A verdadeira dependência relacionada à erva é econômica e ideológica.
Walter Fanganiello Maierovitch
Recentemente, uma rede de televisão reuniu os nove pré-candidatos democratas à Presidência dos Estados Unidos. Três deles, John Edwards, John Kerry e Howard Dean (ex-governador de Vermont e apontado como provável vencedor das prévias), admitiram já ter fumado maconha, sem dar alterações, vexames ou escândalos públicos.
O mais veemente dos pré-candidatos na defesa de mudanças foi Dennis Kucinic. Ele ressaltou que o aparato antiproibicionista custa ao contribuinte, anualmente, US$ 10 bilhões.
Os pré-candidatos democratas lembraram algumas pesquisas. Por exemplo, nos hospitais dos EUA só está disponível um leito para cada dez usuários desejosos em se desintoxicar. Em Nova York, 94% dos presos acusados de porte de droga pertencem às minorias. Para a Human Rights Watch, a proporção de negros presos em flagrante por posse de drogas é cinco vezes maior que a de brancos.
Para rematar esse quadro, a polícia federal norte-americana (FBI) apresentou o relatório de fechamento de 2003. Detectou um aumento de 14,1% na prisão de mulheres. Cerca de 40% delas estavam encarceradas por delitos relativos às drogas, incluída a posse de maconha para uso próprio.
As discussões sobre a maconha continuam a freqüentar as pautas em 2004, não apenas nos EUA. Os debates sobre a erva canábica ficaram mais acesos a partir dos anos 60, quando chegaram à Organização das Nações Unidas e geraram a Convenção Única de Nova York, em 1961.
O certo é que liberalizantes, moderados e proibicionistas se digladiam até hoje. O termo “proibicionismo” nasceu com a chamada Lei Seca norte-americana (1921 a 1933), produtora de chefões do porte do apelidado Lucky Luciano – nascido Salvatore Lucania –, colocado no elenco dos mais “endinheirados” do século XX pela semanal Time.
Nos últimos anos, prevaleceu o proibicionismo mitigado da maconha, como sucede com o tabaco, que só pode ser fumado em áreas determinadas. Na Holanda, o Café Sarasani, na cidade de Utrecht, pioneiro na venda legal de maconha para consumo interno, completou 35 anos em 28 de novembro de 2003. Em toda a Holanda, existem mais de 800 cafés autorizados a vender aos clientes até meio quilo de Cannabis por dia, para consumo no estabelecimento vendedor.
Ao contrário do cigarro de tabaco, fumar maconha pelas ruas não é admitido em nenhum país do mundo. Em alguns lugares, como no Brasil, o porte da maconha para consumo próprio continua sendo considerado crime. Em outros, a exemplo de Portugal, não mais ocorre criminalização, mas proibição na forma de infração administrativa, como jogar lixo na calçada ou dirigir sem habilitação.
A verdadeira dependência provocada pela maconha tem sido a econômica. Ela sustenta PIB de países, bolsos e caixas variados, como, por exemplo, das empresas que vendem papel de seda para enrolar cigarros em bancas de jornal e revistas.
O Marrocos, seguindo no exemplo, começou o ano de 2004 ostentando o título de maior produtor mundial de marijuana (maconha) e da sua resina, denominada haxixe. No mercado internacional, o seu haxixe é chamado de “chocolate marroquino”: vendido em tabletes, com o conteúdo na cor marrom-chocolate, a lembrar a nossa rapadura nordestina.
O plantio e o cultivo da Cannabis são feitos no norte do Marrocos, nas zonas de Rif e Yebala. Cobrem uma área de, aproximadamente, 200 mil hectares e rendem US$ 10 bilhões por ano.
Cerca de 1,5 milhão de marroquinos estão envolvidos na produção e na venda, num país de quase 29 milhões de habitantes, conforme senso de 2001. Em 2003, o Marrocos colocou 3 mil toneladas de maconha e haxixe na Europa, via Espanha.
A produção marroquina de maconha não chega ao Brasil, que recebe a maior quantidade da droga do Paraguai, sendo esta portadora de princípio ativo (tetraidrocanabinol, ou THC) mais potente do que a produzida em Pernambuco, Bahia e Maranhão.
