segunda-feira, 4 de dezembro de 2000

Que droga!

4 de dezembro de 2000, Jornal do Brasil

Roma - Num ato sem precedentes, um membro do governo italiano, e logo o ministro da saúde, professor Umberto Veronesi, considerado um técnico apartidário, oncologista de renome internacional, defendeu publicamente a liberalização das chamadas drogas leves. Sem receio de contrariar o papa, a maioria do clero italiano, os partidos conservadores, a agressiva direita herdeira do fascismo e os interesses das máfias que há muitos anos enriquecem com a comercialização de todo tipo de narcótico, Veronesi abriu a Terceira Conferência Nacional sobre a Tóxico-Dependência, em Gênova, definindo sem hipocrisias uma posição pessoal que não coincide com a de muitos outros membros do governo.

No discurso inaugural da Conferência, presenciada por mais de mil estudiosos, médicos e governantes regionais, o ministro procurou derrubar alguns mitos ligados às drogas: "O proibicionismo, como historicamente está demonstrado, não compensa e não resolve. Não evita os danos que justificam sua prática e cria outros muito piores: a criminalidade, o mercado negro, a prostituição. As estatísticas epidemiológicas afirmam que a mortalidade por drogas leves é equivalente a zero, que elas não criam dependência e que não são a tão temida ponte de passagem às drogas pesadas, particularmente à heroína", afirmou. "Dos 55% de consumidores de drogas leves no mundo, só 0,8% passaram dos derivados de Cannabis à heroína".

A argumentação técnica usada por Veronesi, um senhor de 75 anos que criou em Milão, sua cidade natal, um dos mais importantes centros de estudos e terapia do câncer, se tornou mais persuasiva quando estabeleceu uma comparação entre os números dos italianos mortos anualmente pelo consumo de tabaco (80 mil) e de heroína (mil).

"Entre as drogas leves, o ecstasy é o que provoca poucas unidades de mortes por ano. E é evidente que se precisasse escolher entre a heroína e o ecstasy, escolheria este último", disse o ministro, que nos últimos dias estimulou uma polêmica que está dividindo os italianos, ao mesmo tempo em que deu novo alento aos antigos e combativos movimentos (laicos e religiosos) antiproibicionistas, que há mais de 20 anos vem pedindo a liberalização das drogas leves.

Com a mesma desenvoltura, o ministro Veronesi, visto como o mais incômodo personagem do gabinete chefiado por seu velho amigo Giuliano Amato e o homem de governo mais criticado pelo Vaticano, ousou ainda mais: definiu como corajosas e sugeriu que a Itália adote as experiências de vários países da Europa sobre a distribuição controlada da heroína aos dependentes refratários ao metadone (composto químico, com propriedades analgésicas e narcóticas, usado como substituto da morfina, no tratamento de desintoxicação da heroína).

Em defesa da inocuidade das drogas leves - haxixe e maconha -, Veronesi não esqueceu de mencionar os bons resultados que vem se obtendo com o uso terapêutico da Cannabis em doentes de diversos tipos de tumores.

Assustado pela enorme repercussão do discurso de Veronesi, o primeiro-ministro Amato apressou-se em esclarecer que seu amigo exprimira uma opinião pessoal, de técnico e homem de ciência, mas não falou em nome de um governo formado por uma coalizão heterogênea, com três partidos de moderados e fiéis católicos. E que não pretende tomar qualquer iniciativa para liberalizar a venda e o consumo das drogas leves.

Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idSubArea=68&idArea=1&idArtigo=163
 

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