12 de novembro de 1997, ISTOÉ
Consultor da OMS, Anthony Henman diz que as autoridades devem tolerar a maconha para concentrar esforços nos viciados em heroína e cocaína.
Eliane Trindade
O antropólogo Anthony Henman, 47 anos, é uma autoridade mundial em drogas. Foi consultor do assunto junto à Organização Mundial da Saúde (OMS), às Nações Unidas e à Comissão Européia. Filho de ingleses, nascido em São Paulo, Henman esteve no Brasil há três semanas a convite do Ministério da Saúde e do Conselho Federal de Entorpecentes para participar de um seminário em Brasília sobre políticas de "redução de danos". Surgido nos anos 80, para tentar barrar o avanço da AIDS entre consumidores de drogas, o conceito vai pela linha "dos males o menor", que acabou permitindo o surgimento de programas de distribuição de seringas para usuários de drogas injetáveis e até de heroína para viciados crônicos. Henman acompanhou experiências na Inglaterra e na Suíça. Atualmente é consultor de um projeto de troca de seringas no Estado de Nova York. Com vasta experiência, esse ex-professor de antropologia da Unicamp, formado pela Universidade de Cambridge, admite que, como toda a sua geração, já fumou maconha. Suas posições se assemelham mais às músicas da banda Planet Hemp do que ao discurso oficial. Ele também compra polêmicas como o uso da folha de coca no tratamento de dependentes de cocaína e crack. "Dessa forma haveria um consumo de cocaína muito menos danoso. Mas o que impera é a visão americana de que a única saída é a abstinência, o tudo ou nada", diz. Antes de enveredar pela problemática médica e urbana do uso das drogas, Henman pesquisou regiões produtoras de cocaína na Colômbia e estudou o consumo da folha de coca pelos índios. No Brasil, fez interessantes descobertas sobre a história do consumo da maconha. Um dia antes de embarcar para os Estados Unidos, na quarta-feira 29 de outubro, Henman concedeu a seguinte entrevista a ISTOÉ:
ISTOÉ – O senhor poderia citar um exemplo de sucesso na aplicação da política de redução de danos?
Anthony Henman – Em Liverpool, cidade pioneira na distribuição de seringas descartáveis, a taxa de infecção por HIV entre os usuários de drogas injetáveis não ultrapassa 1,6%. Enquanto em Nova York, em certos bairros, o índice é de 60%. Aqui, em cidades como Itajaí (SC), a taxa é de 70%. No Brasil, a reação das autoridades tem sido sempre de que droga é confusão, droga é marginalidade, droga é crime. Com a chegada da AIDS essa mentalidade teve de mudar. De repente, existia uma doença que era uma ameaça tangível. Quando as pessoas viram que existia um risco altíssimo de transmissão do vírus através da seringa, começaram a pensar o impensável. Até então, distribuir seringas seria o equivalente a dar drogas para crianças. Hoje, programas de distribuição e troca de seringas evoluíram bastante na Europa.
ISTOÉ – Existem outros exemplos positivos mais recentes?
Anthony Henman – Na Europa atualmente estima-se um consumo de dez milhões de pastilhas de ecstasy por fim de semana entre Espanha, Itália, França e Inglaterra. É um tipo de uso concentrado, em festas que duram a noite inteira, as raves. Na Holanda, por exemplo, as prefeituras passaram a obrigar os organizadores a realizar as festas em locais mais arejados e a fornecer água de graça. Isso para evitar mortes por desidratação ou colapsos físicos. Sob o efeito do ecstasy as pessoas dançam tanto que podem se desidratar ou sofrer uma inversão térmica no corpo.
ISTOÉ – Isso é redução de danos?
Anthony Henman – Exatamente. É uma política que diz: não vamos conseguir parar essas milhões de pessoas. Mas, pelo menos a gente pode evitar as piores seqüelas sabendo do que se trata e impondo certas normas. Precisamos olhar especificamente quais são as substâncias que estão criando problemas, em que camadas da população, em que faixa etária e em que contexto sociais. Não dá para continuar com o discurso de que droga é obra do demônio.
ISTOÉ – Como fica o papel do Estado, que reprime o uso e de repente começa a oferecer seringas?
Anthony Henman – Existe uma contradição, entre uma ideologia de controle total, de proibição – "vamos eliminar essas coisas da face do planeta" – e outra lógica que diz: "essa coisas existem, elas produzem um certo tipo de problema, para certos tipos de pessoas e a gente tem que concentrar recursos, uma vez que está custando muito caro". O governo norte americano gasta US$ 15 bilhões por ano, numa política que não tem dado resultado nenhum, centrada na repressão, na proibição.
ISTOÉ – Pode-se pensar em redução de danos no uso de cocaína e do crack que representam riscos bem maiores?
