Abril de 1998, Trip nº 49
Sucesso editorial, a revista High Times, que se dedica à "Cannabis culture", merece uma tese. Em entrevista exclusiva, seus editores Steven Hager e Peter Gorman falam como se impõem no mercado de publicações americano, defendendo o uso consciente da erva e denunciando a politicagem que envolve sua legalização.
Steven Hager
Peter Gorman
Vavá Ribeiro e Fábio Massari
A revista norte-americana High Times - bíblia dos maconheiros convictos - foi fundada em 1974 por um visionário (anti)herói da contracultura chamado Gary Goodson, mais conhecido como Tom Forcade, ou Thomas "King" Forcade, ou Reverendo Forcade, para os íntimos. A máxima "live fast die young" caiu como uma luva para o alucinado Forcade. Sua vida foi uma aventura cinematográfica em fast-forward, um grande delírio protopsicodélico, com gigantescas bad trips. Meteu-se com os Sex Pistols e com Woodstock; uniu o "underground" americano através do seu Underground Press Syndicate; liderou os "yuppies", fundou os "zippies" e depois brigou com todo mundo; foi perseguido pela CIA e FBI; provocou a morte de seu melhor amigo numa manobra ilegal espetacular e… se suicidou aos 33 anos.
A história da High Times é pontuada por momentos razoavelmente distintos. O período de 1974 a 1978 representa os momentos mágicos de surgimento e estabelecimento de um canal para a cultura da maconha, agindo como agente catalisador de atitudes contraculturais, que viriam a definir posturas com relação a todo establishment rançoso que se intrometesse no caminho.
Setembro de 1977:
Um patrimônio jornalístico norte-americano. O homem do "gonzo" (matriz do texto praticado por muitos da revista), abre o bico: É o fora-da-lei-mor Dr. Hunter S. Thompson.
Segundo Hager, "a revista perdeu seu foco depois da morte de Tom". No período que vai do finalzinho dos anos 1970 até 1983, a High Times viveu de festas, de atmosfera selvagem, com a cocaína dominando a cena. Foi aí que a revista perdeu público, só recuperado com a eliminação total do pó e com a volta às origens editoriais políticas, com ênfase no aspecto social da cultura da maconha e destaque para o cultivo. "Ao invés de lidar com o traficante, incentivamos o público a plantar sua própria maconha. Isso deu nova vida à revista", ensina Hager.
Novembro de 1980:
Os delírios sonoros do fundador Tom Forcade partem para a briga. O tiozinho doidão da tradição americana, Willie Nelson; o escrotinho doidão da antitradição britânica Johnny Rotten, e o antológico título: "Essa capa não é grande o suficiente para nós dois".
No final dos anos 1980, a High Times impõe novos ritmos às tribos devotas à maconha, instaurando definitivamente o "hemp moviment". De lá para cá, não parou de crescer nos EUA e no mundo, conquistando a cada dia aliados importantes na briga contra uma "situação intolerável", como definem os editores.
Fevereiro de 1989:
Uma das várias capas de outro doutor da família High Times, o Dr. Trips, Jerry Garcia. Numa das chamadas, uma pérola: "Fumamos bananas com David Peel". O David "Casca" é mais um dos heróis "cult" da contracultura americana, que em 68 lançou com a banda Lower East Side o dope classic Have a Marijuana, de onde saiu a música-hino I Like Marijuana. Em 1972, John Lennon produziu um disco de Peel chamado The Pope Smokes Dope (Peel está vivo e continua doidão).
A High Times ultrapassa a barreira dos 20 anos de atividade em plena forma. A idéia de que a revista é puramente panfletária é um estigma que não incomoda mais seus responsáveis, nem seu público. Afinal, as tão faladas cotações do mercado da maconha que a revista apresenta a cada edição, e as deliciosas e proibidas receitas de comida à base da erva não passam de meros coadjuvantes numa estrutura editorial muito mais rica, instigante, perigosa.
Agosto de 1995:
Uma das melhores de todos os tempos. Um alienígena com um baseado. Nos olhos do ET, os campos de erva. "Leve-me ao seu 'dealer'".
