4 de novembro de 2000, Folha de S. Paulo
Ricardo Arnt
Editor da revista "Exame".
Nos anos 50, o antropólogo americano Howard Becker investigou a cultura do jazz em Chicago e escreveu "Outsiders", um clássico sobre comportamento desviante. Nele, afirma que a maconha é usada por prazer depois que se aprende a definir seus efeitos como aprazíveis. Ou seja, é a experiência que dá sentido à coisa. Sem valores não há sentido. O significante perde-se do significado. Espiritualidade, introspecção e contemplação podem converter-se em apatia, mediocridade e desmotivação. Se o avesso é legítimo, imagine a trombose do significado quando o desvio vira norma.
A maconha não virou norma, mas está deixando de ser desvio. Vai-se o tempo em que Fat Freddie (o gordinho genial dos Freak Brothers, de Gilbert Shelton) destruía supermercados em ataques insaciáveis de larica. A maior virtude da droga era fazer rir. Mas isso correspondia aos valores de certa subcultura tardo-adolescente, cujo "hedonismo transgressivo" Gilberto Velho estudou na classe média da Zona Sul do Rio, em "Nobres e Anjos". No último concerto de rock a que assisti, acho que em 83, em Nova York, todas as pessoas, cada uma mais "diferente" da outra, eram iguais.
A experiência dos anos 70 não é mais dona da Cannabis do que a de outras gerações. Como diz Fernando Gabeira, "do ponto de vista da maconha, a humanidade deve parecer muito louca". A droga ilícita mais tolerada pelos brasileiros, segundo a "Veja", teve seu consumo quadruplicado nos últimos dez anos, sobretudo entre jovens de 16 a 18 anos. Há 140 milhões de usuários no planeta. A aceitação está levando ao abrandamento da legislação no mundo civilizado. Até Portugal descriminalizou-a. No Brasil, o número de condenações por uso e flagrantes policiais está diminuindo.
Fernando Gabeira vem sendo, há anos, um dínamo dessa mudança. Da experiência de 500 conferências surgiu o livro "A Maconha", cujo objetivo é "apresentar os debates mundiais, conclusivos ou não, sobre a Cannabis, respondendo às perguntas surgidas em universidades e escolas secundárias do Brasil". O autor é consciente da sua responsabilidade e da controvérsia que o tema desperta, já que "os efeitos em quem fuma e em quem não fuma são os mais disparatados". O livro é informativo e contido, sem proselitismo ou panfletagem.
Aprende-se um bocado. Você fica sabendo que o mandarim da imprensa William Hearst cunhou o termo "marijuana", ligando o medo da droga ao medo dos imigrantes mexicanos. Que o primeiro uso medicinal remonta a 2300 a.C., na China. Que Louis Armstrong fumava com Billie Holiday. Que filmes antidroga do governo americano nos anos 40 diziam: "Apenas uma tragada e você pode se tornar um homossexual, um assassino, um comunista".
Na ciência, reina a discórdia. Na bibliografia, é possível achar estudos contra e a favor dos supostos efeitos. Há pesquisas sustentando que a maconha desmotiva, reduz a libido, vicia, serve de escada para outras drogas, destrói os neurônios e produz apatia. E há estudos que afirmam que ela reduz a agressividade, é afrodisíaca, causa menos dependência do que cafeína, nicotina e álcool, cura a dependência de outras drogas, melhora o desempenho escolar e aumenta a concentração noturna.
Nos anos 70, a Comissão Shafer, do Congresso estadunidense, reviu as teses, promoveu audiências e encomendou estudos. Concluiu que não havia prova para responsabilizar a erva por crime, insanidade mental, promiscuidade sexual, desmotivação ou indução a outras drogas. Pessoas que usam a maconha há anos não apresentam problemas. Mas o senador James Eastland montou outra comissão que demonstrou que ela faz mal à saúde e que deve ser combatida sem hesitação.
Fumada ou em comprimidos de THC (o princípio ativo tetraidrocanabinol), a Cannabis reduz náuseas em pacientes de quimioterapia, estimula o apetite de doentes de AIDS e alivia o glaucoma. Nos EUA, vende-se o comprimido Marinol. No Brasil, ele pode ser importado, mas não fabricado. A liberação do uso medicinal é tema de campanhas veementes em vários países. Os familiares dos que sofrem têm pouca paciência com preconceitos.
O autor admite que a oposição à maconha é legítima, pois "grande parte de seus adversários acredita que ela conduz à dependência física e à marginalização". É óbvio que ela não é uma droga "mansa" perseguida por "conservadores de direita", a menos que álcool, nicotina, cafeína (e outras "inas") também sejam "de esquerda". Há uma sombra sobre a contracultura. A apologia do desvio e da marginalidade também gerou torpor e embrutecimento, além de ferrar muita gente. Nos Estados Unidos, esse revisionismo vem sendo feito, mas no Brasil "não pega bem". Afinal, todos envelhecem. A diferença é que, para ser uma boa múmia, diz Nelson Rodrigues, é preciso preparar-se longamente.
Fonte: http://www.gabeira.com.br/causas/subareas.asp?idSubArea=68&idArea=1&idArtigo=161
sábado, 4 de novembro de 2000
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