Anthony Henman – Há um médico boliviano em La Paz que tem tratado com folha de coca dependentes de crack, dizendo: "Vamos substituir a forma mais concentrada, por uma forma mais branda." É a mesma droga, mas entra no sangue com menos rapidez. Então, serve para uma desintoxicação progressiva.
ISTOÉ – Seria um antídoto contra a cocaína?
Anthony Henman – É uma forma muito mais moderada de consumir esse mesmo alcalóide. Numa carreira de cocaína ou numa pedra de crack deve haver por volta de 50 miligramas da droga. É mais ou menos a mesma quantidade de cocaína que existe numa boa mascada de folha. A diferença é que quando você fuma um pouco de crack, isso entra na corrente sanguínea em 30 segundos, e quando você está mascando entra de um a dois miligramas por minuto, durante pelo menos uma hora.
ISTOÉ – A folha de coca ajudaria a tratar viciados e a mantê-los em tratamento?
Anthony Henman – Por se tratar de cocaína essas experiências não foram feitas porque predomina a visão americana do problema de que a única alternativa é a abstinência imediata. É o tudo ou nada.
ISTOÉ – A abstinência seria prejudicial aos programas de recuperação de drogados?
Anthony Henman – A abstinência total só funciona para quem de fato quer parar, o que é uma minoria. O que se vê são viciados que passam dezenas de vezes por processos de desintoxicação, voltam ao vício e isso vira um processo repetitivo. Estão sempre alternando entre o tudo e o nada, o tudo sendo consumido por quem quiser na rua e o nada sendo o modelo da abstinência.
ISTOÉ – Colocar a folha de coca como intermediária poderia reduzir o consumo?
Anthony Henman – Acho que poderia levar a um tipo de consumo de cocaína muito menos problemático. Para isso, teria que se admitir o consumo da folha de coca ou de algum produto que reproduz a sua farmacologia. Seria ainda um consumo de cocaína, mas levado a um padrão mais estável, que não faz nenhum mal ao organismo. Seria uma forma de admitir que essa planta existe, que essa substância existe e para certas pessoas pode ter utilidade. É justamente a atual lógica de tentar coibir que está levando o consumo de cocaína para formas cada vez mais danosas.
ISTOÉ – O crack é um exemplo dessa evolução negativa?
Anthony Henman – Sem dúvida é uma evolução perversa do mercado. O crack é uma espécie de McDonald’s da cocaína. É a forma de você vender em pequenas quantidades repetidas vezes e rápido. Não existe mais aquela história de 20 anos atrás, quando o traficante ficava testando o produto para ver se estava bom. Para vender um grama, perdia meia hora. Hoje em dia o negócio é muito mais rápido.
ISTOÉ – Quais os entraves legais ao uso da folha da coca para tratamento de viciados?
Anthony Henman – No Peru e na Bolívia existem pequenas experiências e não enfrentam problemas pelo fato cultural de o uso, em tribos, ser aceito. Eu sei que existem centros na Suíça e Holanda interessados nisso, mas enfrentam enormes dificuldades para enquadrar um projeto desse tipo dentro da legislação internacional antidrogas. A convenção única das Nações Unidas foi feita para dificultar ao máximo o comércio internacional desses produtos e especialmente de suas formas mais primitivas e vegetais. A maconha e a coca sofrem controles ainda maiores do que o ópio, já que a heroína pode ter uso médico.
ISTOÉ – É boa ou má a experiência do consumo de folha de coca nas comunidades indígenas?
Anthony Henman – Os índios usam folhas de coca há muito tempo. E percebe-se que ela funciona como um estimulante eficaz, que de fato traz muito menos danos do que a cocaína refinada. Você pode mascar folha de coca todo dia, a vida inteira, e isso não te fazer mal. Ele é um estimulante, mais ou menos no mesmo nível de dois cafezinhos diários. Não dá nenhuma fissura. Não entendo porque as sociedades ocidentais, em especial o Brasil, não levam em conta essa experiência de milhões de pessoas durante milhares de anos com relação a essa planta. Eles encontraram uma forma de conviver com ela que me parece sadia.
ISTOÉ – No Brasil há registro do uso da folha de coca?
Anthony Henman – Existe uma pequena área onde estive há uns 15 anos, no alto Rio Negro, na fronteira com a Colômbia. Lá, alguns grupos indígenas usam o que eles chamam de ipadu. A coca amazônica é preparada no Brasil de outra forma. O ipadu é um arbusto que dá umas folhas grandes. Elas são torradas e pulverizadas. Faz-se uma mistura com as cinzas. É uma coisa semi-elaborada.
ISTOÉ – Quando a Cannabis chegou ao Brasil?
Anthony Henman – O Brasil é o país das Américas que tem a tradição mais longa de uso de maconha. No Caribe, nos EUA e no México, a droga surge só no fim do século XIX. Enquanto no Brasil já existem boas indicações de que o consumo da maconha era relativamente comum a partir da segunda metade do século XVIII. Em 1930, no Rio de Janeiro, o uso era tão comum que houve uma portaria da prefeitura proibindo o "pito do pango" em estabelecimentos públicos.