Por trás do tratamento de superstar concedido à planta, a High Times joga com lances jornalísticos de fazer inveja, de fortes implicações sociais, políticas e culturais. Do acompanhamento das ações oficiais e ilegais no processo de desenvolvimento das técnicas de plantio, tratamento industrial e uso médico da maconha às mais delirantes incursões filosóficas, religiosas e espirituais, passando por denúncias complexas, High Times acontece.
O homem da Cannabis
Editor da revista mais odiada pelo FBI e CIA - a High Times, especializada na cultura Cannabis -, Steven Hager, 44 anos, é uma das cabeças mais polêmicas da imprensa norte-americana. Ele articula (e imprime) um jornalismo que mescla doses de hedonismo, aventura, verdade e informação, no estilo "doa a quem doer". Híbrido de Lou Reed e Tom Wolfe, Hager é o maior responsável por perpetuar o sucesso editorial da High Times. Em entrevista exclusiva, Hager recrimina a imprensa norte-americana e acusa o governo Clinton de tráfico de drogas.
Trip - Como a High Times entrou em sua vida?
Steven Hager - Um amigo me convidou para ajudar na revista. Depois que Tom morreu, a revista perdeu o foco original, virou um fanzine de festa, com muita cocaína e drogas pesadas. Eu entrei há dez anos para buscar as bases originais. Uma revista política, que defendesse as aspirações e objetivos da cultura Cannabis, incentivando a filosofia de plantio próprio.
Trip - Qual o perfil do leitor da High Times?
Steven Hager - Existem basicamente dois: os velhos hippies Jerry Garcia e a nova geração de rave, ciber punks. Somos muito populares na faixa dos 19, 20 anos.
Trip - Como funciona uma revista nos Estados Unidos, divulgando e incentivando o uso de drogas ilegais?
Steven Hager - O governo não gosta de nós. Já tentaram nos desativar. Mas temos o direito constitucional de imprimir a informação. A liberdade de imprensa na América é protegida e nós não concordamos com a política adotada pelo governo a respeito da Cannabis. Nós acreditamos que é a planta ecologicamente mais eficiente do planeta. Mas o governo não acha isso. Não tem meio termo: ou estamos certos ou eles estão.
Trip - Vocês têm algum interesse no Brasil?
Steven Hager - Yeah, a gente sempre manda um repórter se infiltrar pela América do Sul. Peter Gorman está sempre lá.
Trip - Se vocês tivessem um canal na TV norte-americana, que tipo de programação ou informação vocês passariam?
Steven Hager - Poríamos a verdade sobre a guerra contra as drogas. O governo conspira para vender drogas pesadas e a CIA é envolvida com o tráfico de heroína e cocaína. Ao mesmo tempo, o governo sabe a verdade sobre a Cannabis, que é a melhor medicina para a glaucomia, asma, AIDS, câncer, escleroses, dor de cabeça… Eles sabem disso, mas tentam esconder do povo. Basicamente, a situação é: o governo quer prender, perseguir pessoas doentes, se recusa a aceitar o uso industrial, farmacêutico, religioso e o direito espiritual. Isso tem que mudar.
Trip - Qual seria a principal corporação contra a legalização da maconha?
Steven Hager - Com certeza, a indústria farmacêutica. É um mercado de bilhões de dólares. Medicina e farmacêuticos não deveriam ser fontes industriais voltadas ao lucro. Em outras palavras, elas tiram o dinheiro de pessoas doentes com a finalidade de capitalizar bilhões de dólares. Nós deveríamos cuidar dos doentes, ricos ou pobres. Sendo assim, eles controlam todas as patentes de drogas sintéticas, se opondo a qualquer tipo de medicina natural.
Trip - Qual a linha de jornalismo que a High Times busca?
Steven Hager - Basicamente, o bom, a verdade, algo que acrescente ao povo. Qualquer coisa longe do jabá sobre as celebridades que a maioria das revistas americanas faz. O jornalismo é decadente nos Estados Unidos; 90% do foco é voltado para fofocas sobre estrelas do cinema e etc. Isso não nos interessa enquanto a CIA está matando e mentindo para o povo.