Nos EUA, existem os microplantios ilegais da Flórida, com técnicas de abertura de covas e irrigação muito semelhantes à empregada no Polígono da Maconha de Pernambuco. A Colômbia, o México e o Caribe são os grandes fornecedores de marijuana e haxixe – em pasta ou óleo – aos norte-americanos.
Para se ter idéia do crescente consumo no mundo ocidental, o ano de 2004 começou contabilizando mais de 30 milhões de fumantes rotineiros da erva canábica. Fora os do “fumacê” habitual, são contados mais de 100 milhões de pessoas, que já consumiram maconha e os seus derivados ao menos uma vez na vida.
Para a alegria dos pais e das mães preocupados com vestígios deixados pelos filhos, nunca houve no planeta, até o momento, morte por overdose de maconha ou de haxixe. Evidentemente, o contrário sucede com a cocaína, a heroína e as drogas sintéticas, causadoras de overdoses fatais.
A dose mortal de maconha foi estimada em 4 quilos, segundo dados de laboratórios científicos, depois de experiências feitas com ratos. Ninguém no mundo reúne condições de manter um consumo ininterrupto de 4 quilos.
Além disso, o denominado efeito-eficaz é conseguido com 1/10 de grama. Por outro lado, o aumento na potência da erva – THC – não influencia no risco. Só para recordar, o princípio ativo, ou seja, o tetraidrocanabinol, variou de 4% a 18% nas apreensões policiais realizadas em 2003, na Europa e nos EUA.
Quando o THC fica mais forte (óleo de haxixe, shunk hidropônico e maconha transgênica), o usuário habitual reduz o número de tragadas. Ou coloca menos erva na feitura do cigarro. No consumo lúdico de erva comum, não passa de sete a média de tragadas. Elas reduzem-se a três quando o THC é mais potente.
O presidente George W. Bush tem urticárias quando entra a maconha, ainda que seja num debate limitado ao emprego terapêutico. Apesar disso, oito estados federados admitem o uso medicinal. Em dezembro de 2003, e para entrar em vigor neste fim de janeiro, acabou regulamentada a lei da Califórnia (SB420). Ela legalizou o uso terapêutico da maconha e autorizou a expedição de cédula de identificação aos pacientes. Isso para evitar surpresas policiais nas ruas e nas praças, tipo revistas e prisões em flagrante.
Pela nova lei da Califórnia, uma pessoa sob tratamento poderá cultivar em casa até seis plantas adultas. Ou optar por 12 pequenos arbustos. Não é permitido armazenar mais de 200 gramas da Cannabis. A respeito, o presidente W. Bush quer processar criminalmente os médicos que fornecem receitas, em especial para alcançar as importações de maconha, feitas por meio de cooperativas médicas.
Numa das inúmeras manifestações públicas em favor da liberação da maconha para fins médicos, um portador de HIV, usuário de maconha voltada a estimular o apetite, exibiu um cartaz reproduzindo o Ecclesiastico: “Deus fez crescer nos campos erva com o poder de curar, que o homem deve saber usar”. A propósito, a venda em farmácia já é feita na Holanda, para infusões e para servir de alerta de que fumar pode causar câncer. Em 2004, a Bélgica também disponibilizará a maconha em farmácias.
Ao tempo do presidente Richard Nixon, iniciador da política da War on Drugs (Guerra às Drogas), começou a campanha apoiada na teoria chamada “Droga de Passagem”. Como se descobriu depois, o objetivo era dar nos usuários e inibir o consumo. Pela referida “teoria”, a Cannabis seria a porta de entrada (passagem) para as drogas mais pesadas.
A própria Casa Branca, em 1972, reconheceu a falácia da campanha. Como ainda muitos acreditam nessa história mentirosa da “Droga de Passagem”, especialmente no Brasil, o próprio W. Bush vem sendo usado como exemplo pessoal para desmenti-la. Caso fosse real a “passagem” de uma droga mais branda para outra mais pesada, o presidente W. Bush poderia ter pulado de uma droga de abuso (álcool) para uma droga proibida.
Em 1965, cerca de 100 mil norte-americanos fumavam habitualmente a erva canábica. Em dezembro de 2003, chegou-se a 14 milhões. Quanto aos que já experimentaram e pararam, a estimativa é de 70 milhões. Nessa faixa, por exemplo, pode-se incluir o ex-presidente Bill Clinton. Surpreendido em campanha com a pergunta se havia fumado maconha, Clinton respondeu que fumara, sem tragar.