ISTOÉ – O uso era restrito aos marginais e malandros?
Anthony Henman – Tem uma história de que Carlota Joaquina tinha um escravo que preparava todos os remédios para ela, e dizem que a rainha usava pelo menos a maconha em forma de infusão. Provavelmente não fumava, mas isso não se sabe com certeza.
ISTOÉ – Quando é que a droga tornou-se um fenômeno urbano no Brasil?
Anthony Henman – Um artigo de um médico baiano, publicado em 1915, trata do uso da maconha e fala dos problemas do abuso. O artigo refere-se à droga consumida por estivadores e trabalhadores braçais no cais do porto de Salvador.
ISTOÉ – Quando chegou à classe média?
Anthony Henman – Provavelmente só nos anos 50. Mas, nos anos 30, aparece em letras de samba. Tem uma música do Wilson Batista que se chama "Chico Brito" que diz assim: "Chico Brito fez do baralho seu maior esporte, é valente no morro, diz que ele fuma uma erva do norte". Isso é uma música de 1932, vem de um meio malandro carioca, sambista, que não é exatamente classe média, mas que já está chegando perto.
ISTOÉ – No que o seu discurso a favor da liberação das drogas difere das letras do Planet Hemp e do Gabriel, o Pensador?
Anthony Henman – Se um estudioso diz numa revista científica que a maconha não faz tanto mal assim, passa. Mas se você falar no palco "Olha, eu já puxei fumo e não caiu meu cabelo e tal", fica chocante. O que os músicos fazem é vir com um contra-discurso – "Olha, aquilo que estão dizendo, não é verdade". Mas eu não considero que seja uma apologia. É simplesmente uma tentativa de ir contra o domínio de um discurso proibicionista que é anticientífico, que tem pouca base nas realidades históricas e culturais de nossa época.
ISTOÉ – Por que este discurso persiste?
Anthony Henman – É um traço autoritário, não só dos regimes militares, mas até dos democráticos, repetir que essa planta é ruim, que ela produz um vício terrível e um estrago enorme ao organismo. Só que hoje existem mais de duas gerações que têm experiência com a maconha. Tem gente com 60 anos que conviveu com maconha a vida inteira. Sabem que esse discurso oficial sobre o malefício inevitável associado à droga, não é verdade. Quer dizer, algumas pessoas podem ter algumas reações problemáticas com a maconha, mas a grande maioria dos usuários é do tipo ocasional e consegue controlar o seu consumo.
ISTOÉ – O senhor então é defensor do "liberou geral"?
Anthony Henman – A gente quer encontrar outras soluções para cada tipo de produto. Então não é assim "liberar geral", qualquer coisa vale. Mas é olhar que tipo de consumo existe, qual está efetivamente criando problemas. Existe, por exemplo, um consumo massivo de maconha que não está criando grandes problemas. Não vejo porque isso não deva ser comercializado. Bastaria um certo controle. Já produtos químicos podem entrar num tipo de controle que existe para medicamentos. O usuário poderia então ir à farmácia buscar um produto puro e numa dose adequada. Assim não haveria overdose acidental, que é a maior causa de mortalidade por uso de opiáceos. É ridículo as pessoas estarem morrendo por acidente. Mas não significa que qualquer barzinho da esquina deva vender cocaína. Eu tenho participado muito dessas discussões. Fui até secretário executivo da Liga Internacional Antiproibicionista, que foi bancada pelo grupo verde dentro do Parlamento Europeu.
ISTOÉ – O Estado dessa forma não estaria abrindo caminho para a tragédia individual dos viciados?
Anthony Henman – Quando se fala em guerra contra drogas entra-se na contramão da história ética ocidental. É uma contradição. A nossa foi sempre a ética da alta responsabilidade, em que as pessoas são responsáveis por seus atos. Essa é a tendência há mais de 900 anos. De repente, nessa questão das drogas, por uma série de razões, a classe médica, depois o Estado e por fim a polícia passaram a ditar o que faz bem e o que faz mal às pessoas. Assim, tiraram do cidadão a própria responsabilidade. Tanto é que se criou o mito de que todos os usuários são irresponsáveis, de que não sabem o que fazem. É importante o músico dizer: "Você consumidor é responsável pelos seus atos". Então, se cair no vício, é o único responsável por isso. Não adianta pôr a culpa no traficante. Foi você que escolheu. E, se quiser sair, também não será o Estado, nem o médico que vão te salvar. A única pessoa que vai te salvar é você mesmo. Para conseguir, tem que haver vontade de parar.
Fonte: ISTOÉ nº 1467 (12 de novembro de 1997)
quarta-feira, 12 de novembro de 1997
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