Trip - Quais são os pré-requisitos necessários no currículo para trabalhar na High Times?
Steven Hager - Alguém que saiba escrever honestamente, pesquisar a fundo e juntar as peças para uma história interessante. Não existem muitos jornalistas interessados em trabalhar para a cultura Cannabis porque não existe muita grana, nem futuro. Ninguém fica rico escrevendo sobre a corrupção do governo nos Estados Unidos. Pelo contrário, se você quiser fazer grana como jornalista, você tem que escrever sobre celebridades.
Trip - Em uma das capas, no passado, vocês colocaram o ex-presidente Jimmy Carter com uma colher de cocaína no nariz. Vocês acreditavam, na época, na ligação do governo americano com o Cartel de Medellin?
Steven Hager - Não, mas havia pessoas no staff de Jimmy Carter que usavam muita cocaína. Ele, pessoalmente, não usava. Foi uma das melhores capas que a revista já publicou, mas não foi justo com Jimmy Carter.
Trip - Vocês se meteram em encrenca por causa disso?
Steven Hager - O que ocorreu é que Jimmy Carter era a favor da legalização da maconha. Depois do fato, ele mudou de política, o que, na minha opinião, atrapalhou todo o processo de legalização.
Trip - E se Clinton estivesse na capa do próximo número? Qual seria a chamada?
Steven Hager - Clinton é um político incrivelmente corrupto. Se fôssemos falar alguma coisa sobre ele, não seria nada bom. Acho que ele tem conexões com o aeroporto de Arkansas, onde entra cocaína e saem armas. Ele era o governador de Arkansas na época e, certamente, ele sabia o que se passava naquele aeroporto.
Trip - E essa história dele fumar, mas não tragar?
Steven Hager - Acho que ele já fumou muito.
Trip - Como vocês conseguem tantas informações confidenciais sobre atividades ilegais do governo?
Steven Hager – É bem fácil. É só seguir a trilha do dinheiro. Vários livros já foram escritos sobre o envolvimento da CIA com o tráfico de drogas. Uma vez, o tenente-coronel Bough Rytz, astro da guerra do Vietnã, reuniu-se com Cuntah, que era o senhor da Guerra do Ópio, na Birmânia, e gravou um vídeo com Cuntah declarando que Richard Armatage - na época assistente pessoal de George Bush - era seu maior comprador de heroína. Bough Rytz filmou e mostrou o vídeo em frente ao Congresso e, três dias depois, foi preso. Em vez de prenderem Armatage e revelarem ao público toda a trama, eles prenderam o cara que tentou mostrar a verdade. Este é o ponto. O difícil não é descobrir o que acontece, mas sim conseguir justiça.
Trip - Vocês têm diversos contatos e conhecem bem traficantes e conexões. O que impressiona é como vocês não sofrem atentados e pressões políticas do governo!
Steven Hager - Porque, no passado, nunca funcionou. E pior: nos dá publicidade. Quando eles nos prendem, nós berramos e o resto da imprensa se sente ameaçada e nos protege. O que eles tentam é nos ignorar e rezar para nós sumirmos. Mas isso não acontecerá.
Trip - O que você espera para o futuro da situação da Cannabis?
Steven Hager - Gostaria que fosse legalizada, que as pessoas tomassem consciência que gera benefícios econômicos, ecológicos, medicinais e espirituais para todos.
Trip - Qual seria o maior passo a ser dado para a legalização?
Steven Hager - Temos que provar economicamente que o Hemp é a solução e traz lucro. Na hora em que Wall Street vir o dinheiro que se pode lucrar, eles vão querer a legalização.
Trip – Você tem algum conselho para as organizações em prol da legalização no Brasil?
Steven Hager - Continuem a provar que é uma solução inteligente e ecológica. Use com responsabilidade, pois quanto mais você fuma, menos você obtém da planta. Se você fumar o dia todo, não estará se beneficiando. Se você não tem um motivo médico para fumar o tempo todo, não o faça. Nós temos que ensinar as pessoas a usarem a Cannabis de uma maneira inteligente.
Fonte: Revista Trip nº 49 (Abril de 1998)
http://www2.uol.com.br/trip/49/maconha/home.htm