Sobre o que achava da maconha, foi questionado pela Canadian Television (CTV) o recém-empossado primeiro-ministro, Paul Martin. Na resposta, foi enfático ao defender, para 2004, o projeto de não-criminalização do pequeno porte de maconha: “Reconheço a irritação dos nossos vizinhos estadunidenses sobre esse importante passo do Canadá, mas isso não desviará os programas do nosso governo. Falta apenas acertar a definição do pequeno porte”.
Assim, o novo premier canadense prestigiou a política de Jean Chrétien, seu antecessor. Só para não esquecer, em dezembro de 2003, Chrétien trocou farpas com o governo Bush e reprovou a tentativa de intromissão em assuntos internos do Canadá. Para ironizar, Chrétien frisou que, uma vez sancionada a lei para drogas leves, seria visto a segurar um cigarro de maconha e uma nota de dólar canadense, para pagar a multa.
Como candidato à reeleição, W. Bush vai manter a velha e ineficaz política da War on Drugs, nascida com o republicano Richard Nixon, ampliada por Ronald Reagan e George Bush pai e prestigiada pelo democrata Bill Clinton. Dentre os democratas, apenas Jimmy Carter desprezou a política militarizada.
A batizada War on Drugs trouxe aos norte-americanos o título de campeões mundiais de consumo de drogas ilícitas e a maconha é a mais popular delas.
Divorciando-se da linha norte-americana, a Grã-Bretanha mudou sua lei sobre maconha em 29 de janeiro de 2003. Pela nova lei, a maconha será rebaixada da Classe “B” para a Classe “C”, ou seja, passou a ser considerada droga leve.
Na Classe “B”, estava relacionada junto à cocaína e às anfetaminas, tipo ecstasy. Com o rebaixamento à terceira divisão, estará ao lado dos tranqüilizantes, ansiolíticos, anabolizantes e esteróides, para irritação do conservador David Blunkett, secretário antidrogas do governo Blair e diretor do Home Office.
Interessante o fato de a proposta de reclassificação ter saído da Associação dos Chefes da Polícia Britânica. Segundo a referida associação, os policiais só prendiam os usuários de maconha, sempre pacatos por causa do efeito dessa droga. Enquanto isso, a criminalidade violenta crescia.
Diante da proposta da associação, realizou-se uma experiência piloto em Lambeth. O objetivo era o policial esquecer o portador de maconha para uso próprio. Com isso, o uso de maconha não aumentou e os policiais conseguiram reduzir a incidência de crimes graves, de modo a mudar as estatísticas.
Para esclarecer à população que a maconha continua proibida na Inglaterra, a ministra da Saúde, Caroline Flint, disparou uma campanha que custou ao governo 1 milhão de libras esterlinas, ou seja, 1,450 milhão de euros.
Enquanto a campanha iniciada em 24 de janeiro rola, os policiais, pela nova lei, não ficam obrigados a reprimir os usuários recreativos de maconha. Caso queiram, poderão apreender o “baseado”. Poderão, também, lavrar um auto de multa. Prisão nunca mais.
Na sua edição dominical, o jornal The Guardian recolheu a opinião de Ann Widdecombe, ex-secretária antidrogas e de linha conservadora, e de Danny Kushlich, presidente da Associação Antiproibicionista Britânica Transform. Nenhum deles gostou da nova lei. Para Ann, os traficantes vão carregar pequenas quantidades e terão o álibi do porte para uso lúdico. Já para Danny, a criminalização não foi abolida e os jovens devem ser informados e educados, não tratados como criminosos por causa de um cigarro de maconha.
No Brasil, continua em vigor o modelo norte-americano implantado, por decreto, no final do governo FHC. Parece que o presidente Lula não quer seguir a moderna política portuguesa de transformar o porte de drogas para uso em infração administrativa, não criminal. Pelo jeito, Lula não pretende acender um debate sempre provocador de muita fumaça.
Fonte: CartaCapital nº 269, 3 de dezembro de 2003.
quarta-feira, 3 de dezembro de 2003
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