pelos cientistas. A receptora dos canabinóides foi identificada em 1991 por duas equipes de cientistas nos Estados Unidos, uma da Universidade de Saint Louis e outra do Instituto Nacional de Saúde. Desde então, uma busca cuidadosa revelou quais são as regiões do cérebro mais ricas em receptores. O mapa dos receptores já revelou pistas interessantes. Ele mostra que os compostos da planta atuam em regiões cerebrais relacionadas com a memória, com os sentidos, com a capacidade de aprender e com os movimentos do corpo, inclusive a sensação de equilíbrio. E a maconha realmente afeta a memória, os sentidos, o aprendizado e o equilíbrio.
Na prática, porém, ainda há muito que conhecer. Os próprios efeitos da maconha ainda são incertos e podem ser contraditórios, como explica o farmacologista Isaltino Marcelo Conceição, do Instituto Butantã. “O THC é um depressor, mas quando a maconha é consumida em grupo costuma trazer euforia”. De acordo com o farmacologista Frussa Filho, é difícil comprovar os efeitos porque os estudos clínicos - nos quais se acompanha de perto o comportamento de um usuário - ainda são muito poucos. Também atrapalha o fato de a maconha ser usada, freqüentemente, em combinação com o álcool e com o tabaco. Por último, o entrave que parece ser o dilema decisivo atualmente: o da ilegalidade da droga.
Como separar a maconha que pode curar daquela que está misturada às mazelas sociais do vício e do tráfico? Quando for possível dar uma resposta a essa questão, vai ficar mais fácil conhecer melhor as suas virtudes e os seus defeitos. A Cannabis está conquistando uma fatia dos negócios convencionais. Plantada em fazendas especiais, autorizadas pelo governo de alguns países, ela se transformou em uma fonte surpreendente de matérias-primas, com as quais se produzem desde cosméticos até papel, roupas e alimentos. Um bom exemplo desses produtos vai estar nos seus próprios pés em breve. Depois de um ano de testes, a Adidas está lançando, em todo o mundo, um novo modelo de tênis para passeio. Trata-se do Chronic, que, na gíria americana, significa fumante de maconha. Feito de cânhamo, a fibra que se encontra no caule e nos galhos mais robustos da planta de maconha, o Chronic tem um ínfimo teor de THC. “Estamos vendendo um conceito ecológico”, diz Marta Maddalena, gerente de produto da Adidas do Brasil, que vai importar o calçado. “Essa fibra não passa por processos químicos, não danifica o meio ambiente e tem uma cara rústica. É como arroz integral.”
A idéia, sem dúvida, é boa. O mundo inteiro anda atrás de materiais alternativos. Em 1993, a Inglaterra colheu sua primeira safra de Cannabis inteiramente legal, plantada em 30 locais do país. As fazendas são subsidiadas pelo Fundo Agrícola da Comunidade Européia. Foram 7500 toneladas de cânhamo, aproveitadas, entre outras coisas, na produção de papel. Resultado: desde os tradicionais saquinhos de chá e até formulários da justiça britânica são hoje produzidos a partir do arbusto. A França também pediu e obteve apoio da Comunidade Européia baseando-se em argumentos econômicos e ecológicos para fazer papel. Afinal, a Cannabis rende quatro vezes mais do que o eucalipto, com a vantagem de ter menos lignina, substância nociva ao meio ambiente. Itália e Espanha também estão processando fibras para fazer papel do mesmo jeito. Com muito mais motivo, os europeus passaram para os tecidos, cuja afinidade com o cânhamo vem de muitos séculos. No Egito dos faraós, ele era usado em cordas e velas de embarcações. No mundo moderno, ele está virando os hemp jeans (em inglês, hemp significa cânhamo). A fibra está sendo aproveitada ainda em pranchas de esquiar na neve, as snowboards. Na Suíça, a idéia foi transformar as folhas em xampus e cremes faciais. Tanto na Europa como nos Estados Unidos, se utilizam as sementes para obter prateleiras inteiras de supermercado: detergentes, fertilizantes, diversos óleos, molhos comestíveis e queijo vegetal.
Fonte: Superinteressante nº 8, agosto de 1995.
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